Por uma arqueologia da democracia parroquial galega

O labrego interpreta o mundo dos mouros a partir do próprio, polo que não é de estranhar que os mouros das lendas também levem as vacas a pacer, fagam a mantança do porco ou, como apontou Lago Canzobre, mesmo tenham esse costume do comunitarismo sexual que é o pago do piso –imposto ritual que os moços de fora pagavam aos da paróquia à que iam mocear. Ainda, a labrega vê nos monumentos megalíticos Igrejinhas dos Mouros, porque por mui mouros que sejam, também cumprem com as suas obrigas religiosas. Assim, embora os mouros sejam os grandes Outros da cultura tradicional galega, também são uma valiosa via para conhecê-la.

Neste sentido pode ser mui interessante rastejar as velhas instituições da democracia galega – concelho aberto, conselho, junta, etc. – no folclore associado aos restos arqueológicos. Os círculos líticos são amiúde resemantizados como o lugar das assembleias dos mouros, tal como o adro da igreja para o concelho dos labregos. Quando Filgueira Valverde visitou o monte de Santa Tegra à procura de um círculo lítico, um paisado explicou-lhe que "nele tinham os mouros as suas assembleias". Também em Mámoas (Forcarei), a gente pensava que a Eira dos Mouros fora "o ponto de reunião onde os mouros celebravam conselho antes da grande derrota"1. Outro crómlech que o habitus labrego identificou como uma Eiro dos Mouros é o de Loureiro, nos monte Regoufe (Teio), multiplicando-se os exemplos em outros jazimentos como petróglifos.

Um povo que imaginou assembleias em círculos líticos foi, sem dúvida, um povo que praticava a democracia assembleária na vida quotidiana. Sem concelho aberto os velhos de Vila Cova (Lousame) não se haviam lembrar de cantigas que identificam pedras com juntas vizinhais2, nem tampouco uma lavradora de Gonderande indicaria a Manuel Gago que em Vilas – onde está a Pedra do Mouro – é onde "estava o concelho"3. Poder-se-á, aliás, detetar neste folclore o ataque às instituições da democracia paroquial? Curiosamente, a vizinhança de Leiloio (Malpica) refere-se ao seu círculo lítico como Eira das Meigas, onde estas realizavam o seu aquelarre na noite de São João4, mas como sinalou Carlo Ginzburg, "uma vez eliminados (do aquelarre) os mitos e adornos fantásticos, descobrimos uma reunião de gente"5. Quando nos círculos líticos já não se imaginam concelhos de mouros mas aquelarres maléficos, alguma Lei Mordaça entrou em jogo.

O paradigma da historiografia ilustrada impujo um relato segundo o qual a democracia só existiu através do Estado e a intermediação dos partidos, sendo pouco menos que descoberta pola rurália nas eleições de 1978. Oculta-se assim uma constelação de instituições democráticas populares que autogovernaram, até não há tanto, a vida de muitas paróquias do país. Ao ficarem no impensável ou no anedótico, estas práticas e instituições apenas foram objeto de estudo nas nossas ciências sociais. Ter em conta a democracia paroquial galega dará na aparição de muitos novos dados, até o de agora desconsiderados, dispersos e isolados, que permitirão abrir um caminho apaixonante para investigar em comum, à procura dos concelhos dos mouros.

 

Notas

1 - Rivas Cruz, X.L. e B. Iglesias Dobarrio. Somos lenda viva. Lugo, Citania de Publicacións, 1996, p. 92.

2 - A cantiga encabeça o artigo: Evans Pim, J. «Gandhi na eira. Insurgência económica e soberania sem estado», O Golpe, 2, 2013: 59-65. Disponível em: <http://www.partidodaterra.net/wp-content/uploads/2013/07/Gandhi_na_eira.pdf>.

3 - Gago, M. «Repúblicas de Homes Libres: as Fortalezas Invisibles dos labregos», Capítulo 0. Disponível em: <http://www.manuelgago.org/blog/index.php/2010/12/19/republicas-de-homes-libres-as-fortalezas-invisibles-dos-labregos/>.

4 - Cabeza Quiles, F. Os nomes de lugar. Vigo, Xerais, 1992, p. 23.

5 - Ginzburg, C. I Benandanti. Turim, Einaudi, 1966, p. 189.

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