“A minha música é um convite à vida, a que cada um saia de sim, do seu ego, do seu espaço de segurança”

Fred Martins Dominio Público Praza Pública

Fred Martins é um dos músicos brasileiros que deitaram raízes na Galiza, fazendo-se “brasilegos”, como dizem eles. Vem de publicar o seu quinto disco em solitário, que apresentará o 5 de junho no Teatro Principal de Santiago: Para além do muro do meu quintal, um repasso da sua trajetória musical de já vinte anos. Onze temas que caminham da música à poesia. Da poesia à música. Com um som acústico, sem temperos desnecessários. Que tece um diálogo entre a música brasileira e os sons árabes, mediterrâneos... Que liga o contemporâneo com o ancestral.

Ainda não fizeste nenhuma apresentação?

Não. Tenho o primeiro concerto o dia 5 de junho. E dia 13 em Barcelona, no Tinta Roja.

Para além do muro do meu quintal é o primeiro disco que gravas na Europa?

O primeiro em solitário, porque gravei Acrobata com Ugia e Pedro Pascual. É o primeiro que gravo só desde que deixei o Brasil. É como um resumo da minha trajectória, de já 20 anos. Comecei gravando no Brasil, com o percussionista Márcio Bahia, que é da minha cidade, Niterói. Lembro que desde que eu era muito jovenzinho o via tocar com o mestre Hermeto Pascoal em muitos concertos. Depois segui o processo em Lisboa, com Paulo Borges.

Como escolheste os temas?

Alguns dos temas são os que mais chegaram ao público, os que sempre toco nos concertos e que a gente me pede. Tempo Afora, ou Flores, ou Novamente, por exemplo, que se escutou muito na rádio ou na televisão. Ou Sem Aviso, que interpretou Maria Rita -filha da grande Elis Regina-. São os meus temas mais conhecidos no Brasil.

Depois também há outros que comecei a cantar na Galiza como Depressa a vida passa, que gravei com Ugia Pedreira em Acrobata. Terras do Sem-Fim, o primeiro tema, comecei a cantá-lo eu, depois Najla Shami cantou também. No disco, canta comigo, esta canção, Renato Braz, que é um grande cantor brasileiro. Noite de São João, que é um poema de Alberto Caeiro, -heterónimo de Fernando Pessoa-, é dos primeiros que compus, sendo estudante. Desse tema vem o título do disco.

"É certo que as canções são muito brasileiras, mas a instrumentação tem muito dos sons que passam pola Península"

É um disco muito brasileiro...

É. Há três sambas: O samba me diz, Sem aviso e Telefonema. O samba me diz e Sem aviso são sambas mas clássicos. Telefonema é um samba misturado com blues, pós-tropicalista poderíamos dizer. Inclui também timbres de telefones, que é um arranjo mais brincalhão. Em geral, no repertório, quis apanhar canções de cada um dos parceiros mais importantes com os que tenho trabalhado: Roberto Bozzetti, Alexandre Lemos, Marcelo Diniz, Manoel Gomes, Francisco Bosco, Fred Girauta.. É certo que as canções são muito brasileiras, mas a instrumentação tem muito dos sons que passam pola Península. Eu mesmo toco um instrumento turco, o cumbus, e o disco conta com músicos de vários sítios: Paulo Borges, -dos Açores-; Pedro Pascual, -da Galiza-; Sergio Menem, -da Argentina-; João Ferreira, -de Angola- e Nancy Vieira -de Cabo Verde.

O disco tem também um ar árabe...

Quando cheguei aqui fui a um concerto do ciclo Músicas Contemplativas no que havia um trio de alaúde árabe que tocava com um percussionista palestiniano. A mim soava-me muito brasileiro, muito do nordeste do Brasil. E depois soube por que. Porque a música árabe foi levada da Península (por galegos, espanhóis e portugueses) ao Brasil. E essa influência ficou ali, como parte da música ancestral, mantida no nordeste polos músicos e poetas populares. Pois, essa influência está presente em Poema Velho, Tempo afora e em Novamente.

"A música, para mim, sempre partiu muito da poesia. Eu são de uma geração que apanhou uma época de grandes letristas, como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Aldir Blanc, Caetano Veloso ou Vinicius de Moraes"

Também está muito presente a poesia. Ainda que sempre esteve, na tua música.

