Igor Lugrís: “É reconfortante não fazer parte desse grupelho, ou facção, sem o qual a literatura correria o perigo de morrer”

Igor Lugrís © Distrito Xermar/ Arquivo AELG

Que muito poucas -ou se calhar nenhuma- pessoas estão chamadas a mudar os destinos da literatura universal -e mesmo nacional- é algo que não todo mundo assume. Por muito que a cultura não esteja, ou não deberia estar, feita de egos. Igor Lugrís é uma dessas pessoas que são conscientes disto. E que, sem pretender ser elevado a nenhum pedestal, nem estar sequer muito preocupado por chegar a publicar, fez muito, desde uma posição duplamente periférica: por escolha normativa e por desenvolver a sua vida além de “quatro províncias”. Falamos com ele, que respondeu as nossas perguntas por email, da sua trajectória na escrita.

A literatura é um modo de "interpretar o mundo. Não acho que sirva para transformá-lo, mas sim para clarificá-lo, e isso pode ser a base para mudá-lo. Acho que a poesia não deve procurar a beleza, mas a verdade. Mas não tudo é compromisso. Também tem que ter uma parte atrativa, evocadora, que te anime a seguir". Isto me comentavas numa entrevista feita há já anos, em 2008. Continuas a pensar o mesmo?

Continuo a pensar o mesmo, e estou ainda mais convencido do que antes. A literatura não transforma o mundo: são as pessoas quem o fam. A prova é a quantidade enorme de todo o tipo de textos (manifestos, poemas, romances, obras de teatro, ensaios, reportagens...) que chamam a transformar o mundo e o fato de que o mundo ainda não foi transformado; ou não foi transformado para melhor.

“A literatura não transforma o mundo: são as pessoas quem o fam”

É possível estabelecer um paralelismo com o que se passa com as redes sociais a dia de hoje: ser muito ativo nas redes sociais, publicando em Twitter, Facebook, Instagram ou qualquer outra rede, centos de comentários, textos, fotografias e memes de índole pretensamente revolucionária, não vão conseguir transformar o mundo. Com certeza, é necessário é útil fazer isso, faz parte das úteis atividades de agitação e propaganda, mas sabendo que sem o imprescindível trabalho prático, diário, real e não virtual, essa atividade não tem nenhum percorrido.

"Com a literatura, e as artes em geral, ocorre o mesmo. São uteis para a transformação social, mas sempre que fagam parte dum projeto maior"

Com a literatura, e as artes em geral, ocorre o mesmo. São uteis, importantes e necessárias para a transformação social, mas sempre que fagam parte dum projeto maior, no que também esteja presente o ativismo. Cada quem, cada autora e autor, cada artista com vontade de comprometer-se e pôr a sua obra ao serviço do bem comum por um mundo melhor e mais justo, terá que procurar o seu caminho e decidir como percorrê-lo. Não há um único caminho, mas recorrer o caminho continua a ser preciso. E assumo ao dizer isto a minha incoerência, dado que atualmente não participo da vida ativa e militante de nenhuma organização social, sindical ou política. Se calhar também isso tem qualquer cousa a ver com o fato de praticamente não publicar nada desde há mais de dous anos, e que com toda probabilidade assim continue.

São muitos os livros de texto e estudos críticos que, ao falarem em literatura, falam em “autores imprescindíveis” (aliás, por regra geral, homens: escritoros homens). É reconfortante não fazer parte desse grupo, grupelho, ou facção, sem os quais a literatura (se calhar mesmo a literatura universal, seja isso o que for) correria o perigo de morrer, desaparecer ou ver-se terrivelmente emagrecida. Saber que não fago parte da categoria de autor@s imprescindíveis faz com que escrever, ou deixar de escrever, resulte mais fácil, agradável e reconfortante: as palavras ditas, ou a sua ausência, não vão modificar o curso do universo, a história do país ou a vida de ninguém. Ser prescindível é uma grande tranquilidade, acho.

