Bernie Sanders, do concelho aberto à Casa Branca?

Pola primeira vez um estadunidense que se reivindica “socialista” está em condições de desputar com posibilidades as primárias do Partido Democrata para as eleições presidenciais dos EUA. A pesar da estigmatização, o “socialismo” de Bernie Sanders está muito mais próximo da socialdemocracia europeia do que da ideología do seu admirado Eugene V. Debs, o que não deixa de ser percebida como uma opção radical no espectro ideológico dos EUA. Filho de emigrantes judeus, Sanders criou-se em Brooklyn, começando a militar de estudante na Young People’s Socialists League, e participando dos movimentos sociais contra a guerra do Vietnam e polos direitos civis.

Como político candidatará-se polo pequeno Partido da União e a Liberdade para senador e gobernador do estado de Vermont, sem muito sucesso. Na década de 1970 reorientou o seu ativismo em projetos de educação popular, para voltar à contenda eleitoral nos oitenta, quando foi eleito alcaide de Burlington, a cidade mais grande de Vermont, que regerá de 1981 a 1990. A vitória municipal de Sanders fora saudada polo The Vermont Vanguard Press, um semanário local, com um número extraordinário em que proclamavam a República Popular de Burlington (1). Uma realidade política que racha com o mito monopolizador do país dos cowboys capitalistas, e que temu mas raízes mui prévias a Sanders, botadas por uma tradição democrática radical da que nem o aspirante à Casa Branca é o melhor exponente.

Para compreender este espírito democrático de Vermont e outros estados dos EUA há que remontar-se a uma geografia política mui diversa, que funcionou como um gigantesco laboratório de experimentação social: das resistentes democracias indígenas, como a Confederação Iroquesa da qual os cuáqueros aprenderão as técnicas de autogestão às comunidades utópicas dos Pilgrims, descritas por Tocqueville como autónomas e praticantes do assemblearismo; dos êxodos revolucionários como o dos colonos “indianizados” de Jamestown (Virgínia) às sociedades intencionais do socialismo utópico, chegando às comunas hippies ou ao recenté Kilombo Intergaláctico de Durham (Carolina do Norte), assim como as propostas pós-industriais de Detroit. No caso de Vermont e de toda a Nova Inglaterra, o assentamento nas suas terras do congregacionalismo, uma póla protestante que rejetia qualquer forma de hierarquia eclessiástica ou de poder centralizado, deu uma forte base cultural à autogestão, não só da religião, mas de toda a vida social. Estas comunidades defenderom a sua democracia direta de base municipal na redação da sua Constituição estatal, uma das mais radicais dos EUA, e continuaron a praticá-la até hoje, se bem cada vez de uma forma mais desnaturalizada. Estas assembleias populares de auto-governo local, chamadas na Nova Inglaterra town meetings, espelham-se até na cultura popular: numa famosa série televisiva, emitida na Galiza em espanhol como Las chicas Gilmore, aparecem amiúdo  cenas cómicas destas assembleias ou concelhos, dirigidas por um alcaide algo patoso mas bonachão que, como esses chefes amazónicos descritos por Pierre Clastres (2), o povo não trata demasiado a sério, conjurando constantemente através da retranca a emergência da hierarquia.

Murray Bookchin e Janet Biehl (boa conhecedora, a propósito, das tradições democráticas galegas) tirarão da sua própria experiência como vizinhas da Nova Inglaterra muitos elementos para a sua proposta do municipalismo libertário, uma das fontes teóricas do giro anti-estatal do independentismo curdo. Foi aí, na luta polo auto-governo de Vermont onde coincidiram Bookchin e Bernie Sanders, embora não precisamente co mesmo lado da trincheira. Em 1981 a confederação da cidade em town meetings, descentralizando o poder, mas o alcaide apenas chegou a aceitar uma versão light na qual as Neighborhood Planning Assemblies eran só um órgão consultivo para legitimar a gestão da alcaldía. Ainda, Bookchin criticou duramente o paternalismo de Sanders e o seu desvirtuado socialismo, estranhamente compatível com os projetos expansionistas dos grandes empresários locais (3).

Profundizar na democracia radical de base ou concentrar o poder em nome da eficácia? Eis a disjuntiva em que se encontrou a esquerda de Burlington, e que é tão comum que exige uma história comparada da qual poder tirar conclussões práticas: as aseembleias de sans-culottes e os jacobinos, os soviets e o Partido Bolxevique, as coletividades anarquistas e o PCE… Ou Correa e a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, Álvaro García inera e os ayllus anti-estatais. Ainda, se se quer, o debate nas CUP por volta do salto à política nacional, ou a vertiginosa desativação dos círculos de Podemos. No caso norteamericano Thomas Jefferson estava obsessionado com a descentralização do poder em “repúblicas elementais”, dividindo os condados em distritos (4) (mais ou menos o equivalente à divisão dos nossos municipios em paróquias), de forma que se incrustasse a democracia direta na vida diária. Tal e como observou Hannah Arendt, “Jefferson sabia mui bem que o que propunha como salvação da república significava na realidade a salvação do espírito revolucionário da república. Todas as suas explicações do sistema revolucionário começavam com um recordatório do papel desempenhado polas pequenas repúblicas como a “energía que na sua origen animou a nossa revolução”. De aqui que confiasse nos distritos como o instrumento para conseguir que os cidadãos continuassem a fazer o que se tinham mostrado capazes de fazer durante os anos da revolução, é dizer, atuar responsavelmente e participar nos assuntos públicos” (5).

É agora o devir da revolução bolivariana o que proporciona uma nova situação de laboratório, com resultados que serão decissivos para as classes populares, onde poder entender as tensões entre a centralização e a descentralização dos processos revolucionários. Após a derrota eleitoral nas pasadas eleições legislativas, o chavismo intenta agora apoiar-se nos cabildos e demais organismos de base do chamado Estado Comunal, que no seu dia provocavam reticências entre alguns dirigentes do PSUV.

Notas

1. Dados extractados de: Bhaskar Sunkara, “Un socialista al asalto de la Casa Blanca”, Le Monde Diplomatique en español, nº 243, janeiro de 2016, p. 3.
2. Pierre Clastres, La Societé contre l’État. Recherche d’Anthropologie Politique, Paris, Éd. Du Minuit, 1974. Lisón Tolosana apontou na sua Antropología Cultural de Galicia (Madrid, Siglo XXI, 1972), que a figura galega do alcaide pedáneo, sorte de autoridade indígena, era largamente ridiculizada no folclore. Lamentavelmente não dá exemplos nem referências. Em todo caso, não há que esquecere a coexistência de dous tipos de pedâneos: o eleito em concelho aberto e o imposto polo municipio como correia de transmissão.
3. Murray Bookchin, Urbanization Without Cities, Montreal/Nova Iorque, Black Rose Books, 1992, pp. 270 e ss.
4. Carta de Jefferson a John Cartwright, 5 de junho de 1824. Citada em: Hannah Arendt, Sobre la revolución, Madrid, Alianza Editorial, 1988, p. 257.
5. Hannah Arendt, op. cit., p. 259.

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