A música, para mim, sempre partiu muito da poesia. Eu são de uma geração que apanhou uma época de grandes letristas, como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Aldir Blanc, Caetano Veloso ou Vinicius de Moraes. No Brasil há uma tradição de música popular muito sofisticada no texto. Músicas que as pessoas conhecem, que põem as rádios e as televisões. O meu trabalho segue este caminho de trabalhar com poetas, de musicar poemas. Às vezes faço eu as letras, mas é muito habitual que chame um poeta para trabalhar comigo. Assim, tenho várias músicas que nasceram de poemas e poemas que nasceram de músicas, como O samba me diz e Sem aviso.

As anotações que há nas letras serão por se alguém quer tocá-las?

Eu trabalhei doce anos para Lumiar, uma editora que publicava partituras, que fez um trabalho muito importante porque não havia partituras de referência do repertório brasileiro. Só havia partituras de música americana. Assim, passei muitos anos escrevendo esse tipo de cifras que vês nas letras, para que quem quiser possa tocá-las.

"Há um par de temas que encarnam a típica bossa na linguagem da guitarra, mas o cd com todo não é bossa num sentido clássico, mas traz a estética, o pensamento da bossa. O sentido da economia: fazer as coisas com o mínimo"

Também há bossa nova no disco. Que é o que era Guanabara, o teu disco anterior a Acrobata.

Há um par de temas que encarnam a típica bossa na linguagem da guitarra, mas o cd com todo não é bossa num sentido clássico, mas traz a estética, o pensamento da bossa. O sentido da economia: fazer as coisas com o mínimo. Tentar chegar ao essencial, valorizar a própria linguagem, a própria música, sem necessidade de virtuosismo vazio. Mesmo o jazz e certa música de concerto não ficaram imunes ao apelo fácil de uma música que tira pola espetacularidade, polo competitivo, pola performance, e que precisa de muita técnica aparente, de muito virtuosismo para achegar-se ao público. E, as vezes, ou nunca, a beleza não depende do grau de dificuldade, de "esforço". A bossa de um Tom Jobim ou João Gilberto, por exemplo, não vai fazer algo que a linguagem não pede. Algo que no mundo de hoje é raro, porque vivemos na sociedade do espetáculo, da imagem, do excesso, da lógica publicitária...

Com o que dizes, poderias estar descrevendo a tua própria música. A economia, a singeleza...

É que essa é a minha escola. Pertenço a uma família, uma tradição de um tipo de som. Não inventei nada novo. São parte da geração que começou a escutar música nos 70, que escutava música dos 70 e também a que foi feita antes. Depois dos 70 já veio uma mentalidade muito direcionada polo mercado, e uma fragmentação como em tribos, com pouca comunicação entre umas e outras.

"Acho que a minha música, em geral, é um convite à vida, e a que cada pessoa saia de sim, do seu pequeno mundo, das suas preocupações, dos seus egos, do seu espaço de segurança"

As letras deste disco falam muito do tempo, -e tens um disco que se chama Tempo afora-, dos afectos, das coisas importantes da vida?

É que é do que fala a poesia, em geral. O amor, o tempo porque somos mortais, a maneira de viver a vida do modo mais intenso possível. O samba me diz, por exemplo, é uma afirmação da experiência amorosa como algo positivo, ainda que traga dor. Porque é uma experiência principal na vida. O amor está muito presente na música brasileira, em Vinicius de Moraes, por exemplo, que cantou ao amor coma ninguém. Ou a morte, que é melhor aceitar como parte da vida. Temos muitas mortes quotidianas. De nada serve fugir, viver com medos, tentar que tudo seja seguro. E eu acho que a minha música, em geral, é um convite à vida, e a que cada pessoa saia de sim, do seu pequeno mundo, das suas preocupações, dos seus egos, do seu espaço de segurança.

É um disco bastante acústico. Com algo eletro-acústico, também.

É muito acústico, sim. Eu queria que a base da percussão fosse o couro, o pandeiro, com o seu som tão ancestral, que me leva à música tribal, que está na base da música brasileira moderna. A madeira, a pele, o couro, que levaram os africanos ao Brasil. Também o som de utensílios como uma colher, uma folha de papel, brinquedos de crianças.. É um disco muito íntimo, também. O DVD Tempo afora era menos, por ser ao vivo. Este disco é como música de câmara, com o violoncelo, mas tocado também de forma percussiva. Há momentos que aparece o som dos carros de bois.

