De Herberto Helder, demónio inocente, a Ramiro Torres, apaixonado vidente

Ramiro Torres Dominio Público Alfredo Ferreiro

Herberto Helder, que desde 2008 não publicava livro, publicou Servidões neste maio passado, composto por dez páginas de prosa autobiográfica e setenta e três poemas inéditos. Mas não tomem pressa, que a obra já ficou esgotada, como acostuma a acontecer.

O Herberto, sim, esgota seus livros em semanas, a pesar de a poesia ser um gênero que não se vende bem. A pesar de o poeta não se interessar com as vendas, as entrevistas e a fina-flor do mundo intelectual. Porque o poeta, como ele amostra sem ter que dizê-lo por um altifalante, não é um literato. Embora se possa servir da literatura, como todo o mundo, se for preciso.

Nunca li, em livros do Helder, tantos versos sentindo tanto e ao mesmo tempo a compreendendo tão pouco. Se calhar essa é mesmo uma técnica para nos abrir aos olhos ao que realmente importa, a aquilo que só na escuridão do pestanejo se sente. Porque o livro todo é o dó-de-peito de um guerreiro de oitenta e três anos com toda a poesia da vida carregada na mão, pronta para nos disparar como a peças adormecidas que não sabem para onde fugir.

É, na realidade, uma obra que revela o compromisso profundo com a procura da verdade, aquela que se oculta na floresta do coração assim como aquela que vagueia pelos caminhos de uma nossa sociedade que, melhor que evoluir, simplesmente repta. A verdade que não só ao poeta corresponde procurar, mas à alma que tenta cumprir o seu destino contra as forças demoníacas que a sepultam e a alimentam.

Uma nota final para aqueles que asseguram não saber bem o que a poesia é, ou ainda para aquelas pessoas que dizem ser chegados os tempos em que a metáfora deve ser posta em questão. Tomemos este verso: “Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência”. Reparemos no verbo que fala da nossa existência, depois no advérbio que nos inculca a nódoa da maldade e finalmente no substantivo que nos exime de toda culpa. Não é, porventura, esta uma definição mestra da nossa vida, uma existência tão talhada pelas circunstâncias quanto pelos erros a que nos conduz o egoísmo? Não somos injustos em um mundo injusto?

A poesia autêntica não é fácil. O poeta não escreve para nós. Mas através do poema, eis a magia, descobrimos todo o que nos une por uma linha impossível de ver.

Ramiro Torres, de quarenta anos, apresentou uns meses antes que o velhote o seu primeiro poemário, Esplendor arcano. Um livro editado pelo Grupo Surrealista Galego, de que ele mesmo faz parte, e uma publicação a que o autor se viu impelido pelo resto do grupo, farto de sofrer a falta de egocentrismo do Ramiro, uma atitude sem dúvida virtuosa mas que convertia a natural vaidade dos companheiros em uma experiência dilacerante.

No livro, são os arcanos da existência que são perscrutados pelo poeta. A poesia penetra na fase saturnal onde o corpo se revela em todo o seu esplendor, a mostrar um seu fresquio natural ao tempo que a “harmonia transversal que trespassa o caos”. Em consonância, o estilo oferece constantes contrastes térmicos, cromáticos, tácteis, substanciais... Da matéria excitada surge o mundo espiritual, como sublimação de aquela.

O discurso ilumina-se com descrições a modo de summa de epifanias sapienciais, de catálogo de eventos gnósticos, de compêndio de casos em que a sabedoria, como vulcão, cospe matéria iluminada, vestígios de Verdade. É Esplendor arcano, em definitivo uma meditação sobre a vida, e esta apenas um sonho acesso, flamejante quando percebemos a natureza sacra do nosso ateísmo. Porque somos um vestígio do nosso futuro, e do mesmo modo que há uma árvore dentro de uma semente também há um ser harmônico dentro de nós; desse futuro, quando inspirados pela escritura ou a leitura,  ligamos para nós próprios mercê à poesia: “Somos espuma de / uma idade vindoura” (p. 23). O arcano é, afinal, a fórmula do imanente, uma verdade que havemos de abstrair, compilar e interpretar enquanto não deixamos de apanhar as sujas pedras do caminho, ruínas do que seremos se cumprirmos o destino.

Vejamos agora um verso do poeta para ilustrar de novo a potência da metáfora: “Vulva da ciência órfica”. De que se trata, de uma visão carnal, científica ou esotérica? Sem dúvida das três em uma sorte de harmonia forçada, como uma imagem que se dispersa em três direções e ao tempo se alimenta de três mundos: o orfismo traz para a mesa o mistério, a ciência propõe o método e a vulva implica a matriz universal. Mais uma vez o poeta se contradiz, e na contradição, como uma pinga de chuva pinta no céu gris um abano colorido.

São vários centos de livros os vendidos apesar da muito escassa presença em livrarias. Poesia que vende, sem vontade comercial

Esplendor arcano é também uma obra esgotada, ainda que se podam sempre achar exemplares novamente impressos a pedido dos mais perspicazes. São vários centos de livros os vendidos apesar da muito escassa presença em livrarias. Poesia que vende, sem vontade comercial. Porque este poeta também não faz literatura, embora se poda servir dela, como todo o mundo, se for preciso.

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