Dizia o professor Arturo Casas na apresentação em Compostela, no espaço Almáci(gas), de Livros que não lê ninguém (Através Editora), que o seu autor, Isaac Lourido, “tem essa capacidade de olhar a sítios onde ninguém olha”. E se calhar essa é a melhor definição do trabalho deste crítico e investigador, que acabou também de ganhar o Premio Carvalho Calero por História literária e conflito cultural. Bases para uma história sistêmica da literatura na Galiza. Este ensaio assenta os alicerces teóricos que aplica Livros que não lê ninguém. Poesia, movimentos sociais e antagonismo político na Galiza, uma coletânea de textos que colocam no centro de interesse a ideia de conflito e em os que se procura a convergência entre como investigação e o ativismo.
Falavas na apresentação em Santiago de Livros que nom lê ninguém da tensão entre a importância da poesia como género simbolicamente mais importante e consumo da mesma, níveis de leitura. Porquê? Para onde te levou a reflexão sobre este facto?
Parece-me interessante refletir sobre este assunto porque, na verdade, carecemos de estudos rigorosos sobre o consumo literário na Galiza (que autores/as são os mais lidos/as, que géneros têm melhor aceitação, quais são as tiragens médias dos livros) e, portanto, não os podemos contrastar com a perceção de que a poesia é o género que acumula maiores capitais simbólicos.
"Carecemos de estudos rigorosos sobre o consumo literário na Galiza e, portanto, não os podemos contrastar com a perceção de que a poesia é o género que acumula maiores capitais simbólicos"
Abrir esta linha de pesquisa seria útil para intervir com melhor critério em debates concretos da nossa cultura, sobre a maior ou menor importância e representatividade de um/a escritor/a ou sobre a conexão de poéticas concretas com o “social” ou o “popular”. Eu não tenho respostas certas para isso, só a consciência de que nestes debates é normalmente ignorada a concorrência no mesmo espaço social (ensino, mercado, lazer, etc.) com a cultura espanhola e de que, aliás, é muito habitual a projeção, mais ou menos consciente, de algum tipo de desejo planificador (relacionado com a normalização linguística e cultural ou com a construção identitária).
Em História literária e conflito cultural realizas uma proposta de bases para a história sistémica da literatura na Galiza. Porquê a teoria sistémica é especialmente operativa para estudar o campo literário galego?
As teorias sistémicas (teoria dos polissistemas, teorias da instituição literária e teoria do campo literário, basicamente) não desenharam modelos historiográficos específicos, mas foram empregadas com muita frequência e relativo sucesso para o estudo de culturas marcadas pela dependência, a subalternidade, o conflito ou a marginalidade. Esse sucesso tem a ver com a incorporação à análise de elementos não considerados nos esquemas de raiz filológica ou textualista (as instituições, o consumo, o mercado, as tensões com o campo do poder, entre muitos outros). Também com a superação da sociologia da literatura de inspiração marxista menos dinâmica.
Isso aconteceu em campos académicos como o quebequense, o belga ou o galego. Xoán González-Millán, Antón Figueroa, Arturo Casas ou o Grupo Galabra da USC formularam esquemas teóricos e metodológicos especificamente pensados para a cultura galega, com base em variáveis que não foram previstas nem incorporadas pelos modelos teóricos iniciais (pensados para sistemas ou campos “normais”, “estáveis”), e com reconhecimento dentro e fora do nosso campo académico. No texto que venceu o Prémio Carvalho Calero tentei a projeção desta rede de propostas sistémicas para o âmbito da História literária, também como proposta para uma disciplina cuja crise epistemológica está a ser debatida desde há várias décadas.
"Devemos distinguir a história literária nacional, como modelo hegemónico da disciplina até os nossos dias, do “nacionalismo literário” tal e como o formulou no seu momento González-Millán"
A tua proposta pressupõe a "destituição do modelo nacional como paradigma de afirmação histórico-literária preferente para espaços culturais atravessados pela subalternatidade". Porquê? Porque o “nacionalismo literário” tem esse efeito de restar autonomia do qual falas no livro?
