“Ser galega é resistir, é enfrentamento de autodefesa”

Charo Lopes © Miguel Auria

A opressom. O espólio. A guerra do capitalismo. Contra a classe trabalhadora. Contra as mulheres. Contra o nom assimilável e domável. Do mal-estar e da raiva frente a todo isso nasceu ‘De como acontece a fin do mundo’, a obra com a que Charo Lopes ganhou o Premio Fiz Vergara Vilariño. Falamos com a sua autora, cujo discurso guarda uma enorme coerência coa sua escrita: uma autentica descoberta para quem goste de ler poesia. 

"Este é un poemario fillo da confusión e da fame,/ a narrar unha guerra./ Que outra cousa poderías parir tu?", diz um dos poemas. E se calhar recolhe o sentido geral do livro: a situaçom de guerra. A guerra contra a classe trabalhadora, contra as mulheres... É esse o fio do livro?

Penso que o prolongado da situaçom no tempo, o ruído geral da propaganda capitalista e certa falta de referentes e sensaçom de impotência forçam para instalar-nos na resignaçom. Em ser-para-a-morte, ser mercadorias. E por momentos sinto umha incredulidade geralizada com respeito à possibilidade de fazermos acontecer mudanças reais e radicais. Revolto-me energicamente contra isto. Falo desde o assombro.

Como foi o processo de escrita? Surgiu de algumha experiência concreta, ou simplesmente do estado atual de regressom de direitos e liberdades?

O processo de escrita foi lento, nom houve umha previsom do lugar que ocupariam finalmente os textos. É fruto de um conjunto de momentos ou reflexons que me esganárom e precisei escreve-los. O mal-estar é constante, a situaçom de opressom vem de longo, é como umha dor xorda, mas há momentos que criam picos de raiva ou de dor; a maioria dos poemas nascem assim. Acho que provavelmente os visualizava como recurso para algum panfleto ou fanzine. Mas chegou um momento em que comecei a ver um fio entre eles e aí começou um processo já mais consciente de trabalhar na estrutura do livro.

Há momentos que criam picos de raiva ou de dor; a maioria dos poemas nascem assim

Na estrutura, há vários poemas que dialogam entre eles. Os poemas com nome de cor, os que vam em cursiva, os que levam uma cifra de título, as “anécdotas”... Suponho que poderia ler-se seguindo essa ordem, a dos títulos. Como decidiste essa estrutura?

Ao nom ser um livro escrito “de corrido” tinha fragmentos de textos de diferentes momentos e em diferentes lugares -alguns numha livreta que tenho por costume levar sempre comigo, outros em rascunhos guardados no telemóvel, vários no computador-, e vi que, ainda serem diferentes, ao pô-los em comum, partilhavam o eixo e tinham um ritmo que funcionava. Como várias camadas a jogar umhas por cima das outras, a criar perspetivas de um mesmo mal-estar desde vozes diferentes.

Também, desde o princípio, dá nas vistas a linguagem, o estilo. Nom há temperos inecessários. Todo é real. Verdade. E todo semelha nascer da dor, da indignaçom. Ou se calhar da reacçom, imediata, ante o que vês. Ante o que vemos. Mas também há beleza. Por que esse estilo? (Suponho que te sai assim...)

Imagino que outras pessoas, de outra classe, vivam num lugar-real-verdade diferente, justo por cima do tapete que temos nós na cabeça. Nós também temos um tapete debaixo dos pés, com cránios debaixo -independentemente de que nom sejamos quem chucha a mais-valia-. E algo falha se partilhamos expectativas e desejos com os do tapete de cima. Quero marcar distáncias com essa olhada hegemónica, nom quero algo "igual" mas com a bandeira galega, nem parecido! Quero outra cousa. A busca da beleza nom é um objectivo em si próprio, mas a dignificaçom dos lugares subalternos. Vergonha é ser rico. Talvez observar às de abaixo de frente outorga umha “nobreza” que nunca terám os trepas nem os modelos do capital.

Quero marcar distáncias com essa olhada hegemónica, nom quero algo "igual" mas com a bandeira galega, nem parecido!

'Random' falava das "mulheres da minha tribo", que voltam estar em 'De como acontece o fim do mundo'. A mãe lumpenlabrega. As bruxas queimadas pola Inquisición. As partisanas fuziladas. As mulheres que se amam, em prisom, como guerreiras. As escravas, de ontem e de hoje. E digo tribo" porque acho que o livro tem algo de reivindicaçom, ou de celebraçom, disso. Da tribo das mulheres proletárias. De todo mundo. É assim? Por que?

