Uma mulher rebelde que cansou de cumprir as normas. Uma mãe que tem que escolher entre a verdade e o amor. Uma pessoa que escolhe desafiar a sociedade afastando-se dela, do seu consumismo. Uma personagem que situa a leitora diante das suas contradições. Assim é Sara, a protagonista do novo romance de Teresa Moure (Chiado Editora), ‘Uma Mãe Tão Punk’. Falamos com a autora deste romance e da sua obra anterior, o ensaio ‘Politicamente incorreta’ (Através Editora).
Estiveste apresentando a tradução ao espanhol de ‘A intervención’, ‘Artes subversivas para cultivar jardines’, nas Astúrias e em Madrid. Como foi?
Excelente. Como escritora galega com o compromisso de escrever em galego é duro perceber, no entanto, o simples que é chegar a alguns sítios a partir do espanhol. Mas ‘Hoja de Lata’, a editora que publicou a tradução, é um projecto recente e dissidente. E os públicos com os que me encontrei, em livrarias, em bibliotecas e nos médios de comunicação participavam desse ar dissidente. Estavam predispostos a gostar dum romance ecologista. Falei muito também da literatura galega como literatura militante, feita frente ao Estado, por pessoas que decidem escrever em galego sabendo que vão ter menor difussão. É claro, contudo, que onde quero morar e escrever é aqui.
‘A intervenção’ utilizava os diários para contar a história desde diferentes pontos de vista. Algo semelhante passa em ‘Uma Mãe Tão Punk’. Por que?
Utilizo muito o dos diários, sim. No caso de ‘Uma Mãe Tão Punk’ porque a acção começa quando Sara está morta. Tem, assim, algo de trihller, de romance policial, pois tenta explicar o que se passou. Interessava-me colocar a personagem do ponto de vista do fim, da derrota. Como está morta, a única maneira de aceder à sua voz é através do que deixou escrito, do diário. A personagem de Sara procede de uma obra de teatro, ‘Cínicas’, onde já ficou escrito que ela queimava a casa e morria. Em ‘A intervención’ os diários sim que eram um modo de contar a mesma história desde diferentes perspectivas.
Sara é uma mãe que se afasta da ideologia convencional sobre a maternidade. Que é um tema que já reveras em ‘O xeira das árbores’ e em ‘Herba Moura’... Por que?
Essa é uma escolha deliberada, sim. O tema estava em ‘A xeira’, em ‘Herba Moura’, em ‘Unha Primavera para Aldara’, em ‘Eu violei o lobo feroz’... Interessa-me a maternidade como um tema pouco explorado na literatura. E não porque a literatura a fizeram homens, senão porque não era um tema considerado literaturizábel. Ou tratava-se só de um modo topificado: a mãe castradora, a Medea... A mãe tinha um amor parcial, não objectivo. O amor de mãe tópico tem uma leitura antipolítica. É uma ideia contrapolítica, como se amássemos apenas por ditado biológico. O que eu tento nos meus romances é dar outras perspectivas sobre a maternidade. Uma mãe pode ter diferentes tipos de relação com os filhos e filhas, e mesmo diferentes tipos de relação com cada filho. Pode haver uma maternidade criativa, transgressora, podem-se inverter os papéis e ser a mãe quem aprende e a criança quem ensina...
"Sara é uma mãe alternativa. Desfrutou muito da maternidade, mas chega um momento em que é posta num dilema entre o amor maternal e a verdade"
Sara é uma mãe alternativa. Desfrutou muito da maternidade, mas chega um momento em que é posta num dilema entre o amor maternal e a verdade. Ela foi juíza. É uma pessoa que ama a verdade, que não pode aturar nem a corrupção do filho advogado nem as mentiras em que vive instalada a filha. E não quer ser a mãe abnegada que aguarda a esmola dos filhos em forma de visita. É uma personagem como de tragédia grega. Decide dar-lhes a última lição, que é uma lição de amor também.
Sara é uma pessoa lúcida. Resgata objectos que a sociedade rejeita porque já não são perfeitos. Opõe-se ao consumismo. Tem, à sua maneira, a mesma sensibilidade ecologista que muitas outras personagens tuas.
