Umha instantânea deste tempo: um sistema económico que nos conduze à morte social -com o desemprego- e à morte física -com a exploraçom laboral-. Deste jeito define, em poucas palavras, o dramaturgo e poeta Marcos Abalde a peça com a que ganhou o XI Premio Diario Cultural de Teatro Radiofónico, Psicofonías. A dramaturga Lina Pérez levou o premio do Público, escolhido pelos ouvintes, por Alianzas. Mas, além da coincidência no reconhecimento, ambos autores comfluem na sua opção por um tipo de teatro, o que Abalde chama "teatro-sabotagem". Que se nega a ser amável com a opressão.
Escreveste Psicofonías já para apresentar ao prêmio, adaptaste algo que tinhas feito...?
Escrevim-na pensando nas condiçons do prémio e também na audiência da rádio.
O texto é uma conversa de um casal. Vai frio. Ela volta ao trabalho antes de recuperar-se de algo que lhe aconteceu. Ele está no desemprego. Nada mais começar a ler, sabemos que fala de violência, da do mundo laboral: que exclui a uns e que trata a outros coma objectos, coma peças de uma máquina que só pode funcionar engolindo-os. Era o teu objectivo falar desse tipo de violência? Por que? Por que o frio?
A friagem da exclusom. A violência que arrepia. O mundo é bem hostil para as pessoas que vendemos a nossa força de trabalho. A peça está inspirada numha história real que aconteceu no hospital da Corunha em julho de 2012. Umha trabalhadora, obrigada a incorporar-se dumha baixa, acabou tirando-se do noveno andar.
Ele dedica-se às psicofonías. Por momentos, poderia parecer até cómico. -As psicofonías de Pondal em São Amaro, por exemplo-. Mas não o é. É como um ponto absurdo que sublinha o absurdo de uma situação social -e política-. Era o objectivo? É dizer, por que o das psicofonías?
Umha noite no programa da Rádio Galega que trata destes assuntos puxerom umhas psicofonias realizadas no castelo de Doiras, em Cervantes. De maneira surpreendente os defuntinhos falavam espanhol. Sonho com o dia em que, em vez de dedicar programas de rádio e televisom ao mundo do paranormal, lho dediquem a divulgar os clássicos da emancipaçom: Marx, Luise Michel, Kropotkine, Simone de Beauvoir, Lenine, Angela Davis, Frantz Fanon, Silvia Federici ou Castelao. Talvez as nossas filhas vejam como as livrarias substituem a seçom de Autoajuda pela de Ajuda mútua.
"Sonho com o dia em que, em vez de dedicar programas de rádio e televisom ao mundo do paranormal, lho dediquem a divulgar os clássicos da emancipaçom"
Ela não quer ser vítima e não se queixa por ter que voltar ao trabalho. Ele não quer ficar só. Não sabemos case nada mais, mas sim parecem precisar-se um ao outro num lugar hostil. Como é a relação entre eles?
O casal como um pequeno reduto que nom pode conter a barbárie. Procura ser umha instantânea deste tempo: um sistema económico que nos conduze à morte social (com o desemprego) e à morte física (com a exploraçom laboral). Umha banda de psicopatas impom esta quotidianidade terrorífica. Para eles, nós pertencemos a umha categoria fora do humano.
"É um sistema económico que nos conduze à morte social, com o desemprego, e à morte física, com a exploraçom laboral"
Mas a história acontece de um modo inesperado, que confirma, se calhar, que a violência que ela está a enfrentar era demasiada para não acabar com ela. Mais uma vez, temos que imaginar que lhe acontece à personagem dela... Por que essas maiores elipses na história dela? Por que esse desfecho?
Suponho que em situaçons extremas quem cala é quem mais tem que dizer. A dor é tam grande que nom se consegue verbalizar. Rara vez essas vozes topam um espaço seguro onde emergir.
A conclusão que posso tirar é que fala da opressão como todos os teus livros: os poemarios e as peças de teatro. Dizias numa entrevista anterior que a opressão era o tema que urgia resolver e que não podíamos cair no fatalismo. Este último texto teu não deixa, porém, muito lugar para a esperança. Ou sim?
