Carmelo Lisón Tolosana interpretava a organização territorial galega através das fogueiras do São João. O ritual protetor do lume costumava começar com uma pequena cacharela na porta da casa, às vezes um simples tuxinho, para posteriormente participar na fogueira de bairro ou de aldeia, e em algumas partes mesmo numa grande cacharela de toda a paróquia. Para o antropólogo “o ritual expressa e sanciona, numa palabra, segmentos da estrutura social. O que implica um certo grau de oposição mútua”.
Outros rituais iam além da união paroquial, expresando segmentos sociais maiores; comarcais, regionais, ou mesmo nacionais, como nas grandes romarias do Santiago Apóstolo ou o Santo André. O valor da confederação supra paroquial adverte-se em rituais que lutavam contra as forças demoníacas. Nos itinerarios religioso-terapéuticos, por exemplo, o doente que não se cura vai pasando da meiga da paróquia à da comarca, da missa na sua igreja à santa “nacional” especializada em cada caso. Em Monfero, para lutarem contra o enmeigamento duma pessoa havia que reunir muita força, por isso levavam a pessoa doente ao marco de Portocobo, no que limitam as paróquias de Vilachã, Taboada e Grandal. Na comarca de Cedeira, afetada por ventos prejudiciais que atribuiam ao demo, ergueram uma cruz de ferro na Pedra Chantada, cúmio duma montanha visível em toda a contorna. Colocaram-na feligreses de sete paróquias acompanhados de candanseu cura, de maneira que durante cinco anos a comarca permaneceu livre de temporais. “A união de sete paróquias com os seus sete santos patrões –explica de novo Lisón Tolosana- vence o demo. A chave do ritual é, pois, idéntica: a certo nível e para lutar contra forças determinadas, ou conseguir os seus favores, a unicidade paroquial é impotente”.
Na Galiza estes espaços de elaboração da identidade proto-nacional nunca tiveram tanto impulso como noutras nações próximas, ou não se empregaram para construir a moderna identidade nacional
Neste tipo de rituais expressava-se uma identidade comum muito antes de chegarem as identidades modernas e as suas técnicas e conceitos. Os lugares altos, e montanhas (quase sempre com algum santuário) eram, antes da popularizaçom dos mapas e demais, os espaços nos que se podia “imaginar a comunidade”, mirar mais lá da própria paróquia e o seu campanario. Mas na Galiza estes espaços de elaboração da identidade proto-nacional nunca tiveram tanto impulso como noutras nações próximas, ou não se empregaram para construir a moderna identidade nacional. No País Basco, por exemplo, estes montes que permitiram desde tempo remoto “ver o país” e forjar uma identidade supraparoquial, imaginar a comunidade, hoje são mui reconhecidos. Aralar, por exemplo, é um dos partidos que integram EH Bildu: toma o seu noome da montanha na que se unem os quatro herrialdes do Sul. Nos Países Catalãos, na noite de São João, transportam lenha de todas as comarcas até o Canigó, montanha mágica e símbolo da sua unidade. A 2.784 metros de altura prendem uma enorme cacharela, a Flama del Canigó, que se pode ver desde toda a chaira. Com o seu lume prendem-se outras fogueiras do país. Significa tanto para o povo catalão que desde 1964 mantém-se encendida e exposta a Flama del Foc del Canigó no Castellet de Perpinhã. Antes da senyera, a bandeira do povo era o lume.
REQUIÁRIO MATA TRÊS!
Com ironia republicana García Lorca cantava que:
“Se tua mãe quer um rei,
o baralho tem quatro,
rei de ouros, rei de copas,
rei de espadas, rei de bastos”.
Álvaro Cunqueiro, caso único de arredista monárquico, evocava a “galaica coroa” como “monarquia da imaginação e da melancolia, que não sujeito da realpolitik, nem sequer da política a secas”. Quiçá por isso o de Mondonhedo contentara-se com propor um baralho galego, com Fernando de Andrade como cavalo de ouros e Pardo de Cela de cavalo de bastos.
A reivindicação da nossa história salta dos libros eruditos e do pó das bibliotecas às mesas das tabernas
Seja como for, a republicana Gentalha do Pichel vem de editar um “Baralho Suevo” no que reis, bispos e cavalos representam candansua figura histórica: de Andeca (quem promete livrar-nos da monarquia visigoda) a Hermerico, pasando por Maeloc ou Martinho de Dume. Desta maneira tão original, a reivindicação da nossa história salta dos libros eruditos e do pó das bibliotecas às mesas das tabernas, entre cuncas de ribeiro e pinchos de orelha.