Interessava-me tratar o tema da loucura. Há uma tendência a associar a síndrome de Dióxenes com a demência. Diz-se que são pessoas que estão a sós, abandonadas. Eu queria falar da loucura segundo é percebida noutras tribos, como um estado de consciência diferente do habitual. Sara acumula objectos que outras pessoas consideram lixo. A mim surpreende-me a atitude dos coleccionistas: acumulam coisas que para outra pessoa são trapalladas. E isso faz Sara: acumula coisas que para os demais são lixo. Dá-lhe uma nova vida aos objectos que, como ela, foram abandonados pelas pessoas que os quiseram.
Ela escolhe causar rejeição. Apartar-se do mundo. Cansou de cumprir as normas. Não quer ordem nem moderação. É fácil que cause simpatia na leitora. Mas também nos situa face à realidade e, se calhar, face à nossa hipocrisia. Gostaríamos de que a personagem saísse da ficção e fosse a nossa vizinha?
Sara é punk. Igual que há grupos de punk que pretendem causar certa rejeição social, Sara quer ser uma personagem lixo e é coherente com o que decide. Sabe que se está a situar nas margens da sociedade. Sim que pode produzir na pessoa que lê essa dupla sensação que dizes, mas claro, a mim resulta-me difícil adotar o sítio da leitora.
Não julgas as personagens. Sara, a filha e o filho têm as suas razões, como a Helena, a companheira do filho, que é quem primeiro se dá conta do que lhe passa a Sara.
Não creio nas verdades estabelecidas. E no livro cada personagem tem a sua voz, também porque utiliza a fórmula do diário. O mais difícil foi representar o filho, um advogado corrupto que justifica um delicto repugnante. É um desafio em termos morais defender alguém que fez o que fizeram os seus defendidos -queimar uma anciã que durmia no caixeiro dum banco-, mas ele explica as suas razões. Helena está na fase final dum ciclo com o Pedro, o filho de Sara. E Sara o que queria dizer-lhe é que fosse valente, que tomasse as decisões que considerasse oportunas.
Nos teus romances há muitas personagens que se situam nas margens, por diferentes motivos. É um modo de chamar à rebelião, de alguma maneira?
Pois a verdade é que não é um projecto consciente, como sim o é nos meus livros falar da maternidade ou pôr as personagens femininas em prelacão a respeito dos masculinos. Não é algo que planifique, mas sim é evidente que muitas das minhas personagens se situam nas margens. Será porque eu são assim. Minha mãe dizia-me que eu era uma menina rebelde. Dizem-me muitas vezes nas entrevistas que falo continuamente em liberdade ou em rebeldia. Pois é.
Quando apresentaste ‘Eu violei o lobo feroz’ dizias que pela primeira vez não havia discordância entre a tua leitura e a leitura pública da tua obra. É assim também com ‘Uma Mãe Tão Punk’?
"Percebe-se melhor a envoltura ideológica que rodeia as minhas obras. Para isso é que a mudança ortográfica ajuda"
Referia-me com isso sobretudo ao tema da mudança ortográfica. Leitores que se calhar não me leram assim tanto ou não tão em profundidade situavam-me numa esfera menos dissidente, porque eu ganhara prêmios e isso dava-me uma imagem de “oficialidade” que não me correspondia. E com ‘Eu violei o lobo feroz’ o que se passava é que, o leitor ou leitora podia gostar do livro ou não, mas sim que entendia o que eu queria dizer. E o mesmo está a passar com este novo romance, também nesta última experiência fora da Galiza. Percebe-se melhor a envoltura ideológica que rodeia as minhas obras. Para isso é que a mudança ortográfica ajuda.
‘Politicamente incorreta’ recolhe reflexões de ‘O natural é político’ e de ‘Queeremos um mundo novo’. Que alarga com outros temas. Num formato se calhar mais divulgador.
Eu sempre tento fazer ensaios literários, não técnicos. Já nos ensaios anteriores. Mas é verdade o que dizes. Como são professora, e o meu estudantado às vezes quer citar-me nos seus trabalhos, eu queria que não tivessem que citar um ensaio meu que estivesse noutra normativa. Esse foi um dos motivos de recolher fragmentos doutros ensaios em ‘Politicamente incorrecta’. Também mostrar que a normativa reintegracionista não serve apenas para falar de língua. E abrir um debate entre ecologismo, feminismo, independentismo... Buscar interseções entre conjuntos diferentes, que queria tratar juntos.
Por que feminismo e ecologismo são, para ti, indisociábeis?