“Saber que não fago parte da categoria de autor@s imprescindíveis faz com que escrever, ou deixar de escrever, resulte mais fácil, agradável e reconfortante”

Quanto à procura da beleza, é possível que com o passo do tempo tenha modificado parcialmente aquela ideia. A poesia deve procurar, também, a beleza. Mas entendo hoje (se calhar não há dez anos), que a beleza é muito mais que certo prazer estético que nos produz a contemplação, a leitura ou a audição de um fato artístico.

“A beleza é muito mais que certo prazer estético que nos produz a contemplação, a leitura ou a audição de um fato artístico”

O título e a estrutura de Curso de linguística geral (Através), o teu último livro editado em papel, joga -com muita ironia- com a referência à obra do mesmo título assinada por Ferdinand de Saussure. Por que decidiste criticar, questionar, o que são as grandes certezas, os grandes princípios da Linguística?

Acho que finalmente o poemario não questiona os princípios da Linguística, mas faz uma releitura dos mesmos, com um importante papel dos elementos lúdicos e transgressores, ruturistas e mesmo provocadores. A pretensão ao ir escrevendo os textos que conformam o livro não era tanto pôr em questão a Linguística como demostrar que era possível, inclusive necessário, reler alguns conceitos, algumas ideias, algumas supostas verdades científicas, para ver que havia (se havia qualquer cousa) mais alá delas.

"Acho que finalmente o poemario não questiona os princípios da Linguística, mas faz uma releitura dos mesmos, com um importante papel dos elementos lúdicos e transgressores, ruturistas e mesmo provocadores"

Uma das ideias com as que mais tenho trabalhado é com a dessacralização de formas discursivas (científicas, mas também em ocasiões religiosas, e sem dúvida também as políticas) anquilosadas e rituais. A linguística, e desde logo um dos seus livros fundacionais, permitia-me amalgamar o texto literário com o metalinguístico e o científico para achegar uma visão diferente, irreverente ou provocadora, mas também amena e macia ao tempo que honesta e metódica. Finalmente, a ciência não é sempre assim tão científica. E esse espaço é o que me interessava: o lugar que está mais aló do limite da literatura, mas não é ciência, mais aló do ensaio sem ser ficção, mais aló da poesia sem ser um livro de texto.

“Esse espaço é o que me interessava: o lugar que está mais aló do limite da literatura, mas não é ciência, mais aló do ensaio sem ser ficção, mais aló da poesia sem ser um livro de texto”

Nos atos de apresentação do livro eu explicava que existe a teoria científica de que da realidade que nos rodeia, do conjunto de todo o universo e também do mundo no que vivemos e a galáxia na que vivemos, nem vemos nem conhecemos mais que um 20%, aproximadamente, e que o 80% restante é uma ainda ignorada matéria escura, da que desconhecemos –por resumir- absolutamente todo.

Como uma teoria complementária, eu venho sustendo como axioma que também só conhecemos o 20% da linguagem. O 80% restante é uma matéria escura, ainda desconhecida, e muito possivelmente nem imaginada. Por isso Não há duas palavras idênticas/ nem dois silêncios iguais/ Mas sim duas diferenças/ tão parecidas/ que sementam a confusão/ entre @s usuári@s habituais do sistema.

“Sempre me resultou muito interessante o fato de que o grande livro de Saussure não estivesse escrito por ele, mas pelos seus discípulos”

Por outro lado, sempre me resultou muito interessante o fato de que o grande livro de Saussure não estivesse escrito por ele, mas polos seus discípulos, que recolhem as suas notas e os apontamentos das suas aulas e redigem e publicam o livro sob o nome do professor já falecido. Isso, evidentemente, para quem, coma mim, duvida da existência da propriedade intelectual e a legitimidade dos direitos de autor, chama poderosamente e atenção.

