E continuamos à espera da Alemanha?

À medida que as eleições alemãs se aproximavam multiplicaram-se as vozes que garantiam que depois das eleições é que tudo se resolveria: o novo governo deixaria de olhar para dentro, os problemas, em especial os do Sul, mereceriam outras respostas. Quase um mês depois continuamos à espera da Alemanha, que permanece sem governo – de certa forma é uma ironia para a tão propalada eficiência germânica –, a esquerda tem maioria no Bundestag, se considerarmos, obviamente, o SPD e os Verdes como partidos de esquerda e, enfim, parece que nada vai mudar na política alemã. Merkel segue, em aliança com os sociaisdemocratas ou com os ecologistas, e com ela prosseguirá a política austeritária que destrói salários, empregos e a vida das pessoas.

Cresce na Europa o mal-estar, a desconfiança e o medo em relação ao futuro, firmemente instalados, indiciando causas fundas, certamente ligadas ao sistema político, ao desemprego e à precariedade como regime de vida e de existência social

Ameaçada pela crise da dívida soberana e a quebra de solidariedade entre os diversos Estados-membros que ameaçam despoletar ressentimentos e rivalidades que julgávamos há muito ultrapassados, entre um Norte próspero que beneficiou largamente dos sucessivos alargamentos, da liberalização do comércio mundial e, claro, do euro, face a um Sul pobre enredado na armadilha da desregulação das trocas internacionais, da moeda única e da desindustrialização, cresce na Europa o mal-estar, a desconfiança e o medo em relação ao futuro, firmemente instalados, indiciando causas fundas, certamente ligadas ao sistema político, ao desemprego e à precariedade como regime de vida e de existência social.

A estratégia austeritária imposta por Berlim e praticada com zelo militante pelos governos dos Estados resgatados, uma e outros, combinando em grau desigual petulância ideológica e desconhecimento da história, acham que a crise das dívidas soberanas e dos desequilíbrios económicos se resolvem com políticas orçamentais restritivas. Ora, como atinentemente lembrou Helmut Schmidt no seu discurso ao congresso do SPD, em Berlim, em Dezembro de 2011, “quem acredita que a Europa pode, só através de poupanças orçamentais, recompor-se faça o favor de estudar o resultado fatal da política de deflação de Heinrich Brüning em 1930/32. Provocou uma depressão e um desemprego de uma tal dimensão que deu início à queda da primeira democracia alemã”. O resultado desta política está, hoje, bem exposto: a Grécia vive uma catástrofe económica e social que só tem paralelo com uma situação de guerra; Portugal, vergado pelo peso do serviço da dívida e de um governo comprometido com o seu pagamento integral, “custe o que custar”, tem como horizonte um declínio brutal dos salários e o empobrecimento generalizado das classes trabalhadoras, conquanto os banqueiros e seus gestores certamente prosperarão; um pouco por todo o Sul europeu a crise económica agrava o desemprego e a situação social.

No “olho do furacão” da crise e das respostas engendradas está o euro

No “olho do furacão” da crise e das respostas engendradas está o euro. Se bem que as dificuldades dos países do Sul resultem da combinação de múltiplos aspectos, externos e internos, a arquitectura da moeda única desempenha um papel decisivo. Como sublinha Phillippe Van Parijs, em entrevista à revista brasileira Carta Capital (Dezembro de 2012), “há um problema realmente sério na Zona do Euro. Temos um sistema muito instável e doentio por termos uma moeda comum. Quando um país torna-se menos competitivo, ele não pode desvalorizar a moeda. E assim a crise não é mitigada.” Nem, tãopouco, existem instrumentos legais e, principalmente, as condições políticas, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, epicentro da crise económico-financeira mundial, para que a resposta possa ser outra radicalmente diferente. Como expõe de modo magistral Perry Anderson, na edição portuguesa de Dezembro de 2012 do Le Monde Diplomatique, “não existe essa comunidade de destino […] que ligue governantes e governados numa ordem política comum, em que os primeiros pagam caro pela sua ignorância total das necessidades existenciais dos segundos. No simulacro europeu de federalismo, não podia haver uma união de transferência como no modelo americano. Quando a crise atingiu a zona euro, a sua coesão só podia vir, não da despesa social, mas do diktat político: o estabelecimento pela Alemanha, à frente de um bloco de pequenos Estados nórdicos, de programas draconianos de austeridade – impensáveis para os seus próprios cidadãos – dirigidos aos países do Sul doravante incapazes de recuperar competitividade graças à desvalorização da moeda.”