Sempre me identifiquei com o ecofeminismo; é normal que veja uma forte semelhança entre as duas correntes, que se calhar não se vê tanto noutras posições feministas. Estes pensamentos põem o foco nas estruturas de domínio que ficaram fora do pensamento hegemónico ocidental, num caso para subjugar a natureza, noutro as mulheres. O modelo é, porém, o mesmo: o homem como dominador da natureza. Uma concepção hierárquica que subordina a natureza e as mulheres. E esta é uma questão fundamental para elaborar qualquer resposta contrapoder.
Por que sentes, dalguma maneira, a necessidade de explicares que o ecofeminismo não é um movimento conservador?
A identificação das mulheres com a natureza é uma tradição no pensamento ocidental. A mulher move-se no âmbito do privado e a sua conduta está regida pelo almanaque da lua ou pelo seu ciclo menstrual... O feminismo nasce lutando contra essa ideia: nem a mulher é biologia, nem está obrigada à maternidade. E o ecofeminismo, que se detém na conexão entre os valores das mulheres e a natureza, pode perceber-se por isso como um movimento conservador. Mas não. É libertario.
Também te defines como queer. É já case um tópico, mas há um debate entre o queer e o feminismo. Pode o queer invisibilizar as mulheres como mulheres?
"Eu não posso estabelecer laços de solidariedade com uma pessoa com a que não tenho muito a ver só por ter os mesmos genitais"
O feminismo criou um “nós” forte. Entende que as mulheres, por partilharem corpo e experiências comuns, têm que estabelecer vínculos de solidariedade fortes; a sororidade. E isto poderia levar, por exemplo, a não criticar a uma Christine Lagarde ou a uma Esperança Aguirre por muito fatais que forem as suas políticas, a proteger-se umas a outras nesse “nós” feminino. Com queer rompe-se a categoria género. Não há géneros. E isso é muito libertador para os indivíduos. Mas, logicamente, ao romper o género, deixa de haver um nós. Os feminismos reagem lembrando que foi o pensamento feminista o primeiro em questionar o género. Mas queer vai além disso. Porque considera que também não há sexo, que o sexo é uma construção. Eis onde queer o feminismo, digamos clássico, podem ver-se dissociados. O feminismo diz que as mulheres ainda não atingimos uma igualdade real, como para prescindirmos desse nós forte. E é verdade. É um debate interessante. Mas para mim queer é mais evocador. Eu não posso estabelecer laços de solidariedade com uma pessoa com a que não tenho muito a ver só por ter os mesmos genitais, e ao mesmo tempo distanciar-me de alguém com quem tenho uma relação mais íntima porque o seu corpo não é como o meu. Pode haver homens feministas e mulheres não feministas. Com efeito, o feminismo clássico corresponde com um momento histórico que ainda precisamos, mas acho que o objectivo é rachar com os géneros.
Neste livro, e em geral na tua obra, reivindicas o corpo. Dizes que há algo de auto-ódio em renegar do corpo pelo feito com que que seja reduzido a objecto pelo patriarcado. Vem a conto, por exemplo, do debate sobre as Femen.
Esse é um tema que entronca com a literatura galega contemporânea, sobretudo com as poetas que reivindicam o erotismo feminino. Defendo os ludo-feminismos, -algo semelhante ao ludo-reintegracionismo-, porque acho que é um erro situar-se sempre na posição de estar chateada... Para além disso, o prazer é uma das reivindicações clássicas do feminismo. Não quero um feminismo malhumorado.
Em relação com isso, quando publicas ‘Eu violei o lobo feroz’ o que querias não era dar-lhe a volta ao conto tradicional e fazer com que caperuchinha comesse o lobo. Caperuchinha viola o Estado. E faz desde o seu desejo, a sua paixão selvagem. Podes explicá-lo?
No lançamento desse livro comprovei que havia muita gente que se sentia convocada pelo título. Que esperava que a protagonista se vingasse do lobo. Mas não é isso. Por uma banda ela viola o Estado, as suas normas, como presa independentista que é. Por outra parte, ela deseja irredente o lobo. Não é uma relação idílica com o amante. A voz poética situa-se no selvagem, no rebelde, no irreductíbel, no desejo desenfreado. Ela quer ser devorada pelo lobo. E esse é o desafio do livro.
Muito se fala de independentismo ultimamente. E faz-se sobretudo desde tópicos: os catalães querem a independência porque são ricos. Cales som, para ti, as razões do independentismo galego?
