Nomear invertebrados com C.G.

Capa do libro 'Dicionário de Zoologia e sistemática dos invertebrados' ©

Entro na última versom da Lista Vermelha de espécies ameaçadas criada em 1964 pola Unión Internacional para a Conservaçom da Natureza para alertar sobre a dinámica de empobrecimento da vida no planeta. Leigo em matéria biológica, pretendo apenas ponderar a atordoante diversidade dos seres vivos e em especial essa misteriosa multidom de seres definidos por exclusom como aqueles que carecem de espinhaço; os invertebrados.

Observo que existem 2.137.939 espécies vivas contabilizadas, das quais, os presuntuosos mamíferos a que pertencemos nom passam de 6.425. As linhagens régias costumam ser contadas. Fora do discreto nicho vital que se digna acolher-nos e alçando a vista à vasta pluralidade da vida podemos contemplar quatro grandes táxons; os invertebrados com 1.501.581 espécies, as plantas, incluídas as algas, com 422.756, os evanescentes fungos e protistas com 141.275 espécies e finalmente os vertebrados com 72.327. Fazer parte da retaguarda da biosfera nom deixa de ser um chisco incómodo para mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes que nos orgulhamos de possuir espinha dorsal. Mormente depois de sermos avisados de que o “nosso” planeta é um minúsculo grao de pó bailando em volta de umha estrela menor.

As 1.501.581 espécies de invertebrados, 70% da totalidade das espécies vivas, formam um continente poderoso, heterogéneo e quase inumerável ao qual apenas nos atrevemos a despachar como “aqueles que carecem de coluna vertebral”. Carecerem de espinha dorsal nom obsta para que os insectos senhoreiem o planeta com 1.053.578 espécies que os biólogos tentam inscrever na categoria taxonómica dos artrópodes, junto com os aracnídeos, os crustáceos e os miriápodes de cem pés; todos eles com exoesqueleto e apêndices articulados. E ficam fora ainda os moluscos, de corpo mole e concha protectora e os cnidários que encerram seres tam evanescentes como as medusas e tam magnificentes como os corais, capazes de construir imensas colónias calcárias que formam recifes. E ainda ficam os ominosos vermes chatos, platelmintes, ou cilíndricos, nematelmintes e outros seres inominados.

Como nomear esta opulência vital e invertebrada? Tentou-o Jean-Baptiste Lamarck, o cavaleiro naturalista que ia falecer em 1829, justo no ano em que o Capitám General Nazario Eguia abria umha carta armadilha libertária no Palácio compostelano de Santa Cruz que lhe levou umha mao. O obstinado naturalista passou os seus últimos anos (1815-1822) redigindo umha Histoire naturalle des animaux sans vertèbres em sete volumes, ditada em parte às suas filhas depois de ficar cego em 1819. Pôr ordem na mixórdia descomunal dos invertebrados foi a vocaçom vital de Lamarck desde 1801 polo menos, ano em que deu a lume o Système des animaux sans vertèbres ao qual voltou em 1806 com um Discurso sobre o mesmo tema.

A disciplina taxonómica de pôr nome a cada ser vivo é tam desmesurada e absorvente como a tarefa filológica que lhe serve de suporte. Filologia e taxonomia vam de mãos dadas nos relatos fundacionais: Génese 2:19; Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todo o animal do campo, e toda a ave dos céus, os trouxe a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome. Relata a Bíblia de Almeida em pousado ritmo clássico.

O professor Carlos Garrido sabe-o bem: A zoologia é a ciência dos nomes é o lema com que abre o prefácio ao seu admirável Dicionário de Zoologia e sistemática dos invertebrados1 A paixom filológica é o impulso que guia a quem preside a Comissom Lingüística da Associaçom de Estudos Galegos (AEG) desde 2016 e antes a da AGAL. Abrimos o Dicionário que preside umha divisa inesperada, umha homenagem: Ao Scórpio, o acúleo de cujo cálamo instilou em nós enérgica peçonha: a cabal epifania da língua. Acúleo, acudimos ao próprio dicionário: ferrom, aguilhom com que os escorpions, scórpios afinal, injectam a sua peçonha na vítima. Belo tropo para lembrar o papel precursor de Carvalho Calero. Literatura sobre taxonomia em reverência preliminar à dupla paixom do professor. 