Devemos distinguir a história literária nacional, como modelo hegemónico da disciplina até os nossos dias, do “nacionalismo literário” tal e como o formulou no seu momento González-Millán, quer dizer, como conjunto de práticas tendentes à revalorização ou reparação de uma tradição literária, práticas que incluem a subordinação dos valores estéticos aos nacionais e que são proclives, em geral, à promoção de determinados repertórios e de determinadas leituras (grupais e épicas, com frequência).
Se a história literária nacional foi construída a partir de conceitos como as origens, as continuidades históricas, o progresso e (nunca explicitamente) como ferramenta subordinada a um projeto de maiores dimensões (um projeto nacional, normalmente), o modelo que eu proponho coloca no centro dos seus interesses a ideia de conflito, de maneira que postula uma História da literatura na Galiza que, entre outras coisas, conceda protagonismo destacado às relações historicamente conflituosas entre a literatura galega e a espanhola no nosso espaço social.
Na tua revisão das perspetivas que conceberam o estudo da literatura galega de perspetivas empírico-sistemáticas salientas dois autores, González-Millán e Antón Figueroa. Qual foi o contributo de cada um deles?
O fundamental destes dois autores é que souberam assimilar teorias e metodologias reconhecidas internacionalmente e adapta-las para o estudo da cultura galega. No caso de González-Millán destacaria o seu esforço por construir na década de 1990 um modelo de análise institucional, incorporando alguns elementos até aquela altura pouco estudados, como a repercussão do conflito cultural no trabalho de criação, os prémios literários ou o estudo da narrativa como género emergente. Numa segunda fase, destacaria a elaboração de um modelo de teoria crítica especifico para o caso galego, com contributos procedentes das teorias pós-coloniais, da subalternidade ou da crítica do espaço público.
No caso de Antón Figueroa são referenciais os seus trabalhos sobre a projeção da diglossia social e do conflito lingüístico na literatura, sobre as relações entre literaturas e sobre a posição que nelas ocupa ou tende a ocupar uma literatura (periférica, dependente, problemática) como a galega e, finalmente e de forma destacada, a sua tentativa de adaptar e aplicar de forma rigorosa a teoria do campo literário de Pierre Bourdieu para o nosso espaço social, dado que as formulações iniciais desta teoria estavam pensadas para o estudo de campos culturais consolidados.
"A posição de subalternidade podemos percebe-la com intensidade em momentos e âmbitos específicos, por exemplo à hora de realizar uma transferência da esfera académica para os debates públicos"
O grupo Galabra vai mais além das perspetivas de González-Millán e Antón Figueroa em alguns aspectos, segundo comentas. Como se relaciona o facto da construção de um modelo teórico alternativo com a sua própria posição de “subalternidade” no sistema -pola opção reintegracionista-?
Os principais méritos de Galabra são a incorporação do trabalho em equipa, que permite o desenho de planificações investigadores mais ambiciosas, o desenvolvimento de uma metodologia empírica para as aplicações sistémicas e, mais recentemente, a transição para modelos de pesquisa já não restringidos à literatura e mais interessados no ámbito da cultura. Desde os seus inícios, no ano 1999, principalmente através da produção do seu diretor, Elias Torres Feijó, mas também dos resultados de investigadoras como Raquel Bello ou Roberto Samartim, conseguiu progressivamente um maior reconhecimento no campo académico, e infelizmente muitas vezes com maior sucesso fora da Galiza do que dentro.
A posição de subalternidade que mencionas na tua pregunta podemos percebe-la com intensidade em momentos e âmbitos específicos, por exemplo à hora de realizar uma transferência da esfera académica para os debates públicos, ou quando os resultados das investigações afetam alguns dos pilares básicos do stablishment cultural galego. É nesses casos quando a cultura da normalização exibe a sua força para repartir autoridades, protagonismos, representatividades.
