Principia Rudolf Otto a sua investigaçom sobre o conceito do sagrado1 citando o mestre teólogo Friedrich Schleiermacher, (1768–1834) para quem, o caminho para compreender a divindade decorre polo sentimento humano de dependência e a via intuitiva. Tal sentimento de dependência tem para Otto um carácter muito particular e radical que nada tem a ver com a banal sensaçom das carências ou insuficiências persoais experimentadas senom com essa apaixonada intensidade com que é formulada por Abraám: “Eis que me atrevi a falar ao Senhor ainda que sou pó e cinza” (Bíblia de Almeida, ERC, Génesis 18, 27). Aludem Schleiermacher e Otto à sensaçom de desamparo radical que rondou a Pascal de por vida e tingiu de agudo desassossego os seus Pensées.
O cristianismo transmitiu desde a sua origem esse radical sentimento de dependência que vibra como bordom obrigado no sentimento religioso mais autêntico mediante umha fórmula quase perfeita que acabaria consagrando-se como o paradigma da oraçom atribulada da comunidade orante: Kyrie eleison, Senhor tem piedade. O Kyrie é a mais perfeita fórmula do sentimento de desamparo na nossa tradiçom religiosa, ao ponto que ter chegado a nós convertida em sintagma consagrado e insuperável. Foi-nos transmitido sem modificaçom no seu formato grego originário, nunca mudou, nem o sagrado latim ousou modificar as divinas palavras. A repetiçom rítmica da fórmula aponta a um estado de consciência ensimesmado e meditativo: Kyrie eleison, Christe eleison...
Seria possível conceber fórmula ritual mais persistente e insistente que esse sussurro de desamparo que atravessa toda a história da cristandade? Desde o canto gregoriano até as prodigiosas catedrais sonoras da Missa em Si menor de Bach (1749), o Requiem de Mozart (1791) ou a Missa Solemnis de Beethoven (1805) confirmam a insuperável potência do Kyrie como súplica de desamparo e submissom, como alusom ao numinoso, na interpretaçom de Otto.
E contodo, a súplica introspectiva e incessante da igreja latina foi ultrapassada pola sua versom ortodoxa que o misticismo eslavo conseguiu elevar a cimos de máximo esplendor devocional e musical: Gospodi pomilui é a fórmula venerada desde o canto eslavónico mais primitivo até a sumptuosa liturgia musical ortodoxa. Ninguém que tenha escuitado as Vésperas de Sam Joám Crisóstomo de Sergey Rachmaninov pode permanecer indiferente às poderosas vagas vogais do Gospodi pomilui. O inimitável esplendor das Vésperas ortodoxas: Grechaninov, Tchaikovsky e, Rachmaninov por cima de todo. Puro fervor de exilado da pátria espiritual perdida que a liturgia pretende actualizar.
Estranho país a imensa Rússia. Lemos os Relatos de um peregrino russo2. Um piedoso itinerário físico e espiritual redigido a meados do século XIX na esteira da tradiçom contemplativa hesicasta (de hesychia: quietude) da espiritualidade ortodoxa. O relato é, em essência, um breviário para o aprendizado da oraçom interior incessante como caminho místico para alcançar a perfeita quietude e paz do orante. O peregrino do relato, um starets ou mestre espiritual, tenta explicar a via de acesso a este estado de sabedoria interior que também foi cultivada pola filosofia budista e zen.
Para o aprendiz de místico nom cabem meias tintas. As possessons materiais do peregrino som exíguas: “um surrom de pam seco ao lombo e umha bíblia ao peito, nada mais”. Começa o relato sem mais preámbulos com três citas sagradas que ocupam a atençom do starets: “Orai sem cessar” (1 Te, 4, 17), “Orando em todo o tempo, com toda a oração e súplica no Espírito” (Ef, 6, 18), “Quero, pois, que os homens orem, em todo o lugar, levantando mãos santas” (1 Ti, 2,8), citas que eu transcrevo da Bíblia portuguesa de Almeida, ERC.
O peregrino nom pretende interpretar o texto sagrado, a sua tarefa é mais prática: procura um guia ou vade-mécum de acçom para aceder à autêntica paz de Deus. A sua intençom é pô-lo à prática sem hesitaçons: aprender a orar como nos foi indicado a fim alcançar a beatitude prometida.
O programa do peregrino é exigente, nom admite desculpas nem demoras. Por isso deambula por caminhos e mosteiros perguntando aos homens santos, explorando palavra a palavra os evangelhos em busca do verdadeiro método da oraçom a fim de alcançar essa disposiçom de ánimo que o apóstolo demandou: orar em todo tempo, em todo lugar, em forma incessante. Mas, será sequer possível para um ser humano a oraçom contínua. Medita o aprendiz de stárets.
“Eu dormia mas o meu coração velava”, repara o peregrino no Livro dos Cantares, 5, 2. A insónia de amor transmutada em vigília permanente como o ar que respiramos sem sentir. Essa é a meta, compreende finalmente o peregrino russo.
Um homem santo o instrui, deve o aprendiz repetir com plena concentraçom e valendo-se de um rosário a prece santa, três mil vezes ao dia, para principiar, seis mil depois de um tempo de adestramento, e depois doze mil. Sem presas, acompassando o bater do coraçom e a respiraçom. A final este prosseguia sem esforço, como a própria respiraçom.
Em 1782 aparecera em Veneza unha obra, a Filocalia – o amor da beleza que reunia textos dos Padres do deserto que inspirárom a vida monacal. É daí de onde procede a oraçom do coraçom, como também foi conhecida essa prática ascética da oraçom incessante. Um dos relatos da Filocalia é o do peregrino russo, o qual irá ganhando audiência a partir dos primeiros anos do século XX, a maneira de breviário de espiritualidade filocálica. A singeleza e fervor dos relatos do peregrino prendérom na apaixonada intelectualidade russa: Gogol, Dostoievski, Tolstoi, Soloviev contam-se entre os leitores atentos do opúsculo.
Os estudiosos da crónica espiritual do caminho místico em procura da oraçom de Jesus situam o centro de irradiaçom do culto no mosteiro de Óptina, Kozelsk, ao sudoeste de Moscovo. O mosteiro, famoso polos sucessivos starsi que ali exercérom o seu magistério foi residência transitória dos grandes escritores russos. O stárets Zósima do romance de Dostoyevski Os irmaos Karamázov (1878-1880) está inspirado no monge Ambrosi de Óptina (1812-1891) igual que o Padre Sergio (1899) romanceado por Tolstoi. A Filocalia monacal impregnou a incandescente intelectualidade do imenso império dos czares a um extremo inconcebível para a nossa mentalidade. A espiritualidade monástica latina é inevitavelmente beneditina e, como tal, judiciosa e moderada. Em plena efervescência espiritual chegou o ano 1917. No ocidente latino o Kyrie encontrou o seu fogar definitivo na grande música e a liturgia, na oriental o Gospodi passou em seguida a converter-se em sinal de actividade contra-revolucionara, assanhadamente perseguida pola polícia política e os delatores.
Notas
- Rudolf Otto (1985): Lo Santo. Lo racional y lo irracional en la idea de Dios, Alianza Editorial, Madrid
- Anónimo (2010): Relatos de un peregrino ruso, Alianza Editorial, Madrid.