Os espaços habitualmente não narrados. As "intimidades" que normalmente não são contadas. O relegado ao "privado", mas que é tão, ou mais, político, que o considerado "público". Disso fala Susana Sánchez Arins em Tu contas e eu conto, (Através Editora), o seu novo livro. Poemas e relatos para ajudar a mudar o olhar. Falamos com ela.
Havia bastante tempo que não publicavas...
Bom, depende de como se veja. Para quem publica um livro por ano é bastante.... Para mim é o normal: sempre passa um tempo entre livro e livro. Há três anos desde seique.
É um livro de contos e poemas. A relação entre ambos pode ir tornando-se mais evidente ao avançar o livro...
Há alguns contos e poemas que têm uma relação muito directa porque têm a mesma espita criativa. Por exemplo, Através do espelho -com Política assistencial-, o conto da sinha Mercedes, que tem demência. Nesse caso, nasceu primeiro o poema e depois o conto. Noutros casos, os versos contrastam um pouco com a voz narradora. Por exemplo, em Parto.
Neste primeiro texto do livro quis focar mais a atenção no tema das drogas e a dependência, que no conto não aparece, mas sim no poema. Jogando com isso, fui-lhe colocando um poema a cada conto, bem para contrastar alguns elementos, bem para reforçá-los ou só para acompanhar. E entendo o que dizes: pode haver relações mais transparentes do que outras.
Não é um romance, mas há relação entre os contos, também, através de personagens que se repetem.
Isso é parte do jogo, em realidade. Em alguns casos são, sim, os mesmos protagonistas num conto e no outro. Também se pode interpretar, em alguns contos, que são eu, que a narradora da história é a autora do livro, porque se chama Susana. Ao fazer a relectura do escrito decidi relacionar uns protagonistas com os outros. Por isso sim se repetem nomes, -há poucos nomes no livro, aliás-, reaparecen personagens.. E isso é intencionado, porque o livro joga com a ideia do que é real ou não, do que pode ser autobiográfico ou não... Há um jogo com a escrita autoreferente.
"O livro joga com a ideia do que é real ou não, do que pode ser autobiográfico ou não"
Não é que seja demasiado importante se é autobiográfico, mas eu sim lembro ter-te escutado contar a história das senhoras que se rebelaram contra o cura. A do conto Respect.
É que há muitos contos que bebem, sim, de vivências reais que transformo ou modifico. Em alguns contos pode ser mais evidente a referência à realidade: em que inchadinha branca vela! estão umas actividades de homenagem a Rosalía que se produziram realmente na data na que as situo. Isso pode-se comprovar. Mas ao lado de contos coma este há outros que são totalmente ficção. E essa ideia de misturar personagens, de fazer-lhes duvidar às leitoras, é parte também do jogo do limite entre realidade e ficção.
"Há muitos contos que bebem, sim, de vivências reais que transformo ou modifico"
Eu conto e tu contas. a intimidade, diz a contracapa do livro. É uma boa maneira de explicar que têm em comum os contos: a intimidade, o quotidiano.
A ideia é um pouco contar as histórias que não se contam. Há muitas histórias que ficam fora das grandes histórias mas que revelam mais, talvez, a realidade. Um exemplo pode ser o do conto do que acabamos de falar. Contou-se muito, porque está narrado na imprensa, o que passou com as pessoas mortas e feridas no acidente do Alvia.
Mas não se contou o que supôs para as pessoas alheias ao acidente, o impacto que produziu nelas, que diz também muito sobre a brutalidade do acidente. E falar dessas pequenas histórias é uma maneira de complementar as outras, de apresentar outras perspectivas para ajudar a perceber. Depois há também muitos contos que narram situações que ao contá-las fazem-se públicas, saem do privado. Como as histórias sobre agressões sexuais, que são coisas que nos dá até vergonha contar.. No livro há muito disso, de contar espaços habitualmente não narrados, intimidades que normalmente não são contadas.
"No livro há muito disso, de contar espaços habitualmente não narrados, intimidades que normalmente não são contadas"
Que pode ser um modo de fazer literatura política. Desde o íntimo.
Sim, claro. Também tem muito que ver com as leituras que fixem nos últimos anos, com livros que me impactaron muito. Coma os contos de Alice Munro. A sua contística são feitos quotidianos nos que podemos ler, entre linhas, situações sociais e culturais. Ou os contos de Lucia Berlin, Angela Carter... e poderia dizer muitas mais. A forma que têm de contar a intimidade, de transmitir elementos socialmente debatibles, que há que pôr acima da mesa.