"Devemos entender o conflito não só como um conflito entre sistemas ou campos, senão também como um conflito entre modelos de planificação social e entre nacionalismos"
Um conceito fundamental na tua proposta é o de conflito. Como se relaciona com o de antagonismo e com a tua vontade de fazer investigação militante, ativista?
São conceitos que fazem parte de uma mesma constelação conceitual. No modelo de história literária que proponho, devemos entender o conflito não só como um conflito entre sistemas ou campos, senão também como um conflito entre modelos de planificação social e entre nacionalismos. Deste ponto de vista, o conflito é a fórmula prototípica de se relacionarem as culturas que partilham um mesmo espaço social. O conceito de antagonismo tem um maior protagonismo em Livros que nom lê ninguém, ainda que não tem um desenvolvimento extenso na obra. Chantal Mouffe define o antagonismo como disrupção da hegemonia e do poder instituído e usa o conceito para denunciar a impossibilidade de que a democracia funcione como mera soma de heterogeneidades e pluralidades, de que o espaço público seja o ámbito para um debate entre iguais ou de que o consenso não implique algum tipo de exclusão.
Com estes conceitos pretendo também fazer uma análise atualizada de trajetórias e práticas normalmente aludidas mediante noções talvez já algo gastas como as de compromisso ou resistência. Situar o conflito e o antagonismo no centro dos meus interesses pode delimitar para mim uma determinada posição, não sou eu a melhor pessoa para julgar isso. Tenho a certeza, isso sim, de que o campo de intervenção preferente dos meus trabalhos é o académico, de que nesse âmbito as possibilidades de transformação são limitadas (é só mais um campo de batalha, entre muitos outros) e de que a possibilidade de transferência de conhecimentos para os movimentos sociais é ainda mais dificultosa.
Partes de uma concepção da cultura que não é, na maioria das vezes, a do cânone. Porque incorpora práticas "tradicionalmente marginalizadas". Apontas, por exemplo, com Antón Lopo, que a poesia não está só nos livros. Por que havia que rever, em geral, esse conceito de qual é o objecto de estudo, de que é cultura?
O fundamental é trabalhar com definições dinâmicas e abertas, intentar delimitar o que funciona em cada momento como poesia, literatura ou cultura. Isso significa uma atenção permanente e descomplexada sobre processos sociais e culturais do tempo presente. No catálogo da exposição Dentro (2007) Antón Lopo referia, mais exatamente, que chegara à conclusão de que “a poesia não podia ser só literatura”. De outra posição, o investigador valenciano Antonio Méndez Rubio fala da poeticidade inscrita nos movimentos sociais.
"Quem é que tem interesse em estabilizar ou restringir os âmbitos do poético, o literário ou cultural e segrega-los da esfera política?"
O manual da Guerrilha da Comunicação interessa-se e até oferece ferramentas para uma ação direta política através do uso de códigos poéticos e artísticos... Quem é que tem interesse em estabilizar ou restringir os âmbitos do poético, o literário ou cultural e segrega-los da esfera política? A mim como investigador interessam-me reflexões como as agora citadas, e como ativista também, e até por isso penso que no relativo à cultura devemos transitar para uma definição mais abrangente que a conceba como conjunto de ferramentas para a organização, o funcionamento, a compreensão e a coesão social.
Atendes, dentro disto, e em relação com a conexão entre cultura e movimentos sociais, ao catálogo de repertórios para a resistência cultural. Defendes que, em determinadas circunstâncias, uns determinados repertórios podem ser mais eficazes (o ridiculismo)...
A escolha de umas ou outras formas de mobilização deve estar guiada por critérios de adequação e eficácia. Trata-se de pensar o que é o mais ajeitado e o que pode resultar mais efetivo segundo os processos e os objetivos concretos que estejam em jogo. Obviamente, nem sempre é fácil fazer este tipo de previsões. A força mobilizadora de um movimento social tem a ver com a capacidade para ativar uma gama variada e dinâmica de repertórios. Nuns casos serão repertórios de molde mais clássico (abaixo-assinados, manifestações, pintadas, cortes de trânsito) e noutros casos terão um cariz mais inovador, por exemplo através da incorporação de elementos artísticos (desde o mais clássico recital de poesia até performances coletivas que introduzem algum tipo de conflito no espaço público).
