O Sputnik, incondicional emissário do Kremlin

Selo comemorativo do lançamento do Sputnik em 1957 Dominio Público

Em tempo de guerra e ditadura a informaçom tende a degradar-se a instrumento de doutrinamento e propaganda

Em tempo de guerra e ditadura a informaçom tende a degradar-se a instrumento de doutrinamento e propaganda. A informaçom veraz é manjar delicado e luxuoso que o ministério orwelliano da verdade nom tolera. Em Espanha sabemo-lo bem, sofremo-lo nada menos que quarenta longos anos (¡!) que durou a Delegación Nacional de Prensa y Propaganda (1937-1977)1 —organismo de título inequívoco, daquela nom se estilavam os eufemismos— e tivemos que esperar à chegada da democracia para que os seus agentes fossem licenciados. Aquele fóssil antediluviano de propaganda em veia colapsou finalmente por incompatibilidade com os ares democráticos.

A Rússia de Putin nom pode prescindir de um meio digital designado para difundir as verdades do Kremlin,:o Sputnik emissário. "Em 16 de fevereiro, na penitenciária № 3, o recluso A. A. Navalny sentiu-se mal depois de um passeio, desmaiando quase de imediato. Um equipe médica chegou imediatamente, foi chamada uma ambulância", detalhava o comunicado oficial transmitido pola agência governamental russa Sputnik Brasil2. Meio que frequento como fonte privilegiada de acesso à neo língua praticada polo Kremlin para virtuosa edificaçom da descarriada audiência internacional. O digital tem ademais a vantagem adicional de estar disponível no nosso idioma natal, formato brasileiro. Observemos de passo o tedioso estilo burocrático que impregna o diário.

A Rússia de Putin nom pode prescindir de um meio digital designado para difundir as verdades do Kremlin,:o Sputnik emissário

Os pormenores da morte de Navalny fôrom emitidos pontualmente polo Sputmik Brasil às 08:29 do dia 16.02.20243. Umha exígua nota anódina para informar que o incómodo dissidente morrera congelado nos gelos árcticos. O untuoso estilo burocrático tentava dissimular o impacto da ignominiosa morte convertendo a notícia numha breve nota de tonalidade incidental.

O acontecimento aludido devia de carecer de todo interesse por decreto inapelável da superioridade. Afinal, tratava-se de um marginal dissidente de 47 anos condenado de por vida a estrito regime de anonimato carcerário por ousar alçar a voz sem a devida autorizaçom. Um insignificante dissidente empenhado em vulnerar normas elementares de convivência estabelecida. Na sua obstinaçom encontrou o seu castigo, umha ronda de envenenamento científico com a selecta farmacopeia aplicável nestes casos como primeira medida até ter que recorrer a medidas mais radicais visto que as primeiras se de mostraram falidas. Era inescusável silenciar aquele réu inconfesso e irredutível para preservar a ordem natural das cousas.

Fracassados os procedimentos ordinários, nom houve outro remédio que proceder a aplicar medidas de eficácia provada: transladar o réu ao gulag árctico, método tam provado como discreto. O Gulag, a Katorga da Rússia Imperial, de cujo omnímodo poder dissuasório guarda memória intemporal a velha Rússia.

O ponto elegido para a instalar a prisom árctica tinha por nome IK-3 de Jarp Lobo Polar, distrito de Yamalo-Nenets, a 60 quilómetros del Círculo Polar. Este foi o destino definitivo do irredutível opositor de 47 anos. Nada extraordinário nos tétricos arquivos da Lubianka ante os quais os democratas moscovitas fôrom depois a depositar flores póstumas, simples lixo urbano que a policia se esmerou em fazer desaparecer. Nos regimes de tirania as mesmas flores podem confabular-se contra a ordem estabelecida. Compre mantê-las baixo vigiláncia.

Naqueles mesmos dias de finais de Fevereiro comemorava-se o segundo aniversário da Operaçom Militar Especial —rebuscado tropo exculpatório da neo língua cultivada polos filólogos do Kremlin para aludir à inominada guerra de Ucránia— que pretendia instalar um governo títere em Kiev. A cerrada hostilidade social e o eco exterior ante a improvisada guerra declarada às portas mesmas da Uniom Europeia está levando ao Kremlin a ter que subir o diapasom ditando ordem de prisom contra a primeira-ministra da Estónia Kaja Kallas catalogada polo que se vê como submissa súbdita do Kremlin. Outro acto falido, Kaja Kallas, que nom peca de timorata, intensificou dendê entóm as declaraçons contra as tropelias argalhadas em Moscovo e começou a derribar as ostentosas estátuas soviéticas que adornavam o seu país. As míticas fronteiras estabelecidas na Segunda Guerra Mundial só permanecem inalteráveis no gélido imaginário do Kremlin.

A ordem de busca e captura decretada contra a primeira ministra de Estónia, foi justificada polo porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, como resposta proporcionada à exibiçom de actos hostis contra Rússia por parte de Estónia e Letónia que hao-de ser consideradas umha profanação da memória histórica. A sagrada imagem de Rússia nada menos, nessas andamos.

Mas, quem vem sendo esse esquivo inquilino do Kremlin empenhado em restaurar a ordem natural das cousas gloriosamente ganhado na Segunda Guerra Mundial?

