O reintegracionismo e o “povo”

“Se hizo la experiencia de leer un
canto de ‘Os Lusíadas’ a un
campesino gallego y lo entendió
todo él, y mejor que si estuviese
en castellano”.
Boletim da RAG, 1907

Segundo o discurso hegemónico sobre a língua, sempre oscilante entre o populismo e o miserabilismo, o galego escrito com ortografia reintegracionista seria rejeitada polo “povo” (1), que o julgaria estrangeirizante e alheio. A tese, mesmo assumida por filoreintegracionistas, já foi devidamente questionada por sociolinguistas como Celso Álvarez Cáccamo ou Mário Herrero Valero, quem chegou a aventurar que, caso de oficializar-se uma normativa reintegracionista, “poderia haver surpresas”, adiantando “ainda que a maior oposição viria precisamente não tanto da população em geral, mas precisamente dos setores maioritários do nacionalismo que, ainda afirmando a unidade linguística, parecem preferir um padrão mais próximo do castelhano por motivos não tanto pedagógicos ou populistas como ideológicos” (2). Justamente isto é o que vem verificando uma já longa tradição de ativismo reintegracionista –ou, melhor dito, de ativismo social de expressão reintegracionista- na Galiza rural.

Joám Evans Pim, do Partido da Terra de Lousame, que edita e distribui um pequeno jornal na paróquia de Vila Cova, redigido integramente conforme ao Acordo Ortográfico, reconhece que “o tema da ortografia é complicado”, mas, chamativamente, “entre as pessoas mais idosas ou menos escolarizadas não existe problema nenhum e lem de corrido sem apenas atrancos. Fizéramos o teste em casa com a avó de 86 anos e não houve problema. Apenas trocamos alguma palabra que se lhe atrancava”. Isto contrasta com o sucedido “entre as mais jovens e de idade média (16-50)”, onde “chega haver rejeição estrema, mesmo agressiva e xenófoba, não tanto pola folha (que ao ser distribuída a mão e entre a gente que nos conhece a nós ou aos da casa não leva a isso), mas especialmente nas redes sociais. A antítese foi o obradoiro de memória (uma escolinha para pessoas idosas que se faz um dia por semana na paróquia para manter as cabecinhas ativas), no que por própria iniciativa levaram a ‘folha’ para lerem e analisarem em conjunto” (3).

A experiência que tivemos em Ordes com a Associaçom Cultural Foucelhas é mui parecida. Se bem Ordes é uma vila onde houvo uma importante atividade graças à prioneira Associaçom Reintegracionista de Ordes (ARO), a gente da Foucelhas topamo-nos com mais reticências aos nossos cartazes e publicações redigidas em ortografia reintegracionista por parte dos setores nacionalistas e progressistas em geral do que por parte do “povo”. Assim por exemplo, as companheiras que levaram cartazes à escola da Pontraga (Numide-Tordóia), onde ensaia a popular agrupação folclórica Brisas do Quenllo, surpreenderam-se ao ver como as pessoas mais velhas liam com interesse os cartazes sem apenas repararem nos “nh”. No entanto, em bares e locais afins os cartazes eram retirados às agachadas, julgando que sair tão rápido do armário ortográfico era contraproducente. Falando com estes amigos, sempre projetavam no povo a sua aversão: “a ver se me entendes, já saves que eu concordo com isto, mas não é por mim, senão pola gente, que não entende, não está preparada ainda”.

Indo já ao pessoal, o encerro levou-me a establecer um tipo de comunicação com as pessoas idosas da minha família que nunca tivera: a comunicação através da escritura, as cartas. De novo o mesmo resultado: as minhas avós e os meus sogros, todos maiores de 70 anos e alfabetizados sobretudo nas escolas de ferrado, não parecem reparar em absoluto nos meus “anti-populares” hábitos gráficos. Mesmo leram, por amor paternal, o meu livro em Acordo Ortográfico sem mencionar sequer o tema das estranhas letras. Também é certo que nunca lhes vira, no campo da festa, nenhum estranhamento perante as canções do Quim Barreiros ou da Lambada. Como as categorias linguísticas modernas são impostas polo Estado nas escolas, é natural que quem não foi imbuido delas (nem, por consequente, mantenha uma fidelidade aos capitais simbólicos que proporciona) não perceba a realidade através das mesmas. “Ghalheghos, portugheses e asturianos entendemo-nos bem”, di amiúde o meu avô.

 

Best-sellers em portugués?

Também uma história social da leitura na Galiza nos poderia reparar alguma surpresa quanto às barreiras linguísticas. Sucintamente, pode-se avançar que um dos livros mais lidos entre as classes camponesas, até o ponto de ser conhecido como “o livro”, estava impresso em português: o Livro de São Cypriano, o popular Ciprianilho (que foi o primeiro livro em português que houvo na mina casa). Segundo escrevia Vicente Risco: “anda por toda Galiza, en ediciós castelás e portuguesas e en copias manuscritas, podéndose decir que non hai parroquia onde non haxa un polo menos. Téñeno en tanta estimanza que o que o tén nino vende nino empresta, e nun caso ben raro en que alguén se determiñou a vendelo, pedía, hai xa moito tempo desto, 500 pesetas por un exemplar que podía valer 2.50 na librería” (4). Embora circulassem várias edições, a mais poplar era com diferença a brasileira, mais que a portuguesa ou a castelhana. Era mais popular por motivos óbvios: incluia receitas mágicas de beleza, eróticas e anticoncetivas e, sobretudo, a mui cobiçada polos estripadores de mámoas “lista de tesouros da Galiza”, com 147 localizações.

Outros livros em português mui populares até não há tantas décadas foram os prognósticos do tempo; de facto, é mui recorrente a anedota do rapaz que está a ler num prado e é perguntado por um vizinho que passa por ali: “e logo que tempo dá o livro?”, a leitura por autonomasia era a dos almanaques. Pois bem, umas destas publicações mais difundidas e vendidas nas nossas feiras estava impressa em português. Manuel García Barros, entre outros, lembrava que na Estrada da passagem do século XIX ao XX “o libro de máis prestixio era, sin disputa, o ‘prenóstico’, fose o ‘Zaragozano’ ou o ‘Portugués’, chamado iste o ‘Borda Leça’”.

Curiosas leituras, as do nosso povo.

 

NOTAS:

1. Como sempre di o amigo Rubém Melide, a coerência do discurso populista exigiria falar de “o pueblo” antes que de “o pobo” (ou “o povo”).
2. Mário Herrero Valeiro, Guerra de grafias. Conflito de elites, Através Editora, 2011, p. 256, n. 140.
3. Comunicação pessoal.
4. Vicente Risco, “Etnografía. Cultura Espritual”, in: R. Otero Pedrayo (dir.), Historia de Galiza, t. 1, Buenos Aires, Editorial Nós, 1962, p. 469.
5. Manuel García Barros, Aventuras de Alberte Quiñoi, Vigo, Edicións Castrelos, 1976, p. 43.

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