"A força mobilizadora de um movimento social tem a ver com a capacidade para ativar uma gama variada e dinâmica de repertórios"
O primeiro tipo de repertórios continuam a ser eficazes em muitos contextos (temos o caso das ações contra os despejos), mas tendem a ritualizar-se, são mais previsíveis e, portanto, mais fáceis de reprimir. Por outro lado, a escolha de uns ou outros repertórios causa com frequência tensões no interior dos movimentos, embora haja casos como o do feminismo galego das últimas décadas que está a demonstrar um dinamismo exemplar.
Uma das tuas propostas em Livros que nom lê ninguém é uma história da Galiza pós-franquista a partir do movimento estudantil, do Nunca Mais, do Festival da Poesia do Condado ou da luta das Encrovas. Porque estas escolhas? -Falavas de não contar uma história de elites, senão desde abaixo, que doutra parte é um paradigma bastante aceitado hoje na historiografia-.
Ainda que se trata de pouco mais do que um rascunho, e de que é uma proposta pensada para mudar os imaginários mais habituais na sociedade catalã sobre a cultura galega, o certo é que há a intenção de incorporar algumas correntes historiográficas como a que tu salientas da “história vista de baixo”.
A seleção desses elementos tem a ver com uma espécie de descentralização dos vinculados à temporalidade e uma aposta por outro tipo de elementos: espaços (Compostela), movimentos sociais (Nunca Mais), eventos (Festival da Poesia no Condado), lutas concretas (feminismo, defesa da terra). Esta mesma dimensão está presente no texto que ganhou o Carvalho Calero. Com base em propostas do investigador Mario J. Valdés, no modelo de história literária que defendo têm um protagonismo específico não só nodos de caráter temporal, senão também nodos de caráter topográfico, institucional e simbólicos.
"O fracasso do modelo de normalização na Galiza tem a ver com a imitação e a importação de repertórios, instituições ou modelos de produção e consumo percebidos como eficazes em contextos culturais estáveis e consolidados"
Outra das ideias importantes do livro é a crítica da ideia de “normalização". Isto relaciona-se com a "promoção acrítica" de umas indústrias culturais construídas arredor da necessidade de "encher vazios" para voltar-se normais, porque "tem que haver de tudo". Porque preferes a "diferença" à "normalização"?
O fracasso do modelo de normalização na Galiza tem a ver com a imitação e a importação de repertórios, instituições ou modelos de produção e consumo percebidos como eficazes em contextos culturais estáveis e consolidados, e portanto completamente diferentes nas suas circunstáncias do caso galego. O que é ainda mais grave é que parte desse processo de normalização pretende imitar ou incorpora elementos do sistema cultural com o qual comparte um mesmo espaço social e com o qual, do meu ponto de vista, está em situação de conflito.
Se a normalidade passa pelo paradoxo de que sejam as instituições públicas a planificar umas indústrias e um mercado cultural (e até a heterodoxia do sistema, como aconteceu com a nomeação de Lois Pereiro para o Dia das Letras Galegas de 2011) ou, noutro âmbito, pela promoção indiscriminada de qualquer produto que empregue a língua galega, a nossa cultura está condenada à desaparição num mundo em que não será capaz de marcar as suas próprias regras de funcionamento (a isso é ao que chamamos “autonomia”). A minha aposta pela diferença é, na verdade, uma aposta de fundo pela implementação de valores alternativos aos do capitalismo e aos do sistema cultural espanhol.
Este princípio de normalização cultural tende a ativar o que Arturo Casas chamou "crítica vicaria", tendente à benevolência e ao uso de critérios diferentes dos estéticos para julgar as obras. Achas que é essa a tendência da crítica de poesia na Galiza hoje?