Pode que tenhas razom e o texto seja efetista, cheio de fatalismo, sem esperança. Humilde excrescência do mundo que me tocou viver. Peça "bien faite" no pior sentido da palavra. Infelizmente há becos sem saída, pontos sem retorno. Mostrar estas vidas atrapadas pode fazer-nos reagir. Italo Calvino fai umha reflexom que me reconforta. Ele assumia que morávamos no inferno. Por isso era fundamental procurar e saber reconhecer quem e que, no meio do inferno, nom era inferno e fazê-lo durar e dar-lhe espaço. Enfim, dedico a obra a todas as trabalhadoras precárias, empobrecidas e exiliadas da minha geraçom. Eu reconheço nelas essa esperança.
"Dedico a obra a todas as trabalhadoras precárias, empobrecidas e exiliadas da minha geraçom. Eu reconheço nelas essa esperança"
Ao preparar esta entrevista lembrava o teu texto Wellcome to Lampedusa, no que os refugiados de guerra são considerados culpáveis de terem fome e sede. É inevitável relacioná-lo com o que está a passar agora com os refugiados sírios. Mas é o mesmo que estava a passar há já muitos anos -aquele texto era de 2011-. Por que pode resultar tão actual este texto agora? Lampedusa também está em Oenach, junto a muitos outros oprimidos da História.
Nom sei se hoje é mais atual. Desconheço o momento da história onde a gente nom foi escravizada, massacrada ou expulsa da sua terra. Se calhar, antes da invençom da propriedade privada. Parto dumha conviçom profunda: Todos os trabalhadores e trabalhadoras do mundo som as minhas irmás. Para qualquer meio de comunicaçom empresarial, esta afirmaçom é própria dum demente. O colonialismo leva séculos existindo e condenando à morte e à miséria milhares de pessoas. Enquanto o Mediterráneo se converte numha imensa fossa comum, nos governos o único que cresce é o cinismo. Precisamos decolonizar os nossos olhares.
"Desconheço o momento da história onde a gente nom foi escravizada, massacrada ou expulsa da sua terra"
Em Exhumación falava-se também já muito de dominaçao de classe. A "utopia burguesa do Apartheid", da que também pode haver bastante em Psicofonías. Numa conversa anterior comentaras, a respeito disto, que "viver num país oprimido põem-te uns óculos emancipadores muito potentes". Podes explicar isto?
Um exemplo: Para mim, Ferrol é a cidade mais galega da Galiza. Ali vê-se a contradiçom irresolúvel entre o projeto de espólio espanhol e as condiçons materiais de existência do conjunto da populaçom. Em Ferrol como no resto da Galiza, o Reino da Espanha impede o mais básico: o direito à vida. Qualquer de nós sofre na própria carne o espólio ao que a Galiza está submetida. Afeta todos os sectores: leite, pesca, energia, construçom naval, emigraçom, extermínio cultural. Sem um controlo democrático da economia nom há democracia. A Galiza é um povo apátrida. Para sobreviver precisa dum Estado. Os diferentes processos de emancipaçom dialogam, solidarizam-se, nutrem-se entre si. O reconhecimento da própria vulnerabilidade favorece um maior compromisso ético. Neste sentido, a Galiza é umha célula de universalidade.
"Qualquer de nós sofre na própria carne o espólio ao que a Galiza está submetida"
Acho que as tuas peças seguem sem ser levadas a cena. Se calhar também não é algo que te preocupe muito... Mas sim que, as vezes, gostavamos de ver na cena galega mais teatro social coma o teu. O que tu chamaste "teatro-sabotagem”. Pensas que há algo que pode estar a freá-lo? -Este tipo de teatro, quero dizer-.
O teatro é um indicador da saúde democrática dum povo. O atual governo da Xunta fai todo o possível para que esteja numha situaçom agónica. A mim encantaria-me ver umha peça minha no teatro. Ironicamente esta entrevista vai ser mais lida do que qualquer texto assinado por mim. Vem-me à mente: As do peixe de Candido Pazó ou Eroski Paraíso de Chévere. Duas obras magníficas que nom tenhem vocaçom de estupefaciente.