Sim, penso que é fundamental termos os nossos próprios referentes. O nosso próprio sistema de valores, e acho imprescindível que seja radicalmente diferente ao hegemônico hoje aqui. Interessa-me a comunidade, como primeiro lugar a reconstruir, material e simbolicamente. Interessa-me a feministaçom dessa comunidade. Penso que faz falta um estudo profundo da ética desde onde se constrói a esquerda -também da estética-. Sem isto converte-se numha alternativa-ficçom dentro do mesmo, absorvida pelo sistema-mundo do progresso. Nom é só quem controla os meios de produçom, mas quais? para que? como? por que?

A ética que eu quero está mais perto desse lugar, a tribo. Considero importante certa segurança ontológica; alicerces. Acho imprescindível para qualquer luita. E quero que estes alicerces estejam num país fora da lógica da propriedade privada, da concorrência e do espólio.

Um dos temas mais presentes é a repressom. Desde as bruxas queimadas na praça até a situaçom atual do cárcere: o isolamento, o silêncio. "Consciência de classe é ser terrorista", diz um dos versos. De que maneira é, todo o poemário, resposta à repressom?

É em parte, reacçom à repressom. Mas fundamentalmente é reacçom à opressom. A cousa é mais longa. A origem é uma situaçom estrutural injusta, nom apenas acçons contra a dissidência ou a rebeldia.

Considero que existe um dilema com respeito ao uso da palavra terrorista, ou da-la por perdida ou resignifica-la. Penso que a atomizaçom da classe obreira e a diluiçom do imaginário próprio fazem isto complexo; o que realmente provoca terror na maioria social está estrategicamente situado na abstracçom, na estrutura dificilmente tangível para o individuo isolado.

Esvaem-se as caras dos culpáveis quando pensamos no terror à perda do trabalho ou o medo a nunca chegar a encontra-lo -e a consequente perda simbólica e material do lugar respeitável de “cidadao”-. Também provoca terror quotidiano o risco de ser violada ou agredida. Agora bem, desde os meios de propaganda do poder encarregaram-se de difundir o termo desde o seu imaginário: o terror deles a que os tirem dos seus privilégios. A polícia está para proteger a menos do 1% da populaçom e as suas propriedades. A quem exercem terror sobre este pessoal, eu digo, obrigada.

Considero que existe um dilema com respeito ao uso da palavra terrorista, ou da-la por perdida ou resignifica-la

Em relaçom com isso, o livro fala de exploraçom, de colonialismo, nas suas diferentes formas. Desde as avós que emigraram até a imigraçom e o turismo colonial de hoje, ou as guerras que provocamos ou consentimos. Consumo manchado de sangue, de abuso. Como na prostituçom. Ou em Inditex. De que maneira está isso, o colonialismo de ida e volta neste livro?

Sim, penso que podemos ser oprimidas e opressoras ao mesmo tempo dependendo das situaçons e parece-me importante estar alerta com isto. Sabermos defender os direitos esmagados, mas também desconstruir os privilégios que exercemos a custa de abusos sobre terceiros. É prototípico o militante de “esquerdas” e machista (homem cis adulto heterossexual).

Defende a sua classe, perpetua o seu privilégio masculino. Resulta-me chocante quando alguns argumentam que sujeito de direitos é quem os conquista e quem os defende. Desde esta lógica legitima-se o abuso, caso de que nom lhe plantem cara. Isto é lamentável. Justificam-se de vez a exploraçom do território, dos animais, das crianças e de todas aquelas que sejam menos fortes. A conceiçom de justiça para mim é outra cousa.

Quando falas de internacionalismo, falas de sentir as mãos das crianças tecedores de Inditex. De Chechênia, Curdistám, Palestina. De subsaarianos cuspindo pánico em gaiolas transatlánticas. Que é o internacionalismo?

Para mim é a necessidade de reconstruirmos as identidade subalternas, baseando-nos na empatia e a solidariedade independentemente do território onde nascemos ou de outras variáveis arbitrárias. E mais num mundo tam globalizado, é particularmente obsceno. Ninguém é livre até que todas o sejamos. Resisto-me a assumir que questons fundamentais, das quais eu desfruto, sejam um privilégio inacessível para outras pessoas, como por exemplo, escrever. E partilho a velha proclama “nem guerra entre povos, nem paz entre classes”.

Internacionalismo é reconstruirmos as identidade subalternas, baseando-nos na empatia e a solidariedade independentemente do território

Dá a impressom de que também queres apontar, no livro, a palavras que foram pervertidas, ou que som mentira de algum modo. Como amor. (casal-património, dizes). Ou tempo. Em que sentido questionas esses dois conceitos, amor e tempo?

