Compreender Catalunha

Três de março de 1936, vésperas de catástrofe, Manuel Chaves Nogales (Sevilha 1897, Londres 1944), lúcido cronista republicano, azanhista convicto e testemunha insubornável do tempo convulso que lhe tocou viver, cunhou umha sentença memorável com valor de diagnóstico acerca de Catalunha: "Reconozcamos que Cataluña tiene esta virtud imponderable: la de convertir a sus revolucionarios en puros símbolos, ya que no pueden hacer de ellos perfectos estadistas" A sentença saía nas páginas do diário madrileno Ahora (1930 - 1939). A crónica aludida, relatava á transformaçom que o cronista observara em Lluís Companys "aquel revolucionario audaz, aquel hombre de acción que proclamó el 14 de abril la República Catalana antes que la española (...), de aqui a pouco será, como Maciá, apenas um símbolo".

A fina antena de jornalista, testemunha de tantos acontecimentos históricos, que nom duvidara em qualificar Joseph Goebbels, ministro de Propaganda de Hitler, depois de entrevistá-lo, de "personaje ridículo e impresentable", detectara umha invariante nom descrita na história política de Catalunha: a vocaçom martirial, assumida polos seus líderes como passaporte VIP para ingressar no sagrado panteom de pátria idealizada. Se nom há capacidade para erguer um Estado soberano, executemos polo menos um memorável haraquiri em honra da pátria inalcançável.

Decorridos cinco meses desde as eleiçons catalãs de 21 de dezembro de 2017 que dêrom maioria parlamentar às forças independentistas, o presidente eleito acaba de formar governo, depois de render o culto devido no panteom patriótico. A governaçom bem pode esperar até o oficiante concluir o rito. Estadistas nom se esperam, como Chaves Nogales diagnosticara.

Nom me valem argumentos baseados na malevolência, indolência e incapacidade desse urso cavernário da direita espanhola pós-franquista que se hospedava na Moncloa: comparto-os sem discussom. Mormente nestes momentos em que a condena judiciária somada á parlamentar acaba de enviar a deplorável tribo popular á usseira inóspita da regeneraçom.

Do conflito, ficam presos e exilados que os democratas contemplamos desolados, incapazes de mediar entre a contínua provocaçom dos cruzados da España eterna e os diligentes artífices da Catalunha milenária. Um milénio bem contado que vencia no 22 de outubro de 1987 segundo as minuciosas contas do Parlamento de Catalunha. Foi ele quem proclamou o milénio da naçom catalã na data citada em comemoraçom da negativa de vassalagem do conde Borrell II de Barcelona ao rei transpirenaico Hugo Capeto no ano de 988.

O relato que pode ser partilhado ou nom mas que convém confrontá-lo com o facto histórico inegável de que o conceito de naçom tem também a sua história, com data de nascimento e padrinho bem conhecido: o provençal Emmanuel Joseph Sieyes que no seu ressoante opúsculo de 1789, Que é o Terceiro Estado? Proclamou: "O que é umha naçom? Um corpo de associados que vivem baixo umha lei comum, representados por umha legislatura". Certificado de nascimento da naçom cívica á qual deveríamos acrescentar ainda a naçom como expressom da língua e cultura própria, a naçom romántica, a dos Discursos á naçom alemã de Johann Gottlieb Fichte, redigidos entre 1807 e 1808 num Berlim ocupado polas tropas napoleónicas. Um milénio, portanto, de 200 anos com, a vénia de Borrell II.

Estas reflexons inspiram-se num livro singular dedicado á história política de Catalunha que pretende explicar a impressionante eclosom independentista revelada em 2017. O autor é historiador de profissom, de impecável trajectória académica, e actualmente lecciona na École des Hautes Études en Sciencies Sociales (EHESS) de Paris: Jordi Canal1. O título, fai referência, naturalmente, a O Processo de Kafka em intencionada alusom ao procés catalám.

O último episódio desta acidentada história é a interrupta declaraçon de independência de 2017 por decisom unilateral sustentada numha frágil e heterogénea maioria parlamentar de 70 deputados (JuntsxCat: 34, ERC: 32, CUP:4) sobre um total de 135, representativos de 2.079.340 sufrágios de um total de 4.392.891: 47 % do total.
Embora J. Canal equipare a prosápia histórica dos três nacionalismos periféricos, catalám, basco e galego datando o seu nascimento nos anos finais do século XIX, a verdade é que o nacionalismo catalám, exibiu desde os seus inícios umha singular pujança que alcançou o seu clímax em 2017.