Em que sentido aponta o livro à relação entre a própria linguagem e as relações de poder entre opressores e oprimidos? Parece que apontas a que gramáticas e os dicionários são parte dessas relações de poder, nas que mulheres ou as classes subalternas levam as de perder. Por isso falas, suponho, de substituir a subordinação pela insubordinação...

Um dos fatos mais escandalosos da linguística, do estudo da linguagem e das línguas, e do seu tratamento e processo de transmissão (por meio do ensino, por exemplo), é como reproduz todas as relações de poder que existem na sociedade e como isso é negado por boa parte dos académicos e especialistas. Quando aparece alguma análise, artigo ou entrevista com um desses senhoros da Academia (e, para isto, tanto tem de que território seja dita academia) a dizer que “a língua não é machista”, ou que as normas não podem ser modificadas, porque a língua está por riba de debates sociais, sempre penso na grande mentira que isso supõe.

“Quando aparece alguma análise com um desses senhoros da Academia a dizer que a língua não é machista porque a língua está por riba de debates sociais, sempre penso na grande mentira que isso supõe”

Podemo-lo ver, por exemplo, com o debate a respeito da linguagem inclusiva e a utilização do masculino como genérico. Os senhoros sempre vão dizer o mesmo: que se a língua não é machista, que se a economia linguística, que se todo isto é uma moda que pretende modificar artificialmente a língua... Mas tudo isso não explica cousas concretas. Por exemplo, porque nos dicionários as palavras só aparecem na sua forma em masculino, ou sempre e em primeiro lugar com a sua forma em masculino? Porque é que nos dicionários com citas de autoridade, estas pertencem sempre em uma percentagem muito elevada e atroadoramente majoritária, a escritores homens? Ou, ainda, porque é que quando temos de explicar a formação do género na língua, este processo é explicado desde o masculino (como sendo esta a forma inicial e verdadeira), dando por feito que o feminino é uma forma acrescentada, posterior, secundária, não original.

Porque não resulta possível explicar nas escolas e liceus que a nossa língua tem diversas formas de criar o masculino, entre elas:  a substituição do –a por um –o, como em “nena-neno”, “operária-operario”, “aluna-aluno”...; a supressão do –a final da palavra, como em “senhora-senhor”, “trabalhadora-trabalhador”, “professora-professor”,...; a modificação do final da palavra acrescentado terminações especiais, como em “princesa-príncipe”, “imperatriz-imperador”, “atriz-ator”,...; ou, por não estendermos a explicação, a utilização de palavras completamente diferentes, como em “nora-genro”, “vaca-touro”, “égua-cavalo”,...

“A língua, evidentemente, reflete o mundo, e se queremos realmente transformar o mundo, temos de transformar a língua, as línguas, e as linguagens”

A língua, evidentemente, reflete o mundo, e se queremos realmente transformar o mundo, temos de transformar a língua, as línguas, e as linguagens. Porque nunca as pessoas e grupos oprimidos puderam ser proprietárias da língua, sempre tiveram que admitir que esta fosse, em ultimo caso, um objeto propriedade dos poderosos. A linguagem do poder não vai ser a que ponha fim à opressão. Já podem os másters dar colheitas bem avondosas, já podem nas gramáticas falar com palavras bem formosas, que nunca nos hão de voltar a nossa língua de outrora; nunca nos hão descobrir a nossa línguagem de agora.

“Nunca as pessoas e grupos oprimidos puderam ser proprietárias da língua, sempre tiveram que admitir que esta fosse, em ultimo caso, um objeto propriedade dos poderosos”

A parte de "Linguística geográfica" tem um algo erótico. O começo do primeiro poema faz lembrar o teu "A minha língua quero na tua boca". Há ademais no livro -talvez- um nexo entre o erotismo e a reivindicação do nh, (do reintegracionismo como opção normativa e contra a discriminação por escolhê-la). Em que sentido?