Interessa-me o sentido que lhe damos às palavras, como já disse antes a respeito de “terrorista”, porque penso que muitas vezes começamos debates que nom vam a lado nenhum por nom ser esclarecido de início de que conceiçons partimos. Podemos discutir por usarmos palavras diferentes mas estarmos a dizer o mesmo, como podemos usar a mesma palavra e ter conceiçons completamente diferentes.

No texto nom dou umha definiçom fechada do amor nem do tempo, pretendo apenas po-las em questom. Existe o amor-opressom, o amor-prisom, o amor-ódio? Ou é umha contradiçom terminológica? A respeito do tempo jogo com a ideia da relatividade, do ponto de vista intimista quando nos passa "rápido" ou "lento" segundo as emoçons, e ao mesmo tempo, liga com um sentido social, com os periodos do decorrer histórico, e a lentidom das etapas escuras. Há um confronto entre o materialismo histórico e certa imagem do fim da história, rolho New Age.

"Pertenzo á estirpe dos pobos bárbaros" e "Teño sangue e alma negra" dizia 'Random'. Em 'De como acontece o fin do mundo' é a "lingua cigana lumpen-proletaria do meu pobo", por exemplo. Acho que o livro aponta muito também à nossa identidade como galegos/as. Em que sentido? Que pode ser ser galego neste tempo de guerra contra as pessoas?

Pergunta muito difícil! Até agora só consegui formular algumhas perguntas sobre o contexto no que acontece “ser-galega” para mim. Penso que algumha chave importante está na resistência. Ser galega é resistir, é enfrentamento de autodefesa. Acho interessantes os indigenismos porque fogem da lógica da modernidade, o antropocentrismo e a fé na ciência. Vejo aí espaço para a construçom de um contrapoder forte, anti-individualista e nom assimilável.

Acho interessantes os indigenismos porque fogem da lógica da modernidade, o antropocentrismo e a fé na ciência

Há muita denúncia no poemário, ou ao menos muita constataçom da realidade. Muita luta por assimilar, se calhar, a realidade. Mas também muita força. Muita energia. E penso esperança em que os "lumpen-proletarios organizados" tenham "un día algo diferente da guerra". É assim? Por que?

Um medo que tinha ao remate do livro é que pudesse ter umha leitura catastrofista ou pessimista. Gosto de que tu interpretaras força, porque para mim algo imprescindível era, mália o duro do contexto, nom abrumar e produzir impotência nem dar sensaçom de derrota. Eu vejo capacidade e energia, o repto está em organiza-la ajeitadamente.

Pese a que poderíamos falar de “poesia social", seja o que seja isso, também há bastante ironía. Ou retranca, melhor dito. Que lhe dá muita frescura. És consciente disso?

A retranca e o humor em geral som ferramentas bem boas para enfrentar o drama. Para fazer autocrítica, e também som formas elegantes de insultar. Produz um prazer perverso (risas). Isto é um recurso que me veio herdado e que valoro muito.

Há outros temas: a perseguiçom da homossexualidade e, em geral, da diferença cultural, de classe.... Que quiseste apontar, nesse sentido? (A multiculturalidade... ). E sobre a religiom? (Aparece ligada às vezes à violência, às vezes à identidade...)

Pretendia mostrar a complexidade do conflito. Duvido sobre a hierarquia das contradiçons, -veja-se: a contradiçom principal Galiza-Espanha; e depois todas as demais, secundarizadas, e algumhas mesmo invisibilizadas ou negadas-. Com respeito à religiom é algo bem presente; por umha parte como pouso da tradiçom judeu-cristina fundamentalmente castradora, mas por outra parte, também como necessidade existencial, como questionamento metafisico inerente ao humano -acho eu- desprezado pela esquerda. Esta necessidade canalizou-se entom cara o ego: necessidade de transcendência individual e realizaçom através do estatus social.

Duvido sobre a hierarquia das contradiçons, -veja-se: a contradiçom principal Galiza-Espanha; e depois todas as demais, secundarizadas, e algumhas mesmo invisibilizadas ou negadas-

Também aparece o rural, passado (a avó) e presente. O "suburbio agrário", por exemplo. Também em 'Random' a voz poética dava de comer às galinhas depois de erguer-se... Nesse sentido, quando o livro fala de internacionalismo, faz pensar nesse âmbito, o rural. Era a ideia? Por que?

Nom foi intencionado ligar internacionalismo com rural -de facto nom vejo ligaçom evidente-, mas sim que é o rural o cenário principal para mim agora. Queria dar visibilidade a este lugar, acho que é terreno por recuperar, dignificar e desde onde melhor reconstruirmos-nos indígenas. Temos um território com muitas potencialidades que favorecem lógicas anti-capitalistas.

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