O ano das máscaras que caem ou 'o rei vai despido'

Se uma cousa tem de bom a quantidade enorme de tinta vertida e de horas de emissão à volta do conflito catalão e da política bifronte do Estado espanhol ao respeito — repressiva por um lado, negadora da realidade polo outro — é que todo o mundo está a ficar perfeitamente retratado conforme o drama avança e os atores e atrizes vão dizendo as suas frases. Quem tirar neste momento uma fotografia fixa terá já uma imagem de máscaras caídas. Ou, mais claramente: uma revelação similar àquela do conto de H. C. Andersen em que uma criança apontava para o rei e anunciava que ia despido.  

O primeiro a ficar despido foi o governo espanhol. Desmascarado, o que ficou à vista foi a incapacidade para respeitar a vontade política da maioria catalã — aliás, da sua maioria mais mobilizada e activa — e a necessidade urgente de reconquistar o poder institucional e o seu aparato. E aqui há que entender «reconquistar» no sentido de fazer-se dono dele, possuí-lo efetivamente e, portanto, poder manuseá-lo para o interesse geral da operação ou para interesses mais concretos de cada momento. Por exemplo, lançando a BRIMO a atropelar manifestantes para provocar uma reação violenta que depois seja utilizada para «legitimar» toda a operação e, de passada, para romper a linha de cumplicidades da população com os Mossos d’Esquadra que se negaram a espancar votantes durante a jornada de 1 de Outubro.

O seguinte foi o sistema judicial. É verdade que a judicialização da política no Estado espanhol não é qualquer novidade. Ao contrário, é um recurso bem à mão de organizações da ultradireita e do grande capital para, por exemplo, penalizar de novo o aborto, ilegalizar organizações políticas incómodas ou tombar leis aprovadas em parlamentos nacionais contra a pobreza energética ou contra os espectáculos de maltrato animal. Mas a deriva judicial do conflito na Catalunha promovida desde o governo, inclusive deitando ao lixo a mínima estética da separação de poderes, tem deixado acima da mesa situações de gravidade sem muito precedente. Por exemplo, a invenção por parte do Tribunal Supremo do direito penal com efeito boomerang: se a polícia emprega a violência contra manifestantes significa necessariamente que quem se manifesta é violento e, portanto, é lícita a sua repressão. Ou, por exemplo, a retirada de uma euro-ordem de detenção de exiliados em função dos interesses da minoria parlamentar na Catalunha para evitar a investidura de Carles Puigdemont como presidente. E isso para não falar já dos gritantes casos de prisão sem juízo de líderes políticos e sociais que se vêm somar à lista de presos e presas políticas no Estado espanhol — que já existia, mas que com estes novos casos ficou à vista mesmo de quem até agora preferia não ver.

Com o poder executivo e o poder judicial desmascarados, a lógica obriga a considerar comprometido o conjunto do estado. Um estado, o espanhol, que descansa a sua legitimidade hoje no conceito de uma transição à democracia há quarenta anos que significava cortar pacificamente com a ditadura, mas que, na prática, consistiu mais bem em disfarçar os seus poderes fáticos, sem tocá-los demasiado, para que não se opusessem à reforma estética da fachada do edifício. E isso tem consequências.

O resultado é um Estado em dous níveis que permite encher o peito com uma retórica a cavalo entre sócio-liberal e conservadora-liberal e, ao mesmo tempo, conservar mais ou menos oculta uma ossamenta filofascista — no mínimo — que deita por terra o relato principal quando fica exposta. Um estado profundo que mantém uma monarquia tão desprestigiada que teve que dar passo à seguinte geração para ter a mínima hipótese de se perpetuar; que conserva juízes adeptos ao nacional-catolicismo; que emprega polícia política com abundância de torturadores e impunidade; meios de comunicação que reproduzem o franquismo sociológico aprendido durante mais de quatro décadas; um exército que se anuncia disposto a pôr os tanques nas ruas; uma política de perseguição de objetivos internos e repressão de baixa intensidade; e grupos de choque aparentemente sem qualquer laço com essa estrutura, mas que agem sempre na direção dos seus interesses, impedindo atos públicos, atacando simbologia catalã, queimando locais do inimigo ou proporcionando provas falsas de actividades violentas do independentismo que desemboquem de novo no círculo da repressão «legítima» por parte do Estado. Todo isto pode ser visto em marcha — se é que há verdadeira vontade de ver — na Galiza, em Euskal Herria ou no conjunto dos Països Catalans, e também lá onde o Estado detectar um problema de fundo que o questionar, por exemplo na luta polo soterramento dos trilhos em Múrcia que já não é só polo soterramento dos trilhos ou, antes, na luta do Gamonal, que já ninguém parece lembrar. Mas foi a decisão maioritária do povo catalão de construir um novo marco próprio e independente o que, efetivamente, colocou isto a olhos de todo o mundo de uma vez para todas, ao ponto de que, hoje, negá-lo seja um exercício de cinismo cúmplice.

O último a ficar despido foi a esquerda espanhola, que também é Estado, por sinal. De novo, quem quiser olhar, já foi quem de ver há tempo que a insistência dessa esquerda em conservar o marco espanhol, em não criticá-lo a sério, significava uma aceitação de base de todas as contradições, por mais que em público se diga o contrário. É o que tem a retórica, que pode ser apontada em qualquer direção com independência da realidade. É grave que os chamados ao diálogo desaparecessem tão asinha como o Estado despejou a Generalitat e começou a encarcerar ou mandar gente para o exílio; é grave que essa esquerda que dizia querer solucionar o problema pola via política permaneça agora no mais absoluto silêncio, apenas movendo levemente a cabeça em sinal de desaprovação pola violência dos últimos dias, mas sem abrir a boca a respeito da questão de fundo. Mas mais grave é pretender que pode haver soluções políticas num Estado edificado à volta de «Una, grande y libre» e «Viva la muerte» que não sejam a ruptura republicana dessas nações com o Estado. A popularização nas redes sociais de expressões como «esquerda tricórnio», que não deixam de ser uma picada ocorrente para agudizar as contradições, mas que não existiam há apenas meses, serve de espelho a um avanço significativo na tomada de consciência de onde é que estamos. E isso não se explica sem o conflito na Catalunha.

Fica por ver, ainda, se esta «luz catalã» que tirou as máscaras do Estado para milhares de pessoas — não só na Catalunha — que antes confiavam razoavelmente no sistema acaba também deitando-se sobre o verdadeiro rosto oligárquico e neoliberal da União Europeia. O que é seguro é que cada vez para mais gente resulta mais claro que não há solução possível sem passar pola independência, que propostas confederais ou federais som um canto de sereia impossível de concretar no campo de jogo descrito acima, e que o Estado não se vai desligar dos seus ossos por mais que a maioria no Congresso dos Deputados ou no Senado venha eventualmente a mudar de cor. A saída está indicada. A janela de oportunidade, aberta.

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