No primeiro tema, Terras do Sem-Fim, que fala da Amazónia, tudo isto nota-se bem. Nesse sentido, o disco faz como um arco no tempo, desde uma base ancestral a uma visão muito contemporânea. A música ocidental salientou muito o ritmo e o ruído. Tinha que ser todo muito limpo, muito perfeito. A música contemporânea, porém, assume o ruído como parte da sua linguagem. E a música popular sempre o teve presente. Mesmo às vezes a música popular, dependendo de quem a interprete, limpa demasiado o som. Eu não quero isso. Quero que haja certo ruído.

"A música contemporânea assume o ruído como parte da sua linguagem. E a música popular sempre o teve presente"

E dos primeiros discos, Janelas e Raro e comum, que há neste?

Janelas é de uma época na que no Brasil a música estava a mirar muito para fora. Era o tempo da geração MPB pop. Assim, o primeiro e o segundo disco que fiz são mais rock, mais pop, que o terceiro e o quarto, que têm mais que ver com a música brasileira, igual do que este.

De todas maneiras, Guanabara é bossa e samba, mas com elementos de rock.

O Guanabara é dos meus discos o mas centrado na linguagem do samba ou da bossa -que é o samba modernizado- e menos rock. A tradição musical do Brasil é recente, cem anos de música popular. Desde o começo, a cultura brasileira apoiou-se no diálogo com outras culturas, por isso eu não faço mais que continuar essa linha germinal. A geração pós bossa desde os anos 60: Caetano Veloso, Tom Zé, Roberto Carlos, Chico Buarque... já abriu a bossa ao rock.

Também há algo mediterrâneo?

Porque toco o cavaquinho, por exemplo. Comecei a tocá-lo com María Pagés, com a sua companhia de ballet flamenco. Mas neste disco não toco o cavaquinho típico do samba, mas ao modo mais mediterrâneo: mais como na música grega. Precisamente em Novamente e Tempo afora.

"Desde o começo, a cultura brasileira apoiou-se no diálogo com outras culturas, por isso eu não faço mais que continuar essa linha germinal. A geração pós bossa desde os anos 60: Caetano Veloso, Tom Zé, Roberto Carlos, Chico Buarque... já abriu a bossa ao rock"

Mas tocas de tudo: a guitarra, o cumbus, o cavaquinho, várias coisas de percussão... E ademais tens muitos músicos contigo: João Ferreira, Bony Godoy, Márcio Bahia, Sergio Menem, Marcelo Martins, Paulo Borges, Alexandre Frazão e Pedro Pascual.

Foi muito importante o trabalho de diálogo e de apuro de Paulo Borges. Tivemos muita afinidade. E ajudou-me muito a conseguir o que queria, de tocar com o mínimo. Em O samba me diz canta Nancy Vieira, que é uma cantora cabo-verdiana. Ela vinha com a ideia de cantar com o sotaque brasileiro, mas pedimos-lhe que o fizesse com o seu. E isso achega uma parte africana -base da música brasileira- que é muito boa para o disco.

No 2006, durante a tua primeira visita a Europa, tocaste na Inglaterra e na Alemanha. Como começou a tua relação com Galiza?

Pois foi através de Ugia. No Brasil encontrou um disco meu e gostou. Conhecemos-nos e surgiu muita empatia musical e pessoal entre nós.

Estudaste música desde criança. Depois dos dois primeiros discos ganhaste o prestigioso Prémio Visa no Brasil...

Quando estudava via o mundo da música muito grande, mas eu queria aprofundar nele, percebê-lo. O prémio abriu-me muitas portas: é o mais importante para novos autores.

"Quando estudava via o mundo da música muito grande, mas eu queria aprofundar nele, percebê-lo"

Também foi importante na tua carreira a transcrição de partituras para song books como os de Chico Buarque, Tom Jobin ou Gilberto Gil. E o facto de que composições tuas fossem gravadas por intérpretes como Maria Rita, Ney Matogrosso ou Zélia Duncan.

O primeiro deles a gravar um tema meu foi Ney Matogrosso. É um intérprete muito performático, que vem do teatro. Gravou, a primeira, Novamente, e depois mais. Também foi importante a de Maria Rita, num disco que ficou segundo nos Grammy, como depois Zélia e agora o Renato Braz.

Algo mais?

O trabalho de Paulo Pastor com o desenho do disco. Ficou muito bem. Percebeu muito bem o que eu queria dizer. Foi muito inteligente e sensível. Mestre total.

Fred Martins © Cantos na Maré

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