"No fundo são contos políticos, mas contados desde o pessoal"
E sim, claro, no fundo são contos políticos, mas contados desde o pessoal. Democracia, por exemplo, questiona se vivemos num Estado realmente democrático. E isso há muitas maneiras de contá-lo, mas através de um conto coma este pode ficar melhor reflectido que com sisudas explicações sobre o sistema D?Hondt.
Há pouco participava num debate sobre que é agora o cinema militante ou político. Poderia dizer-se o mesmo da literatura. A que falamos é uma das suas formas.
É um pouco o que resume a frase do íntimo é político. Penso que é uma vitória dos feminismos. Muitas autoras estamos atravessadas pelos feminismos. E isso vai mais alá da forma de escrever, porque é um modo de ver o mundo, de observá-lo, de escolher o que escrevemos. É uma mudança de foco, que vai à privacidade para olhar de outra maneira, para questioná-la.
"Muitas autoras estamos atravessadas pelos feminismos"
Falando disso, o conto Artemisa Gentileschi vai sobre uma artista que viu o que ninguém antes tinha visto na história de Susana sendo observada por dois idosos.
Pois posso dizer-te que este conto é absolutamente real. Eu tenho o livro dedicado por um importante escritor da mesma maneira que conto neste conto. E passou-me o que conto no final. É uma maneira de visibilizar uma das muitas maneiras de agressão às que nos vemos submetidas as mulheres desde crianças. E isso é algo do que não se fala.
"Quando as mulheres denunciam agressões ou abusos, é habitual que a maior parte da sua contorna não acredite"
Mesmo muitas pessoas não o acreditam. Quando as mulheres denunciam agressões ou abusos, é habitual que a maior parte da sua contorna não acredite. Por isso é também muito importante que haja outras vozes que digam que a elas também lhes aconteceu. Em qualquer caso, apanhar esta anécdota bíblica e ver como foi representada na história da arte é um exercício muito revelador. Ver como são reflectidas as violências contra as mulheres, que muitas vezes são tão sutiles como geralizadas. É uma maneira de fazer ver a atmosfera na que vivemos.
As violências contra as mulheres estão muito presentes nos contos. O acosso, o maltrato -através de um conto sobre uma menina que escreve um conto-, os abusos sexuais. O último conecta com seique: são dois fascistas.
Pedagogia do conto fala, sim, sobre o maltrato, mas de uma maneira indirecta, através de uma menina que está a escrever um conto com a ajuda da profa. O diálogo entre a mestra e a aluna é também uma maneira de apresentar uma espécie de teoria contística do próprio livro, porque foi assim como eu o escrevi: tal como diz a mestra, apanhando coisas da realidade e usando-as como referência.
Ventureira Borraja nasce de seique, e aliás um doa personagens é o tio Manuel. Mas é ficção, escrita a partir de informação que me chegou depois de publicar seique. Histórias das que soube nos lançamentos do livro, nos encontros com as leitoras, por especialistas... Histórias sobre agressões que viveram as mulheres, violências relacionadas com a sexualidade.
"Todo este tipo de violências sexuais são ainda, também um tabu, mesmo para as mulheres que as sofreram"
Este conto também é uma homenagem a um médico que ajudou a gente que estava fugida no monte. E é uma maneira de falar de outro tema do que não se fala: mulheres que ficavam grávidas e que tinham que abortar para não delatar aos homens agachados no monte. Todo este tipo de violências sexuais são ainda, também um tabu, mesmo para as mulheres que as sofreram. E estão infrarrecollidas a respeito do impacto que tiveram. Ademais de conectar com as violências actuais.
Parto, que mencionavas antes, parece ciência-ficção. Um parto respeitado, desenvolvido segundo o plano de parto da mulher!
Não! Assim é como se paría no Salnés antes dos recortes. Este conto está baseado no parto da minha cunhada, mas não é ela, claro.
Tanto Respect como Democracia apontam a algo que acho que é intencionado: como as mulheres novas olham muitas vezes as velhas com muitos preconceitos.
Aponta a isso e ao rural, em geral. Porque temos uma visão do rural que é arcaizante. Parece, ademais, que é culpa do rural que gane o PP. Não se faz uma análise mais pormenorizada. E eu sempre o digo: o rural está a despoboarse e o PP ganha igual.
"Temos uma visão do rural que é arcaizante. Parece, ademais, que é culpa do rural que gane o PP"
O rural que está no livro é o que eu vivencio, o que vivi de criança e de adolescente e o que vivo de adulta. Nos contos está isto, sim, e está a necessidade de dignificar a figura das velhas. Que podem ir à missa, mas também podem brigar com o cura. O que reivindico é um olhar mais rico e menos cheio de preconceitos sobre o rural e sobre as mulheres maiores.