Não sei se podemos falar da “crítica galega” como um todo homogéneo. Esse modelo de crítica normalizadora é um dos existentes, e sem dúvida constitui um referente importante (de forma mais ou menos consciente) para uma boa parte das pessoas que se dedicam a esta atividade. Mas penso que há outros modelos e outros referentes ativados, e que podemos falar de diferentes contrapesos entre avaliação, gosto, interpretação e análise no campo literário galego. Penso por outro lado que não podemos julgar com os mesmos critérios a crítica realizada nos meios de comunicação não especializados que aquela outra realizada no âmbito académico. A importância do modelo normalizador, interessado em geral na divulgação dos elementos que sustêm determinados consensos da cultura galega atual, tem mais protagonismo, obviamente, nos jornais.
"A poesia social na literatura galega, vinculada normalmente a um determinado modelo de escritor e intelectual, foi talvez só a reprodução a escala menor dum modelo hegemónico na literatura espanhola durante o franquismo"
Interessa-te especialmente a convergência entre poesia e política: Redes Escarlata, Festival de Poesia do Condado, Semana da Poesia Selvagem de Ferrol, Rompente, Ronseltz... Como muda o conceito canónico de poesia política (poesia social) ao atender a todos estes espaços de acção política através da poesia? Se queres traçar uma genealogia da mesma, quais seriam os nomes principais?
Para uma literatura como a galega é mui difícil falar de cânones, precisamente pela sua precariedade institucional e histórica. O que sim sabemos é que, em momentos concretos, determinadas aberturas pretenderam a atualização daquelas poéticas que aspiravam a produzir transformações no âmbito social e político. A poesia social na literatura galega, vinculada normalmente a um determinado modelo de escritor e intelectual, foi talvez só a reprodução a escala menor dum modelo hegemónico na literatura espanhola durante o franquismo. Poéticas como as de Méndez Ferrín, Alfonso Pexegueiro ou Manuel Vilanova aspiraram já nos anos da reforma democrática à sua superação, em moldes estritamente literários.
As reformulações posteriores foram numerosas, mas não sei se é operativo nem a formulação de uma genealogia nem o destaque de nomes principais. Nos textos que integram Livros que nom lê ninguém tentei dar menos protagonismo a categorias como as de tradição, geração, autor ou obra, em benefício de outras com maior fundamento sociológico e sistémico (grupos, repertórios, relações, conflitos, etc.). O objetivo não é, portanto, o de fornecer uma mirada global e completa sobre a convergência entre poesia e política. Pela própria estrutura do livro, o propósito é outro: a análise de processos, práticas e trajetórias concretas que, na sua leitura relacional e entrecruzada, possam ajudar a compreender as poéticas interessadas na transformação política, e especialmente daquelas relacionadas com os movimentos sociais.
Um dos exemplos de poética militante que analisas é o de Manolo Pipas. Como dizias na apresentação, não está nas margens, senão fora, noutro lugar, que é o dos movimentos sociais. Não existe também, ao tentar fazer crítica militante, um risco de cair em tópicos - como pode ser “margem", precisamente?
“Margem” é um conceito teórico útil para definir aquelas posições que, dum determinado ponto de vista, estão mais longe dos centros do sistema e, doutro ponto de vista, possuem uma menor quantidade dos capitais (simbólicos, se falamos de poesia) que estão em disputa no campo. Os conceitos de centro e margem devem ser vistos como relativos e dinâmicos. Não há um único centro e umas margens estáticas. Há muitos centros e muitas margens, submetidos a processos de tensão e câmbio constantes, muito mais acentuados em sistemas institucionalmente fracos como o galego.