Três potentes cenários soberanistas explicam a indiscutível primazia do nacionalismo catalám. O primeiro nos começos do século XX com a Lliga Regionalista, Solidaritat Catalana e, sobre todo, esse exemplar produto da capacidade de anticipaçom e empenho irredutível de autogoverno que late na Mancomunitat Catalana de Enric Prat de la Riba, habilmente negociada com o poder central. O segundo cenário é o desenvolvido no período republicano que marca dous pontos culminantes, o da redacçom e aprovaçom do Estatuto de Autonomia de 1932 e o da sublevaçom independentista de 6 de outubro de 1934 e proclamaçom do Estat Catalá por Lluís Company, episódio este último que provocou a imediata prisom do presidente e de todo o seu governo e o seu triste final mediante entrega da Gestapo ao franquismo triunfador. Finalmente, a etapa que culmina na proclamaçom unilateral e interrupta da Republica Catalana polo presidente da Generalitat, Carles Puigdemont, que constitui o episódio final do paciente processo de construçom nacional empreendido pola Generalitat desde o acesso á presidência de Jordi Pujol em 2003. A resposta do poder central ao desafio á ordem constitucional foi, como é sabido, a activaçom do artigo 155 da Constituiçom, apesar da convocatória de novos comícios em 21 de dezembro de 2017 e da proclamaçom de Quim Torra como novo presidente legítimo.

O colapso definitivo da legislatura de Mariano Rajoi, afogado num mar de corrupçom finalmente certificada, julgada e sentenciada, abre inquietantes fendas no edifício constitucional, na imagem interior e exterior da democracia espanhola. O processo catalám derivou em conflito aberto que derivou em desafeiçom, esse termo recém-cunhado para essa parte da sociedade catalã que renunciou definitivamente á cidadania espanhola.

O incisivo trabalho historiográfico de Jordi Canal debulha devagar as circunstáncias que concorrérom no acidentado percurso histórico do independentismo catalám, com especial atençom aos fundamentos mitopoéticos do relato, na esteira da história sagrada dos povos inaugurada pola obra pioneira de Eric Hobsbawm e Terence Ranger: The invection of tradition (1983). Com rigor de historiador, analisa Canal o riquíssimo repertório do relato independentista: hinos e danças, bandeiras e heráldica, efemérides pátrias, heróis da independência certa, lugares de memória; nada deixa sem perscrutar o implacável escalpelo do historiador.

Con permiso de Kafka tende — á maneira de fio de Ariadna — um roteiro que convida o leitor a contemplar os intrincados corredores da memória secular destilada pinga a pinga desde começos do século XX.

O último episódio da rebeldia catalã pom perguntas de difícil resposta: Que independência fora Espanha, fora de Europa, fora da metade da sociedade catalã? Conflito [Catalunha ↔ Espanha] ou conflito entre duas Catalunhas? Inclusom ou exclusom? O dilema segue aberto.

A capacidade analítica de Jordi Canal permite-lhe impugnar ainda, a maneira de epílogo, as posiçons de alguns historiadores consagrados á causa catalã como Pierre Vilar ou Josep Fontana, num traço de ousadia consciente: a crítica aos mandarins nom é bem-vinda e as suas consequências nom som subestimáveis.

Esta breve síntese pretende convidar os interessados na problemática plurinacional do Estado espanhol á leitura da obra, sejam ou nom adeptos ao relato independentista catalám, com dispensa, se acaso, aos adictos a mitomanias fideístas. Nom é o seu livro.

A todos eles, de qualquer modo, gostaria de transmitir-lhes umha breve confissom persoal. O abaixo-assinante sustém a clara superioridade do discurso soberanista galego enunciado por Castelao. Umha República Federal espanhola capaz de reconhecer a sua índole plurinacional e disposta a confederar-se em pé de igualdade com a República Portuguesa para abordarem conjuntamente a construçom de Europa. Este é, com certeza, o lugar mais propício e realista para a libertaçom nacional da Galiza. Ninguém se atreverá a afirmar que o cenário proposto por Castelao seja menos verosímil que a confederaçom de Païssos Cataláns, incluída a cidade de Alguer (Sardenha) e o Roussilhom (França), ou que a Euskal-Herria que aspira a integrar a Baixa Navarra (Nafarroa Beherea), Lapúrdi e Zuberoa, em território francês.

Portugal é para nós umha segunda pátria e, além do mais, guarda o secreto da inabalável fortaleça do relato soberanista galego: a posse partilhada de um idioma global em expansom. Nada a invejar, todo a fazer para que Galiza nom continue muda no desconcerto espanhol.

 

1- Jordi Canal Morell (2018): Con permiso de Kafka. El proceso independentista en Cataluña, Ediciones Península, Grup Editorial 62, Barcelona.

Publicidade

Grazas ás socias e socios editamos un xornal plural

As socias e socios de Praza.gal son esenciais para editarmos cada día un xornal plural. Dende moi pouco a túa achega económica pode axudarnos a soster e ampliar a nosa redacción e, así, a contarmos máis, mellor e sen cancelas.