A cabana do filósofo nos montes de Novoneyra

O monte foi sempre lugar de iluminaçom. Um observa pequeno o mundo desde arriba, como Nietzsche experimentou. A cabana, como refúgio ou retiro, é ágora privilegiada para falar consigo mesmo: Heidegger em Todtnauberg, na Selva Negra, e Thoreau no lago Walden, em Concord, Massachusetts, som testemunhas excepcionais.

Lugares de retirada: “Vivir quiero conmigo” sussurrava Frei Luís no seu humaníssimo horto renascentista onde queria cultivar espírito e natura. In eremo, no deserto, reza a legenda do brasom que preside a antiga Casa de Exercícios da Companhia em Compostela, que foi em tempo o Instituto Gelmírez da minha adolescência e hoje Faculdade de Filosofia.

Retirar-se é também, cada vez mais, exercício imperioso da necessidade de desconectar. De defender-se das redes sociais que nos enredam ou da bocha tecnológica que nos ameaça. Unplugged, desconectado, foi o termo consagrado para designar o concerto acústico, intimista, que foge da amplificaçom em procura de proximidade: o ideal da música de cámara. A espessura da vida quotidiana demanda clareiras de sossego onde contemplar a luz sem se sentir interpelado.

A cabana da que falamos está em Roxe de Sebes, paróquia de Soldom da Seara, Quiroga, e a estáncia a que aludimos o lapso que vai de novembro de 1983 a dezembro de 1989. O filósofo chama-se Ignácio Castro Rey (Compostela, 1952), professor na em Madrid actualmente e cultor assíduo dum blogue em permanente estado de vigília. Ignácio aterrou há anos na minha mesa de leitura com dous livros singulares: o Roxe de Sebes e Sociedad y barbarie. O primeiro, um livro fragmentário e contemplativo em procura da identidade própria na montanha luguesa; o segundo, um brilhante panfleto censório da philosophia perennis marxista. Nom é caso de aludir agora a outras publicaçons de Ignácio Castro, a nom ser ao breve opúsculo em galego Pontes co diaño, que recolhe umha mancheia de entrevistas com o autor que nos permitem adivinhar o estilo de pensar que o caracteriza.

A montanha é um espaço de criaçom e escuita. O ar, a luz, o silêncio, tenhem algo de primordial que convida a espir o estilo e a prescindir do supérfluo. Esta é a raiz do estilo minimalista que impregna Os Eidos ou Roxe de Sebes. Prosa enxuita, como o arvoredo das encostas que se transforma em fragmentado tapiz arbustivo nas alturas.

Roxe de Sebes vem de sair em cuidada versom castelhana (2016, Frontera digital) depois das duas ediçons em galego, a da Fundaçom Luís Seoane (2011) e a compostelana de Noitarega (2001). O singular dietário montanhês chegou ao meu conhecimento há anos por mediaçom da minha amiga de infáncia, Consuelo Garcia Devesa, professora de espanhol durante anos numha universidade norte-americana, devota dos haikus japoneses. Daquela nom conseguira encontrar o breviário nas livrarias; dei com ele anos depois quando saiu a ediçom da Fundaçom Seoane. Um livro esquivo, como se vê, como um ratinho de monte, umha imagem que lhe acai bem.

Roxe tem algo de breviário contemplativo, ver passar o tempo, sucederem-se as estaçons é o argumento principal. Do impulso essencial da retirada in eremo nada se explica nele ainda que algo se intui quando o livro vai concluindo. Talvez, o aprendiz de filósofo que subiu ao monte nom coincida exactamente com o que baixou. Ele saberá, quem o sabe?

Leio na biografia de Philip S. Dick de Emmanuel Carrère, Yo estoy vivo y vosotros estais muertos: “Glenn Gould dizia que existe para cada um umha proporçom óptima, que muitas vezes ignoramos, entre o tempo passado a sós consigo mesmo e o passado em companhia dos nossos semelhantes. Ele, (Philip S. Dick), necessitava dias inteiros para purificar-se de umha hora passada com outros”. Bom, aquele fabulador de fantasias paranóicas sentia-se obrigado a ocultar-se sem, apesar disso, ter sido capaz de passar desapercebido aos sabuesos – sabujos dizem em português – do senador McCarthy. Como quer que seja, a arte da retirada, mesmo intermitente, está-se convertendo em recomendaçom preceptiva quase, conforme o recinto persoal próprio se satura de mensagens, imagens e ruídos. O sono é o remédio maior, o silêncio diante do teclado, do livro, a divagaçom do passeante solitário, som antídotos habituais.

Quê levou o filósofo compostelano à morada de Roxe? Um caminho tao, talvez, empreendido no ponto e hora da sua madureza vital? Os breves aforismos que enfiam a crónica montanhesa parecem apontar, com efeito, em tal direcçon: A necessidade de contemplar a natureza primordial, de deixar fluir o tempo sem propósito nem juízo. Mas, a crónica acaba insinuando cara o final umha dimensom mais humana, conectada talvez com as ocultas razons daquele caminho empreendido em busca de alturas. A longa sombra paternal, a convivência familiar cancelada, a saudade da casa grande do Picom, sobrevoam na origem e destino do percurso físico e iniciático.

A mesma natureza cobra espessura humana a final do relato: o enterro dum amigo na aldeia do Outeiro, um incêndio sufocado com ajuda de vizinhos amigos, algumha incursom no Soldom, o frio persistente da cabana, o corço fugitivo, a presença de javalis. Também a insatisfaçom polo livro projectado sem poder ser concluído, o propósito atrasado de abordar por fim o porvir.

O caminho do tao acaba virando em retiro dos quarenta dias e quarenta noites de Jesus antes de empreender a proclamaçom do Reino. Transformando-se em exercício ascético de busca de certezas provisórias como a unidade do visível e o invisível, como a eternidade da morte ou a singularidade incessante do universal, que anota de passada o filósofo no apontamento de junho de 1987.

Grazas ás socias e socios editamos un xornal plural

As socias e socios de Praza.gal son esenciais para editarmos cada día un xornal plural. Dende moi pouco a túa achega económica pode axudarnos a soster e ampliar a nosa redacción e, así, a contarmos máis, mellor e sen cancelas.