Acho que uma constante na minha produção poética é essa reinvindicação linguística, sempre associada a um discurso (aliás, nem só discurso), erótico. O erotismo, a reivindicação do corpo, da carne, do prazer, do desejo, já estava presente, junto com a língua, em “Quen nos defende a nós dos idiotas” (o próprio título faz parte dessa reivindicação linguística), e com o passar do tempo fui aprofundando nela.

Na parte do Curso que aparece baixo o rótulo de “Linguística geográfica” recolhem-se alguns dos poemas que mais evidentemente permitem (inclusive provocam) essa leitura. Essa geografia é aí geografia do corpo, de todos os corpos e do corpo que cada quem desejar. Não é por acaso que se abre esse apartado com uma releitura e reescritura daquele poema A minha língua quero na tua boca: um poema que publiquei por vez primeira no meu blogue (hoje inativo) “Ovnis e Isoglossas” em agosto de 2006, mas que escrevi na sua primeira versão alguns anos antes. O texto rematou por ter certo sucesso, sendo recolhido em camisolas, crachás, cartazes... Com o passo do tempo, continuei a trabalhar com ele, escrevendo várias versões diferentes (uma delas publicada em imprensa, na desaparecida Revista das Letras, em 2008).

Convencido como estou de que a única tática certa para o sucesso da estratégia normalizadora da língua galega é o reintegracionismo, neste livro inclui esse poema que deixa clara a aposta polo “nh”, com um texto onde novamente o erotismo é o veículo da reivindicação: “A minha grafia quero na tua pele”. Temos uma língua que cada dia que se passa nos pertence menos, uma língua que se nos escapa, ou que estamos a deixar que se nos escape, mesmo sem querer, e sem crer, que isso suceda. Temos uma língua que nos provoca dúvidas, erros e incorreções na nossa vida diária mais rotineira, mas isso sim, com um exaustivo conhecimento gramatical.

“Temos uma língua que nos provoca dúvidas, erros e incorreções na nossa vida diária mais rotineira, mas isso sim, com um exaustivo conhecimento gramatical”

Temos uma língua que nos permite tardar menos de dous minutos em descobrir qual é o nome de todas e cada uma das partes dum carro... Um carro de vacas ou bois. Mas na qual nunca estaremos segur@s de saber o nome certo de todas e cada uma das partes do nosso carro, esse que conduzimos todos os dias. Cem nomes para a chuva, sim, mas seguimos chamando-lhe “paraguas” aos guarda-chuvas, mesmo que sejas d@s que pensam que se chamam paraugas. Estas cousas não lhe aconteciam às pessoas galego-falantes há cinco ou seis décadas. É assim que levamos 40 anos a perder o tempo.

O teu primeiro livro individual, Quen nos defende a nós dos idiotas? (Letras de Cal), está escrito, se não me engano, em mínimos. Este novo livro, publicado 19 anos depois, foi escrito na fase de transição entre a norma da AGAL e o Acordo Ortográfico. Podes explicar essa evolução tua no que diz respeito a opção normativa?

Quando estava a realizar atos de apresentação do Curso, eu resumia a minha produção poética com um texto que indicava: “Quatro livros. Tres normativas. Duas décadas. Uma língua”. É um processo comum, acho, a muitas pessoas que nestas duas ou três últimas décadas temos caminhado desde posturas não-reintegracionistas (mesmo anti-reintegracionistas, como foi no meu caso quando era estudante no liceu) até uma assunção do reintegracionismo como uma evolução natural e inevitável.

Acompanhado processos sociais, políticos e mesmo vitais, eu (e outras muitas pessoas) fumos passando por esse continuum que são as normativas do galego. Tal e como eu o vejo hoje em dia, a magnitude das diferencias (a todos os níveis) entre as diferentes normativas é muito menor que a magnitude das suas semelhanças. Fazendo um paralelismo com a linguística, e do mesmo modo que acredito na existência duns universais linguísticos comuns a todas as línguas conhecidas existentes no mundo, acredito na existência de universais linguísticos comuns a todas as normativas conhecidas existentes na galeguia/lusofonia. Deste modo, para mim o ter aportado no Acordo Ortográfico é uma evolução completamente normal e esperançosa.