"O independentismo galego é de classe, não pode ser de ricos egoístas"
A razão para ser independentista é que há uma ferida histórica, um agrávio, a opressão das culturas galega, catalã e basca pelo Estado. O independentismo galego é de classe, não pode ser de ricos egoístas. Em termos mais gerais, somos independentistas para poder ser internacionalistas e não esse modélico “cidadão” de nenhuma parte que come hamburguesas no McDonald’s e fala um inglês breve. Somos mais um povo do planeta, com o mesmo direito a existirmos que os demais.
A respeito da língua, em ‘Ecolingüística. Entre a ciencia e a ética’ estavas em contra dos argumentos utilitaristas. Defendias as línguas desde uma perspectiva ecológica e não segundo os milhões de falantes de cada uma. Quais são os teus motivos para adoptar a norma reintegracionista?
Eu acho que o argumento utilitarista pode servir para atrair pessoas para o galego e nesse sentido é uma táctica que pode utilizar-se contra o poder e está bem. Mas o que penso é que não tem que ser o centro do discurso. Se defendemos o galego pelo facto de o falarem 200 milhões de pessoas, não vamos defender o éuscaro porque se fala só em Euskadi? Defendemos o direito dos povos a conservarem o seu património cultural, por eles e por toda a humanidade. Porque quando desaparece uma língua, toda a humanidade fica mais pobre. Por isso, para mim a adopção do reintegracionismo relaciona-se, mais bem, com a questão independentista, com a questão identitaria, de defesa de uma tradição histórica e de ética universal. Aliás, o nosso galego está cheio de españolismos. Olharmos ao sul da nossa fronteira o que faz é devolver-lhe ao galego parte da sua história.
Na parte sobre ecologismo defendes não as reformas light senão uma mudança do nosso modo de vida, consumindo muito menos, que é o que quer Sara. Ao falar do vegetarianismo achegas um dado arrepiante: para produzir um litro de milho consomem-se 450 litros de água, para produzir um de carne 15.000.
"O livro vai dedicado a Carlos Taibo e não é por acaso: há tempo que venho defendendo a causa decrescentista"
O livro vai dedicado a Carlos Taibo e não é por acaso: há tempo que venho defendendo a causa decrescentista. Isso implica não limitar o ecoloxismo a uma maquilagem; é um modo diferente de viver, um tema que sai de novo na personagem de Sara de que falávamos ao começo. O vegetarianismo, para mim, não é uma fé. Não implica que não possas comer carne nunca: apenas que tomemos consciência do que implica o consumo de carne. Peter Singer escreveu na década de 70 ‘Libertação animal’, um livro em que falava das condições fatais em que vivem os animais que são sacrificados na indústria cárnica. Venho dessa tradição inteletual: consentimos o sofrimento animal para depois queixar-nos do colesterol. Em ‘O natural é político’ já introduzi esse dado da água que comentas. Quando disse numa apresentação que se poupava tanta água deixando de comer um quilo de carne como deixando de tomar duche num ano inteiro, um homem assegurou que eu estava a defender que a gente não se lavasse. E não é isso!. Só que temos de ser conscientes das condições em que se produz a carne que comemos.
O de não lavar-se seria como Sara, a tua personagem. Dizes também que o vegetarianismo é um veitor de libertação e também nacional. Num país que exalta a aldeia, a matança do porco...
A personagem de Sara está inspirada numa mulher real que morava em Santiago, no bairro do Sar. Eu encontrava-me com ela muitas vezes. Ia vestida com farrapos, em condições de abandono. Depois saiu no jornal que houvera um incêndio na sua casa e morreram ela e o seu companheiro. E que lhe encotraran no frigorífico uma cheia de dinheiro. A minha proposta argumental só introduz uma variante: a de optar voluntariamente pela miséria. Relativamente ao vegetarianismo, na cultura galega e no pensamento nacionalista em especial, há uma tendência a exaltar a aldeia. Mas a realidade é que o nosso modo de vida está cada vez mais americanizado. Só há que ver a quantidade de pessoas que passeiam nos centros comerciais, procurando no shopping um divertimento. O ideal decrecentista, que exige diminuir o consumo em geral e controlar o consumo de carne, pode ser um modo de libertação nacional nesse sentido. Isso também saía em ‘A Intervenção’, que é um livro que teve pouca interlocuão com a sociedade, se calhar porque tratava esse tema tão espinhento da minaria. Eu criticava os interesses da indústria mineira, que não é defendível no seu abuso do espácio natural só pelo argumento de que dá postos de trabalho.