Detrás de tamanha exibiçom de ressentimento histórico assoma o indecifrável sorriso de Vladimir Putin autocrata auto-investido da sagrada tarefa de redimir Rússia da pecamuinosa profanaçom das suas fronteiras perpetrado por um Ocidente arrogante e insaciável4

Mas, quem vem sendo esse esquivo inquilino do Kremlin empenhado em restaurar a ordem natural das cousas gloriosamente ganhado na Segunda Guerra Mundial? Explica-no-lo com a sua perícia habitual a jornalista galega, nascida em Arca, Tereixa Costenla, correspondente do jornal El País em Lisboa. Rememora oportunamente a jornalista A vida dos outros, aquele memorável filme que se adentra na monacal vida escondida dum esquecido agente da Stasi que oficia de delator de cidadaos desafectos5. Todo umha constelaçom de sopronsbufos diria um português— encarregados de espiar cidadaos anónimos em procura de sujeitos desafectos. Esse ignominioso qualificativo que herdamos da infame panóplia franquista. Umha rede que cobriu Alemanha, Polónia e Roménia consagrada ao medo e a delaçom. Tereixa Costenla retrata fielmente aquele ambiente tóxico em que se formou Putin camo agente oculto da KGB na Alemanha Ocidental. O degradante ofício de espiar vidas alheias.

Outro artigo jornalístico de qualidade foi o escrito por Xavier Colás no Mundo6 que contextualiza com precisom a pesada experiência biográfica que marcou a memória daquele escuro agente da KGB nado em Leninegrado alcunhado na altura como Platov com cédula de identificaçom B217590. O neófito agente foi feliz, segundo dim, no seu destino em Dresden com a sua mulher Liudmila e os seus pequenos. Ali aprendeu alemam, que se compraz agora em falar, e ali aprendeu a gozar primeiro, e a detestar finalmente, a doçura do estilo de vida europeu e a sua toleráncia que em ele acabaria virando a surdo ressentimento até convertê-lo em adail dos valores russos tradicionais que agora comparte com impostada piedade com o patriarca ortodoxo Cirilo, ou Kirill para ser mais exactos. A Rússia invicta da Segunda Guerra Mundial reclama agora o seu Lebensraum, o seu espaço vital que agora crê vislumbrar numha Ucránia traidora que se pretende europeia.

Á incessante voz do Sputnik silenciou qualquer referência à morte e posterior translado a Moscovo do cadáver de Navalny onde receberia multitudinária despedida que o Kremlin pretendeu afogar num significativo silêncio. O cadáver do infortunado dissidente foi declarado matéria reservada, alto secreto submetido à damnatio memoriae perpétua que espera aos dissidentes. O clamoroso silêncio do Sputnik acerca do acontecimento foi roto pouco depois para transmitir as provas conseguidas do envolvimento directo da OTAN na guerra de Ucránia sem que tal notícia obrigue a aludir de passo á inexplicada operaçom militar especial que entra já no terceiro ano.

O Sputnik nom descansa, a começo do mês de Março difundia a notícia da intençom do exército alemám de atacar a Ponte de Crimeia. A reacçom do Ministério de Defesa alemám chegou de imediato

Vem à memória a conhecida entrevista do intelectual socialista espanhol Fernando de los Ríos com Lenine em Moscovo em 1920, com os rescaldos da guerra civil russa vivos ainda. “¿Liberdade para quê?” espetou-lhe o dirigente soviético, “liberdade para ser livres” respondeu dignamente o deputado do PSOE. É preciso justificar a liberdade? Talvez si para povos que arrastam umha longa história de servilismo interiorizado.

A excentricidade secular da sociedade russa vem desafiada nessa breve resposta: liberdade para ser livres, um direito incompreensível em sociedades como a russa secularmente educadas na submissom ao czar e no desdém pola liberdade e o pluralismo., esse luxo europeu

O Sputnik nom descansa, a começo do mês de Março difundia a notícia da intençom do exército alemám de atacar a Ponte de Crimeia7. A reacçom do Ministério de Defesa alemám chegou de imediato. A informaçom difundida polo Sputnik, verídica, revelava umha lamentável filtraçom do canal de comunicaçom utilizado polo exército. Umha imprudente videoconferência interceptada através da plataforma pública WebEx em lugar da rede interna oficial ultra segura da Luftwaffe servira de porta de fuga8. O insone ouvido do Sputnik sempre atento à vida dos outros nunca pára.

 

Notas

1 https://es.wikipedia.org/wiki/Delegaci%C3%B3n_Nacional_de_Prensa_y_Propaganda

2 https://sputniknewsbr.com.br/

3 https://sputniknewsbr.com.br/20240216/aleksei-navalny-morre-apos-ter-se-sentido-mal-durante-passeio-na-prisao-33105472.html

4 https://www.realinstitutoelcano.org/blog/occidente-uno-grande-y-solo/

5 https://elpais.com/diario/2010/04/28/cultura/1272405601_850215.html

6 https://www.elmundo.es/cronica/2018/12/19/5c16383721efa0d7648b4727.html

7 https://sputniknewsbr.com.br/20240301/leia-na-integra-a-transcricao-de-militares-alemaes-sobre-plano-de-ataque-a-ponte-da-crimeia-33347495.html

8 https://www.rfi.fr/es/europa/20240303-olaf-scholz-promete-investigaci%C3%B3n-exhaustiva-sobre-filtraci%C3%B3n-de-conversaci%C3%B3n-militar

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