Charles Taylor, o direito à diferença

Dizia o conde Joseph de Maistre, o mais brilhante defensor do absolutismo monárquico e debelador da Revoluçom Francesa, que a Constituiçom de 1795 estava dirigida ao home em geral mas que, o tal destinatário, carecia de existência: “No curso da minha vida tenho conhecido franceses, italianos ou russos, e incluso sei por Montesquieu que pode haver persas, mas, o que nunca tenho visto foi o home; se ele existir ignoro-o por completo”.

O ser humano abstracto, sem atributos, é umha categoria fulcral da tradiçom liberal clássica, de Hobbes e Locke a Kant, prolongada até a Rawls, tam reconhecido na comunidade académica. A conceiçom atomística do ser humano desvinculado do seu contexto comunitário, comporta o risco de acentuar a retórica dos princípios incondicionados e ideais em detrimento das exigências da ética quotidiana da diferença: a da desigualdade económica e de género, a da discriminaçom das minorias étnicas, culturais ou nacionais. A antinomia entre a universalidade abstracta dos direitos humanos e a crua realidade da segmentaçom social e da capacidade de acesso aos mesmos, marca umha linha de fractura cada vez mais manifesta.

A ironia do conde de Maistre e as vozes ancestrais “da terra e dos mortos” que Maurice Barrés percebia, proporcionam elementos argumentais certeiros para a crítica da razom ilustrada com independência do seu inegável viés retrógrado. A fissura aberta pola ética da diferença no edifício do discurso universalista nasce do sacrifício das categorias de identidade e reconhecimento, de raiz dialógica, em favor da ética universalista e genérica baseada na razom monológica: comunitarismo identitário frente a atomismo individualista.

Falamos de categorias de filosofia política, mas aludimos ao presente quotidiano. Reparemos na conflitualidade identitária que dilacera Europa. O burka e a mesquita podem simbolizar a censura à diferença identitária acentuada pola discriminaçom económica. Pensemos na preteriçon dos fastidiosos “dialectos” frente ao rutilante prestigioso do “idioma oficial”. O rechaço ao imigrante, á mulher trabalhadora, ao separatista, à orientaçom sexual divergente, ao mendigo. Os conflitos de identidade dividem flamencos e valons, orientam as vindicaçons nacionais desde o Curdistám às “fronteiras interiores” de Europa e o Canadá. O universalismo proclamado pola tradiçom republicana francesa há de ser confrontado com o irredutível galicanismo da República; lembremos a excepçom cultural esgrimida por França para controlar o impacto cultural dos fluxos comerciais.

A dialéctica de inclusom/exclusom produz monstros nos impolutos países campions da razom universal e o liberalismo incontaminado. Basta observar a campanha eleitoral republicana nos E.U.A., atravessada por umha impossível muralha chinesa defensiva, ou o Brexit británico que pretende declarar alienígena a todo imigrante de Calais para o sul.

Líamos neste dia a notícia de que o Instituto Berggruen decidira galardoar Charles Taylor (Montreal, 1931) polo seu eminente contributo ao pensamento dialógico e á governança democrática global. A ninguém surpreendeu o destaque da notícia no diário El País de Juan Luis Cebrian, presidente do grupo Prisa. Ele, e o seu ilustre amigo Felipe González, som figuras destacadas do mencionado Instituto. Persoalmente, preferimos sócios menos mediáticos do mesmo como Amartya Sen, John Gray ou Joseph Stiglitz a quem tanto devemos da nossa compreensom da governança global .

Andam polas livrarias as obras de Charles Taylor iluminando perspectivas essenciais da sociedade actual, como a emergência da identidade moderna ou o fenómeno da secularizaçom. O meu primeiro encontro com o filósofo foi porém casual, fruto do meu irreprimível hábito de passear livrarias. O título que prendeu a minha atençom foi El multiculturalismo y “la política de reconocimiento, um pequeno breviário que resume um simpósio celebrado em 1994 na Universidade de Princeton arredor dum artigo de Taylor (1992) que dá o título a obra. A reflexom de Taylor sustém a pertinência das demandas de reconhecimento por parte das comunidades subordinadas, em particular, a do seu Quebeque natal. As categorias de comunidade, razom dialógica, pertença, identidade e reconhecimento tecem o seu discurso.

O xordo confronto entre liberalismo atomista e comunitarismo cultural impregna o debate político actual. Em Espanha, podemos observar a interesseira polémica que pretende polarizar o espectro político no dilema excludente: ou “constitucionalista” ou “nacionalista”. Os primeiros, coroados no Olimpo da universalidade ética, os segundos, agentes vectores de umha ideologia particularista e insolidária que apenas oculta umha inconfessável demanda de privilégios. A grosseira dicotomia é um episódio mais da estratégia de acondicionamento massivo da opiniom pública ao quadro interpretativo elaborado polos hidden persuaders do nacionalismo banal do Estado. O objectivo é converter em mero sentido comum a única identidade nacional democrática e verdadeira.

A crítica comunitarista ao individualismo universalista genérico arvora, polo contrário, a razom do subalterno e o dissidente. Formam na fileira os filósofos do direito à diferença como os norte-americanos Alasdair MacIntyre, Michael Walzer e Michael Sandel, os canadianos Charles Taylor e Will Kimlicka, o germano hebraico Amitai Etzione ou Zigmunt Bauman, o filósofo polaco da modernidade líquida. Umha viçosa pola da filosofia política. Nom estranha a forte presença hebraica na filosofia do reconhecimento, filhos, afinal, da memória do gueto. Tampouco a escassa simpatia por esta perspectiva filosófica dos partidários da razom de Estado e o nacionalismo banal.

Vindicar o direito à diferença e o seu reconhecimento permite avançar nas políticas de convivência interétnica e multicultural e defender civilizadamente os conflitos irresolutos das “fronteiras interiores”. Identidade e demanda de reconhecimento som as coordenadas esgrimidas polas naçons culturais, como a Galiza resistente, e a olhada que permite compreender o grande sul que interpela a Europa.

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