"O que reivindico é um olhar mais rico e menos cheio de preconceitos sobre o rural e sobre as mulheres maiores"
Democracia nasce, aliás, de um apuntamento que eu fizera no meu facebook a partir de algo que vivi numa mesa redonda na que participei. Alguém disse-me que, como escrevo em reintegrado, as pessoas não me entendem e então seguem votando o PP. A história que conto de Virtudes vivina eu na minha adolescencia. E para mim fora um hostión ideológico. Mas estamos cheias de preconceitos: que uma mulher leve pano negro não significa que seja uma beata. Também temos que rever as nossas ideias sobre o religiosas que são as nossas vizinhas...
"Que uma mulher leve pano negro não significa que seja uma beata"
Em vários dos contos, e este que acabamos de mencionar é um exemplo, há um final inesperado. Que é algo muito próprio da técnica do conto, mas penso que isso, junto com o humor, é uma das características dos teus contos. Que também não é que seja intriga...
A ideia é falar de mais coisas do que pode parecer ao princípio. E, uma vez colocado o final, fazer com que as leitoras relean, a ver se lhes cadrar. Com um final não esperable, que seja não intriga como bem dizes, mas sim surpresa. E isso é, sim, algo buscado, que faz parte da técnica do conto. O conto é, para mim, o equivalente da poesia, mas em prosa. Trata de concentrar a hsitoria em pouco espaço, e ademais melhor se consegue surpreender e fazer pensar.
"O conto é, para mim, o equivalente da poesia, mas em prosa"
Quanto ao humor, penso que eu são uma pessoa bem humorada. No livro há muita violência mas também muito humor, que também é uma das ferramentas para sobreviver às violências. Ademais, às galegas dá-se-nos muito bem. A retranca também é uma forma de defender-se das violências. No fundo, está a alegria de viver...
"O humor é também é uma das ferramentas para sobreviver às violências"
Como em Pequena morte. O conto erótico do livro.
Este conto já tinha sido publicado em Abadessa. Oí dizer. Decidi que estivesse neste livro porque também tem relação com a morte. E num livro no que está tão presente a violência, estava bem um contrapunto de desfrute erótico. Também tem relação com a ideia de contar o rural. Muitos dos contos não estão localizados num lugar concreto, mas para mim acontecem todos no rural.
"Muitos dos contos não estão localizados num lugar concreto, mas para mim acontecem todos no rural"
Alguns contos também podem ter uma chiscadela geracional. Num, as colegas do Burgo encontram numa manifestação.
Isso é parte também do que dizíamos antes: o jogo com o autobiográfico e a ficção. Um exemplo é Neve. Que resulta efectivo porque muita gente recorda aquela nevarada. Também é uma homenagem, sim, a tempos que viveste e que as leitoras podem reconhecer.
O primeiro conto é sobre um parto. Bem mais adiante, case entre os últimos, está Empreendedorismo. E coincidem as personagens. A mulher que pare no primeiro conto resulta que se dedica ao narcotráfico. Resulta chocante. E não sei por que.
Está esse jogo de relações, sim. É uma narca a que está de parto no primeiro conto. Ao primeiro, pensei num protagonista masculino que acompanhava a mulher no parto. Mas depois pensei, e por que não vai ser ela? No conto não se nota, mas por isso também pus o poema de janis, da heroína. E a questão é que sempre me chocou a importância do amor familiar, fraternal... entre pessoas que depois são quem de cometer assassinatos. Essa contradição. Aqui quis reflectir isso, sem tomar a cachondeo, o tema do narcotráfico e a violência que supõe.
Na série Matalobos estava muito bem reflectido o que dizes. A família, o narco como cacique...
Eu trabalhei e vivi no Salnés, assim que algo vim de como funcionava. Da série Farinha critica-se que põe de heróis aos narcos. Eu penso que isso é, precisamente, não perceber de que vai. Porque o narco é, precisamente, uma figura de protecção para a comunidade, e por isso funciona o sistema. Vê-se nele uma figura de protecção social, familiar... mais ao mesmo tempo é quem das piores violências. Tem essa ambigüidade. Não é coma o tio Manuel, que é um mau de livro...
"Outros contos tinham sido publicados também na rede ou em revistas e jornais, que são mais efémeros do que um livro"
Há uns quantos contos mais, como o da comunidade de lobas.
Não sabia se incluí-lo porque acontece noutra época, mas no final decidi que sim. E deveu ser do que mais gostou o ilustrador da capa, Leandro Lamas, porque fixo a ilustração a partir dele. Este conto tinha sido publicado em Palavra comum. Outros contos tinham sido publicados também na rede ou em revistas e jornais, que são mais efémeros do que um livro. Acho que está bem que estejam recolhidos em Tu contas e eu conto.