Para que serve a imagem de Aylan Kurdi?

Milheiros de pessoas estão a chegar às portas de Europa desde a Ásia central e Sul-ocidental, e desde o norte da África. Fogem do terror da guerra nos seus países e da miséria, caindo em redes mafiosas de tráfico de pessoas. Os governos europeus, incapazes de qualquer resposta conjunta, discutem sobre o número que a cada um toca recolher. Até aqui a explicação na imensa maioria de meios de comunicação, que renunciaram a qualquer informação própria em matéria internacional, como demostrou Udo Ulfkotte tão reveladoramente. O resto dos quilómetros de tinta e de imagens é apenas enfeite. Um enfeite poderoso que atingia há só uns dias as suas quotas mais altas com a sobreexposição, em absoluto inocente, da imagem de Aylan Kurdi, a criança de 3 anos que apareceu morta na praia de Bodrum, na Turquia, enquanto tentava chegar à ilha grega de Kos.

Aquela imagem poderia, pola sua força, ter-se transformado numa espécie de metonímia: numa parte polo todo com imensas possibilidades. Poderia ter exemplificado o caso de milheiros e milheiros de crianças e adultos que em países como a Síria, a Líbia, o Iraque, o Afeganistão ou o Curdistão estão a enfrentar a matança indiscriminada nas suas casas, nas suas cidades, contra as suas famílias. Poderia ter-se transformado no pretexto para falar das causas e das dinâmicas que subjacem a essa mesma matança, dos agentes que se lucram e dos interesses ocultos que alimentam todo esse sistema de dor que se chama imperialismo e que se manifesta das formas mais variadas e mesmo, tantas vezes, contraditórias. Mas não se transformou nisso. Antes ao contrário. Individualizado, separado de qualquer relato com vontade verdadeiramente explicativa, Kurdi, sem querê-lo (mas porque sim queriam uns poderes mediáticos com uma agenda específica e bem marcada) converteu-se na ferramenta com a que apelar às emoções, em lugar de à razão. E, precisamente por isso, não é um recurso empregado ao acaso.

Quem tem como estratégia fazer aparecer essa imagem por toda a parte sabe que na Europa onde todo se esquece asinha, muitas pessoas bem intencionadas hão contribuir a essa difusão, acompanhando-a de mensagens de dó e tristeza. Sabe que hão assolagar as redes sociais e até organizar algumas mostras públicas de apoio aos refugiados e refugiadas que ainda caminham polos Balcães e navegam polo Mediterrâneo a caminho de uma Europa que lhes narraram próspera e livre. E sabe que, com cada repetição, a resposta bem intencionada se irá decantando cada vez mais para o humanitarismo, porque essa é a primeira resposta, a de urgência, a sentimental e a normal. Quem tem como estratégia a repetição até a náusea do corpo de Aylan Kurdi nese escorço morto não tem qualquer vontade de socializar a situação de extrema violência importada a que estão a ser submetidos milhões de pessoas no denominado Oriente Próximo e Meio, e na África árabe e subsaariana. Nem por acaso. Se fosse essa a sua intenção, colocaria nas portadas, lado com lado com o pequeno Kurdi, a foto de uma cimeira da OTAN, ou a foto daquele famoso «trio dos Açores», para fazer memória e apontar, claramente, para as origens de toda a barbárie. Mas não é disso do que interessa falar. Interessa falar do corpo de Aylan Kurdi, não das forças que o arrastaram ali. Interessa falar da miséria do seu país e da violência, não das agendas que as produziram e obrigaram a sua família a afogar no mar. E assim, enquanto todo o mundo fala de Aylan Kurdi, ninguém fala de Aviano, de Marham, de Saint Dizier, de Solenzara, de Gioia del Colle, de Trapani, de Sigonella ou de Akrotiri, que não são praias de morte, mas algumas das bases da OTAN para bombardear Líbia, para dar apoio logístico a al-Nusra e ao Daesh contra o governo da Síria (Turquia mediante) ou para rebentar o Iraque quando interessa, que é habitualmente, ademais.

Afinal, é tão apurada a resposta primária que não fica resto para anotar as responsabilidades reais, que são as do capitalismo que se lucra com a instabilidade de uma região de imensos recursos naturais aos que é assim imensamente mais doado aceder e rapinar. Tampouco para falar da Europa-fortaleça e dos 13,000 milhões de euros gastos só no que vai de ano em políticas de contenção (sic), como se se tratasse de uma “ameaça aos valores europeus” ou de “pingueiras”, tal como conceptualizado por toda a direita europeia, desde ultradireitistas como Viktor Orbán ou o ministro espanhol Fernández Díaz, até autoproclamados liberais como David Cameron. É certo que, na altura, se ten superado já a estupidez de que todo seja consequência de um efeito chamada. Mas que ninguém se engane: se hoje se fala por toda a parte das refugiadas não é porque seja uma crise nova, mas porque essa crise está agora a bater maciza e desesperadamente às portas da fortaleza Schengen e morrendo asfixiada em caminhões frigoríficos abandonados na autoestrada em plena UE. E isso já não é assim tão comum. É, com efeito, o suficientemente incomum como para chamar a atenção e para fazer necessária essa estratégia de sobreabundância de detalhes que não deixem ver a fraga. E o que importa é precisamente a fraga, isto é, a dinâmica, que já é vella.

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