“Acredito na existência de universais linguísticos comuns a todas as normativas conhecidas existentes na galeguia/lusofonia”

Lendo livros de autoras e autores angolanos, moçambicanos,... que indicam estar publicados seguindo o AO, dou-me conta de que se a sua língua está aí, a nossa também pode, e deve, estar aí, para poder seguir viva. Viva no mundo, mas, e isto é o mais importante, viva na Galiza: é a melhor e mais útil tática para demostrar que temos uma língua viva, útil e com futuro.

Em Quem nos defende a nós dos idiotas? há um sentido de tomar a palavra para não acabar de desaparecer, para não ser definitivamente derrotados. Mongólia. Umha entidade estatal rugosóide, imagina um país utópico, reduto último da liberdade e de disidência. Quanto há nestes livros de alegoria nacional galega? (Porque acho que vão mais alá do nosso espaço...)

Mongólia foi (continua a ser, em tanto que pode continuar a ser lida), um canto de protesto e afirmação, que pretendia dizer “cá estamos, de aqui não nos vamos”. Por suposto, poderia ter-se titulado Galiza, e falar da Galiza, em vez de Mongólia, mas possivelmente então não seria literatura. E eu pretendia escrever poesia, não as teses político-ideológicas de uma organização revolucionária (para isso, fazia parte na altura de algumas organizações políticas).

“Eu pretendia escrever poesia, não as teses político-ideológicas de uma organização revolucionária (para isso, fazia parte na altura de algumas organizações políticas)”

Tem vários pontos em comum com Quem nos defende a nós dos idiotas, com certeza, mas são livros bem diferentes. Mongólia é um livro unitário, com uma série de elementos que unificam a sua escrita, em quanto o anterior era uma soma de poemas diversos, escritos ao longo de dous ou três anos.

Mongólia, um redondo vocábulo, uma palavra com características que me permitia construir uma serie de texto com um elo que lhes aportasse unidade, converteu-se assim na forma de dizer aquilo que eu pretendia. Usar Mongólia, um lugar longínquo mas reconhecível, estranho mas não irreal, permitia separar-se, alhear-se, o suficiente, sem afastar-se mais do imprescindível. Por vezes desde a paródia, o jogo ou a irreverencia, mas conservando um nexo, por pequeno que for, com a realidade mais próxima.

Isso possibilitava, facilitava criticar, burlar-se e até arranjar diversas contas que eu achava que tinha pendentes. Alegoria? Sim, por quanto foi um modo indireto de representar uma ideia sob a aparência (evidente, aliás) de outra. Mas não é isso sempre a literatura? Como na definição clássica de signo: aliquid estat pro aliquo.

En Mongólia (2001) havia sentido de alheamento na própria terra, como há talvez em O livro das confusons (2007), que volta falar da liberdade -ou do passo do tempo-. Que teve que ver a tua deslocação, há anos, ao Berzo com este terceiro livro? Como foi a tua experiência ali com o tema da defessa do galego?.

O livro das confusons converteu-se, com o passo dos anos, no livro ao que lhe tenho mais carinho e do que me sinto mais orgulhoso. Se calhar por tratar-se dum livro que conheceu um processo de edição e distribuição muito singular, mas também polo seu processo de criação: passo a passo, sem pretensões, longe do mundanal ruído... É uma escritura sobre os acasos, as confusões, os equívocos, mas também, e precisamente por isso, sobre as decisões, as reflexões, as certezas. Os meus primeiros anos no Bierzo aparecem lá bem recolhidos, acho.