Alvitrarão alguns: mas os políticos e banqueiros que conceberam a moeda única não pensaram nisto? Será que estamos perante o “fracasso das elites”, como entende Jürgen Habermas, em El País (20 de Agosto de 2013)? Não creio que se possa falar em distração ou em fracasso. Este só existe se as elites perseguissem algo diferente do que têm feito. Por exemplo, a união monetária foi deliberadamente construída sem o seu contraponto social, pois é desta forma que melhor se defendem os interesses dos mercados financeiros e seus actores que, por via da moeda única, desarmam os Estados, incapacitando-os de responder à violência por eles produzida. A Pierre Bourdieu (Contra-fogos) pertence uma das primeiras e mais avisadas críticas a este projecto político, quando em 1997, em Francoforte, afirmou que “não podemos esperar da integração monetária que assegure a integração social. Muito pelo contrário: sabemos, com efeito, que os Estados que quiserem preservar a sua competitividade no interior da zona do euro a expensas dos seus parceiros terão como único recurso diminuir os encargos salariais reduzindo os encargos sociais; o dumping social e salarial, a flexibilização do mercado de trabalho serão os únicos recursos deixados aos Estados, privados da possibilidade de jogarem com as taxas de câmbio. Ao efeito destes mecanismos virá somar-se sem dúvida a pressão das autoridades monetárias, como o Bundesbank e os seus dirigentes, sempre prontos a pregarem a austeridade salarial”.

Os Estados que quiserem preservar a sua competitividade no interior da zona do euro a expensas dos seus parceiros terão como único recurso diminuir os encargos salariais reduzindo os encargos sociais

Por outras palavras, a união monetária sem um Estado social é a arma atómica contra as garantias nele adquiridas, a começar pelas laborais. Se a concorrência no mercado de trabalho é global, ela é também europeia, como é hoje bem evidente. Todas as alterações recentes em Portugal – desde a flexibilização, passando pelo aprofundamento da precariedade, nomeadamente através do alargamento dos motivos para o despedimento, pelo esvaziamento da contratação colectiva, pela redução do custo das indemnizações, enfim, pela redução dos salários – têm sido feitas evocando sobretudo a falta de competitividade face aos outros países europeus, em especial face à Alemanha. Esta, por sua vez, agravando os problemas dos países do Sul, reforçou a sua competitividade em cima dos trabalhadores que nela trabalham. Como escreve Anne Dufresne, na edição de Fevereiro de 2012 do Le Monde Diplomatique, as reformas do mercado laboral empreendidas pelos governos de Gerhard Schröder entre 1998 e 2005 permitiram à Alemanha incrementar fortemente a sua competitividade, ainda que tal se tenha traduzido numa derrota social para os assalariados: na década passada os seus salários reduziram-se, em termos reais, em 4,5%, enquanto, por exemplo, em França e em Portugal subiram quase 10% nesse mesmo período.

“A Alemanha, que foi mais responsável do que qualquer outro Estado pela crise do euro através da sua política de repressão salarial, dentro do país, e de capital barato, no exterior, foi também a principal arquitecta das tentativas de fazer com que a factura fosse paga pelos mais frágeis”

Mas não só, a Alemanha criou aquilo que Schröder considera ser, como afirmou triunfalmente no Fórum Económico Mundial de Davos, em 2005, “um dos melhores sectores de baixos salários na Europa”. Resposta em Portugal, na Grécia, em Espanha, na Itália, em França, um pouco por todo o lado: instituir o dumping salarial, isto é, colocar os salários de quase todos a preço de saldo. Sejamos claros, não poupando nas palavras, como faz Perry Anderson, no artigo já citado: “a Alemanha, que foi mais responsável do que qualquer outro Estado pela crise do euro através da sua política de repressão salarial, dentro do país, e de capital barato, no exterior, foi também a principal arquitecta das tentativas de fazer com que a factura fosse paga pelos mais frágeis”.  

