Os peixes na terra morrem todos assim: exaustos e sem amor. Tanto tem que a poeta pergunte por tudo, que se rompa por dentro nessa ansiedade por captar o essencial. Tanto tem que se inflame a sós ou que seja outro quem a venha atear. Tanto tem que a sua voz poética nos atravesse, como esses corpos que ela solicita para a atravessarem. Porque o escrito escreve-nos por dentro. Reconfigura-nos.
Ela insiste em procurar as razões da sua escrita –para fazer sentir a dentada, para que as palavras não se desvaneçam, para pensar naquilo que nos mancou, para construir um mapa próprio, para que a amem–. Mas, mesmo se aparenta perguntar-se, apenas está a escrever, a rever com palavras, a pesquisar, como se a poesia consistisse precisamente nisso, em apresar as palavras, em pegar nelas e fazer-se com a sua música até conseguir esvaziá-las por dentro para ficarem penduradas num bondage estremo e selvagem. Para habitar as palavras. Será por isso, que a poeta destrói o conceito de verso, rompe com rimas e ritmos: enfrenta o texto despido. Habita ferozmente as palavras.
Os peixes na terra morrem todos assim: exaustos e sem amor. Rosa Enríquez repete essas palavras de ordem. Deita cá e lá as dicas para desentranhar um significado escuro, abafado de citas literárias, de autores, de referências, um texto sufocante, um texto fogo, que nos queima. O lume não devora os corpos ávido e veloz como um tsunami. O lume derrete, crepita, devora a pouco e pouco, recriando-se na lentidão do verso, às vezes cortado a machado por uma voz poética que se senta, tranquila, a conversar com as suas obras prévias, a prever as angustias do ato criativo, a reproduzi-las.
Arde o verso, ardem as intenções autoriais, ardem os artifícios, os sintagmas e o não-dito e tudo está assim, sumido nesse ardor que não cessa até que apareça, na segunda parte, um tu com quem dialogar. E o tu não é amante, nem amigo das cantigas, não é leitora nem crítico, o tu é a própria Marilyn Monroe, a sedutora, a estrela de cinema que chega tranquila, a cair pela bilha ou a assomar por um furado das tubagens do radiador.
Chega como a única leitora imprevisível: a única que não aguardaríamos. Chega para dialogar numa conversação feminina, turbadora, radicalmente íntima, que combina a ponte de Brooklyn com um streaptease ingénuo e feliz. Rosa e Marilyn partilham segredos, entrelaçam as preocupações, revisam quem são e quem querem ser. Inflamam-se. Mas os peixes na terra morrem exaustos e sem amor. Os peixes são escorregadios, tanto que nem podem lutar com as obsessões, esses ruídos que estremecem a poeta, que a obrigam a dirigir-se a nós, que lemos, a mandar-nos calar. Os peixes podem afogar na terra mas não ardem.
Rosa Enríquez é uma voz potente na literatura galega. Talvez não seja tão conhecida como outras que enchem o panorama das antologias, mas a sua é uma voz de extraordinária riqueza, de incontáveis matizes. Vou tentar resumir o seu pulso em três traços, a fim de convidar a todo o mundo a achegar-se à sua obra:
1. A voz irredutível do desejo, esse de que tanto se fala, enche os seus textos. Isto é habitual nas vozes contemporâneas, ainda mais se forem mulheres. O seu desejo tem, contudo, um ar telúrico: não convoca para o erotismo, ou não unicamente; convoca para o político. É um desejo de gente sem voz, de corpos rotos ou mancados, um desejo selvagem que percorre o feio. Dalguma maneira é o desejo contado da posição da subalterna, como o que teria uma mulher em cadeira de rodas: um desejo que desafia a ordem estabelecida.
2. Aliás, Rosa Enríquez inclui nos seus versos um cumprido campo de referências, um dos mais variados que se podem achar na poesia contemporânea. A sua obra está cheia de menções a livros, filósofos, tendências artísticas de última hora, músicas de sempre e mesmo filmes, numa alternância de cultura popular e académica que tornam as suas obras frescas e prestas para a re-leitura. Porque numa primeira olhada nem percebemos quanto contêm. O seu espírito curioso torna-a em grande divulgadora da arte contemporânea, especialmente da feita por mulheres.
3. O terceiro traço que eu quereria salientar, um dos mais caraterísticos da sua obra, poderia ser chamado de eco-linguístico. Sim, Enríquez gosta de saltar no tempo e no espaço e de mostrar outros mundos em cada uma das suas entregas, de maneira que as geografias distantes aparecem reiteradamente –e, como corresponde à sua veia anti-capitalista e, portanto, acautelada com o pensamento único– materializam-se em diferentes línguas. Os seus versos, escritos em galego, incluem habitualmente, também nesta entrega, frases em espanhol, em francês, em inglês, ou salpicam-se de palavras ou citas em línguas dessas chamadas exóticas. Essa Babel radical pode desconcertar. Por que recorrer a outras línguas? Talvez para jogar, para que a palavra com a sua musicalidade flua, para romper a segurança incondicional do idioma e para revelar-nos que nunca-nunca-nunca entendemos completamente uma mensagem.
Historia do meu corpo en labaradas. Porque as obsessões matam se não conseguimos vesti-las de palavras. Porque o ruído ocupa o lugar natural do silêncio. Porque o café já foi arrefecendo. Porque o teu pai não vai beber mais um nunca. Porque Marilyn não foi só um sex-symbol, porque respeitava outras atrizes e temia não domar as grassas que ameaçam em cada prega da pele. Porque todos os corpos estão sempre em chamas; para isso são corpos e não almas. Porque os peixes, na terra, morrem exaustos e sem amor.