"Não há um único centro e umas margens estáticas. Há muitos centros e muitas margens, submetidos a processos de tensão e câmbio constantes, muito mais acentuados em sistemas institucionalmente fracos como o galego"
Como tu bem apontas, o interessante do caso de Manolo Pipas é o de analisar se faz parte da periferia do sistema literário (em virtude das suas publicações e da presença em determinados grupos, antologias e eventos) ou se o seu âmbito de atuação real tem mais a ver com os movimentos sociais e, mais especificamente, com “micro-campos sociais” regidos por uma lógica ativista e, neste caso, vinculados a determinados espaços da cidade de Vigo.
Na última parte do livro recolhes críticas velhas tuas de livros de membros das Redes Escarlata... para fazer autocrítica da tua própria crítica. Que elementos dessa crítica suprimirias agora, de voltar a fazê-la?
Sinceramente, penso que não faz muito sentido avaliar as mudanças que faria nesses textos. Nos trabalhos que compõem o livro, tanto nos mais velhos como nos mais novos, há com certeza erros, ingenuidades e a projeção involuntária de elementos indesejados, embora disfarçados de uma suposta distância investigadora. A inclusão dessas resenhas de livros escritos por membros das Redes Escarlata tem um duplo objetivo. Por um lado, servir como base para uma proposta de investigação mais alargada sobre o grupo; pelo outro, a análise das tensões que padece uma pessoa que realiza crítica literária na Galiza.
Algumas delas já foram referidas com anterioridade, como as relacionadas com a normalização e o modelo de “crítica vicária”. Outras tensões têm mais a ver com a relação que eu como crítico (jovem, periférico, com poucos capitais) estabeleci com cada autor/a e com cada poética. Com as resenhas de Ferrín publicadas em 2005 e 2006 cai (de forma mais ou menos consciente) na “tentação” de polemizar e propor uma impugnação da sua posição central. Com outras poéticas, como as de Oriana Méndez ou Gonzalo Hermo, produziu-se o contrário, uma espécie de diálogo empático entre propostas literárias e propostas críticas. Este exercício de auto-análise e reflexão sobre a própria atividade crítica nem sempre é fácil de realizar, mas considero-o imprescindível.
"Penso que nas Redes Escarlata se dá uma combinação de modelos, repertórios e poéticas, circunstância que não impediu uma forte coesão como grupo"
Falas das Redes Escarlate a falas de vanguarda, da importância de internet, da performatividade ou da incorporação de membros seus às principais instituições culturais do país. Seria assim como uma combinação de repertórios clássicos com os mais novos. Quais são, no seu caso, os repertórios mais eficazes?
Efetivamente, penso que nas Redes Escarlata se dá uma combinação de modelos, repertórios e poéticas, circunstância que não impediu uma forte coesão como grupo. Falo não só de modelos poéticos mas também de modelos de intelectualidade e de ação política. O magistério de Méndez Ferrín funciona como referente para muitos dos integrantes, tanto no que diz respeito ao tipo de ação intelectual preferida (o modelo mais clássico do intelectual comprometido sartriano) como no relativo aos seus comportamentos institucionais ou no trabalho de criação. Até poderíamos considerar a existência de epígonos de Ferrín entre os membros do grupo, especialmente naquelas poéticas mais interessadas em repertórios épicos e de inspiração nacional-popular, que não é infrequente ver em recitais públicos.
Em outro pólo podemos identificar modelos e repertórios de diferente tipo, mais dispostos em geral a dialogar com as reflexões sobre a escrita da pós-modernidade. Poéticas como as de Chus Pato, Antón Lopo, Gonzalo Hermo, Claudio Pato ou Elvira Ribeiro estão sem dúvida mais abertas ao diálogo com linguagens não só literárias e à incorporação duma performatividade que tende a criar resultados inclassificáveis de acordo com os moldes clássicos. Cada uma das duas tendências, com frequência entrecruzadas e híbridas, tem os seus espaços, públicos e horizontes de incidência. E ainda que o modelo mais clássico parece já acusar sintomas de esgotamento, em qualquer dos dois casos devemos pensar sempre em prazos de eficácia médios ou longos, não imediatos.