“Linguisticamente, viver no Bierzo é como viver na Galiza antes de existir nenhuma legislação sobre a língua galega: todo o mundo sabe que está aí, mas ninguém vai dar nada por ela, pode desaparecer, mas sem molestar”

Linguisticamente, viver no Bierzo é como viver na Galiza antes de existir nenhuma legislação sobre a língua galega: todo o mundo sabe que está aí, mas ninguém vai dar nada por ela, pode desaparecer, mas sem molestar, sem incomodar, sem protestar. Finalmente, não tem direito à existência. É uma cousa estranha. Essa é a música de fundo que se pode ouvir no livro.

Depois de Curso publicaste na internet A magnitude da mais-valia e 55 minutos de silêncio. O segundo é, formalmente, diferente dos demais: poemas curtos de três versos. Mas, se olhamos os temas, acho que são os mesmos: a memória, a liberdade, a exploração capitalista das classes subalternas, a uniformização cultural e linguística, o controlo da dissidência política... Mas se calhar tratadas mais desde o quotidiano (está muito bem o do camionista que diz que o difícil não é escrever coma Manolo Rivas, senão coma ele, a conduzir). Em que de diferenciam, nesse aspecto, os novos livros dos anteriores?

Tanto A magnitude quanto 55 minutos são livros anteriores ao Curso e ao Livro das confusons. Se não estou errado, A magnitude da mais-valia é mesmo anterior a Mongólia, foi escrito antes. Um livro que percorreu alguns certames e concursos, e que foi enviado a alguma editorial, mas que não conseguiu sair adiante: para bem ou para mal, nem ganhou prémios nem teve interesse parar nenhuma editorial. Essas cousas passam, é claro.

Com o passar do tempo, decidi não continuar com ele, e ficou arrombado em alguma pasta dum velho disquete (isto era antes de existirem os pen drives). Tempo depois, quando a AELG (Associação de Escritoras e Escritores em Língua Galega) abriu o “Centro de Documentação” na sua web, e dava a possibilidade de recolher lá obras publicadas ou inéditas para a sua consulta, decidi enviar os livros que tinha, e, entre eles, inclui estes dous. Um pouco pretencioso, se calhar; mas pensei que era uma boa forma de que vissem a luz, mesmo que só fosse uma meia luz.

A magnitude tem evidentes, parece-me a mim, relações com Mongólia e com Quen nos defende: humor, retranca, intenção lúdica, provocação, metaliteratura, temática... 55 minutos é bem diferente: textos muito mais pessoais, introspectivos, reflexivos... É um texto construído a partir duma cita, nem lembro de quem, dum cartaz que vi pendurado em 1997 nas paredes dum bar, o Record, no Bairro Alto de Lisboa, e com uma estrutura mui determinada: dez poemas de dez palavras, nove poemas de nove palavras, oito poemas de oito palavras... e assim por diante até chegar ao último, um único poema de uma palavra. Nada a ver com os livros anteriores e os posteriores, e, nada a ver o que tenha publicado até hoje. Não viu nunca a luz em papel, e o seu percorrido foi ainda menor que o de A magnitude.

“Publicar não me tira o sonho, e bem sei (não é falsa modéstia) que o sistema literário não os vai botar em falta”

Estes livros que vão ficando atrás no caminho são uma realidade, e um nunca sabe bem o quê fazer com eles. Quando menos eu nunca sei o quê fazer com eles. Algum outro tenho que também, depois de percorrer algumas editoriais e participar em alguns prémios, não chega a porto nenhum. Se calhar, está bem que seja assim. Publicar não me tira o sonho, e bem sei (não é falsa modéstia) que o sistema literário não os vai botar em falta. Nas gavetas, ou nas pastas dos computadores, vão ficar, até que algum dia sejam definitivamente apagados.

Também tens trabalhado com poesia visual e com uma ideia do poema como objeto plástico para ler, recitar e expor, como no projeto Poesia para Ver/Poesia para Ler. Como resultou este último trabalho?