O ambicioso repertório impressiona, mesmo para gente imperita, eterna aprendiz de língua e ignorante de taxonomias, como é o meu caso. Os primeiros esboços do Dicionário remontam pólo que sei a outro preliminar publicado em Galiza em 1997. O actual é fruto de umha lenta destilaçom de saberes iniciada em 2015 e culminada sob patrocínio da Universidade paulistana: 5.860 professores, 92.064 estudantes, 28.498 de pós-grau em 2012. Bom lugar para um mergulho no universo invertebrado, ubíquo como os insectos, subtil ou laborioso como os subaquáticos cnidários.

Percorro o livro do A que fai referência á nervura anal dos insectos à Zygoptera, insectos também que chamam cavalinho-do-diabo em Portugal, [P], e cavalinho-do-demo na Galiza, [G]. O dicionário vai repassando [P], [B], [G] as variantes da língua intercontinental. Comprovamos a numeraçom das entradas ordenadas alfabeticamente da A à Z; Zygoptera fai o número 17.060 do Dicionário. O galego-português na sua modalidade internacional organiza a obra, em diálogo simultâneo com o castelhano, o inglês e o alemám, objecto de cadanseu índice remissivo. Um imperativo de transparência e verificabilidade inevitável num texto científico. Umha façanha à altura dos desafios desmesurados com que costuma medir-se o movimento nascido da energética peçonha reintegracionista do Scórpio. Umha homenagem também ao arquipélago plural da galaicofonia. Essa audiência a que se dirige Carlos Garrido, livre de tanta timidez provinciana como tem aferrolhado o país. É assi como apreendemos como as borboletas nocturnas que a taxonomia etiqueta como Heterocera, os portugueses e brasileiros conhecem como mariposas e também como traças [P, B], que nós conhecemos também com outros usos, som conhecidas entre nós como avelainhas [G], esses visitantes nocturnos das nossas janelas aldeãs. E aí temos o Lucanus cervus ou vaca-loura [P, G], e os apetitosos Ensis, navalhas e longueirons que demandamos na mesa portugueses, brasileiros e galegos, igual que os chocos, sibas ou xibas que enriquecem churrascadas e arrozes.

A minha amizade com Carlos Garrido á mais intensa do que longa e mais digital do que presencial; afinal foi umha ponte das palavras, cada vez menos frequentada, a que nos aproximou. Palavras vacilantes, acto falhado quase na memória social. Lapsus memoriae, lapsus linguae, lapsus callami. Superabundáncia denominativa e penúria neológica frente a frente. Foi o professor Garrido quem me ajudou a explorar fortalezas e debilidades de um idioma que aspira a afirmar a sua potência autónoma e solidária em duas monografias exploratórias do seu caudal expressivo libertado por fim do labirinto da estagnaçom e suplência castelhanizante. Refiro-me sobre todo a duas obras complementares: Léxico Galego: Degradaçom e Regeneraçom (2011) e O modelo lexical galego: Fundamentos de codificaçom lexical (2012). Um quadro analítico extenso e preciso para tentar separar o minério genuíno do nosso património linguístico da ganga exótica que a história foi depositando sobre ele. Foi o valioso minério o que inspirou este Dicionário, disciplinado ademais com rigor científico; língua e ciência como bagagem imprescindível para atravessar este século incerto que apenas começamos a entrever.

1 Carlos Garrido: Dicionário de Zoologia e sistemática dos invertebrados, quadrilíngue, Editora da Universidade de São Paulo, 2019, 592 páginas. 

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