Face a isto, o bom uso da razão obriga-nos a ser pessimistas. Mas nada está definitivamente jogado: o futuro continua a depender daquilo que formos capazes de fazer no campo da política, através da acção colectiva organizada, defendendo os nossos interesses, os de todos que vivem do seu trabalho. Incompatíveis com o liberalismo tingindo de um mercantilismo exacerbado e de uma ética moral com laivos do puritanismo protestante, na qual a punição é vista como regeneradora, é necessário escolher soluções progressistas, baseadas no bem-estar social, nos justos (e nada utópicos) termos colocados por Jürgen Habermas, no seu Um ensaio sobre a constituição da Europa. Para as concretizar temos de reconstruir e aprofundar a “solidariedade de facto” referida na Declaração Schuman, hoje desprezada pelas elites dirigentes europeias, ora por convicção ideológica, ora por mero cálculo político, ora também por subserviência despudorada a Berlim.

Sem esta (improvável) construção política, a saída da crise por parte dos Estados periféricos, considerando o cenário de permanência no euro, só pode ser feita com base no empobrecimento de quem vive do seu trabalho, por via da compressão radical dos salários

A “solidariedade de facto” depende de muitas medidas como a mutualização da dívida pública dos Estados, a uniformização fiscal, o aumento significativo das transferências financeiras dos países ricos para os pobres – o que requer que a Europa se equipe de um orçamento compatível –, e a construção do Estado social a uma escala europeia. Como explica Phillippe Van Parijs, o Estado social está organizado a um nível inferior ao da união monetária e do mercado único, isto é, enquanto estes têm escala europeia, aquele funciona a uma escala nacional. Estando as economias dos diferentes países vinculados a uma mesma moeda, quando surgem problemas de competitividade económica o resultado é o aumento do desemprego que, por sua vez, leva ao aumento das despesas públicas e com isso ao agravamento da dívida. Ou seja, a uma espiral recessiva que é alimentada pela redução das despesas com saúde, educação e protecção social. A solução passa, entende Van Parijs, por se organizar o Estado Social a uma escala europeia, financiado pelo orçamento comunitário e não dos Estados, equipado nomeadamente de um rendimento básico comum a todos os europeus, fazendo com que as medidas ditadas por Berlim não lhe sejam indiferentes do ponto de vista financeiro.

Ou seja, em linha com o enunciado em 1997 por Pierre Bourdieu (Contrafogos), “só um Estado social europeu seria capaz de contrariar a acção desintegradora da economia monetária. […] capaz de controlar, antecipando-os, os efeitos sociais da união reduzida à sua dimensão puramente monetária, segundo a filosofia neoliberal que entende fazer desaparecer todos os vestígios do Estado (social) como outros tantos obstáculos ao funcionamento harmonioso dos mercados”. Sem esta (improvável) construção política, a saída da crise por parte dos Estados periféricos, considerando o cenário de permanência no euro, só pode ser feita com base no empobrecimento de quem vive do seu trabalho, por via da compressão radical dos salários. 

De nada serve continuarmos à espera da Alemanha, como Penélope esperou por Ulisses em Homero, pois o caminho está antes na acção colectiva organizada, em todas os níveis – europeu, nacional, local –, por parte das forças políticas e sociais progressistas

De nada serve continuarmos à espera da Alemanha, como Penélope esperou por Ulisses em Homero, pois o caminho está antes na acção colectiva organizada, em todas os níveis – europeu, nacional, local –, por parte das forças políticas e sociais progressistas, incluindo alemãs, tendo em vista a construção de um outro compromisso e hegemonia políticos. Como peça-chave coloca-se a construção da “comunidade de destino”, de que nos fala Perry Anderson, indo buscar obviamente o conceito a Max Weber, desenhando um sistema redistributivo que seja indiferente às fronteiras e à situação económica dos Estados membros. Esta luta tem de ser travada lado-a-lado com uma outra, a da desnaturalização e desfatalização deste pânico económico e político que nos consome e arruína. Se não formos bem-sucedidos – e nada aponta para que o sejamos –, a Europa não resistirá às tensões sociais e políticas que a dilaceram hoje. E com o seu colapso condenarse à irrelevância e a larga maioria dos europeus a um futuro bem cinzento.

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