Mercê uma das minhas experiências laborais, nas que trabalhava o desenho gráfico e a impressão de materiais diversos, teve a oportunidade de aprender alguma cousa sobre esse mundo, e acabei conjuntando a escrita com o desenho, dando lugar àquela experiência tão gratificante que foi Poesia para ver/poesia para ler, e que não teve continuidade porque mudei de trabalho (forçosamente, a empresa para a qual trabalhava quebrou e ficamos no desemprego as pessoas que lá trabalhávamos). Finalmente, e como já nos ensinou o marxismo, as condições materiais de existência determinam não só a consciência, mas também o desenvolvimento de determinadas capacidades e possibilidades.

Mas aqueles trabalhos, convertidos em exposição, e que ainda hoje em parte podem ser visitados em Flickr, resultaram muito gratificantes. Para mim significou uma nova possiblidade de pôr em causa os limites dos géneros, de amalgamar diferentes disciplinas e de, entre outras cousas, mostrar, ou isso pretendia, que também a propriedade intelectual é um roubo.

Li no portal da AGAL que este projeto tinha surgido do teu bloque Ovnis e Isoglossas, como a proposta de cadáver esquisito Um cadáver na rede. Este blogue é acessível na rede, mas não continua ativo. Como foi a experiência de manter este bloque?

Novamente tenho que dizer o mesmo: as condições materiais de existência determinam também o desenvolvimento das atividades intelectuais. Em quanto tinha uma atividade laboral que me permitia criar, desenvolver e manter o blogue e as iniciativas que nasciam aí, foi possível fazer diversas atividades. Quando as obrigas laborais se tornaram diferentes, mais precárias, mais exigentes, teve de abandoar o blogue, por falta de tempo e capacidade.

“As condições materiais de existência determinam também o desenvolvimento das atividades intelectuais”

Nasceu praticamente por acaso, e sem pretensões de perdurar, mas lá estivo, na rede e ativo, desde Janeiro de 2005 até finais de 2011, primeiro em blogspot e depois alojado dentro do Portal Galego da Língua. Vivendo no Bierzo, perto e ao mesmo tempo longe da Comunidade Autónoma Galega, representou a possibilidade de manter o contato e estar atento ao que naqueles anos se movia no mundo da cultura e da rede em galego.

Algunha outra coisa que queiras comentar? O da autoedição e edição na internet, é por livre opção ou também porque editar em papel acabou sendo mais difícil?

Acho que deveu ser uma mistura de ambos condicionantes. Publicar poesia em galego com uma norma reintegracionista é uma tarefa bem complicada: são realmente poucas as opções, e nesse sentido o trabalho que está a fazer um projeto como Através Editora é realmente importante, facilitando a publicação de autoras e autores que em muitas ocasiões não podem, ou não podemos, aceder a outras editoriais.

Por sorte, hoje em dia há alguma outra editorial que, timidamente em ocasiões, com decisão e orgulhosamente noutras, aposta por abrir os seus espaços às autoras e os autores reintegratas. Desde aqui, e na medida do que poda valer a minha voz, encorajo-os a manter e aprofundar nessa via, por que, com certeza, não têm nada a perder, mas sim muito a ganhar.

“Por sorte, hoje em dia há alguma outra editorial que, timidamente em ocasiões, com decisão e orgulhosamente noutras, aposta por abrir os seus espaços às autoras e os autores reintegratas”

Por continuar com a tua pergunta, quando eu botei mão da autoedição, com Mongólia e com O livro das confusons, também foi porque queria conhecer, experimentar, jogar, com essa experiência de participar de todo o processo: desde a criação até a edição, venda, distribuição, promoção, etc... Fazer isto, também ajuda a analisar e valorar o trabalho que realizam as editorias, e, com certeza, outr@s autor@s que apostam por esse caminho para publicar as suas obras.

Igor Lugrís, nun acto do 17 de maio Dominio Público Praza Pública

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