Luz Pichel é uma poeta nascida na Galiza em 1947. Desde 1970 vive em Madrid. Ganhou prémios em língua castelhana, como o Ciudad de Santa Cruz de la Palma, por El pájaro mudo (1990), e o Juan Ramón Jiménez, por La marca de los potros (2004), ademais do Premio Esquío em língua galega por Casa pechada (2006). Cativa en su lughar, o seu penúltimo livro publicado (2012), é uma reescrita de Casa pechada em castrapo, o castelhano falado por pessoas do meio rural galego que nom som completamente bilíngues. Tra(n)shumancias, publicado em 2015 dentro da colecçom eMe de edições La Palma, nom contém língua castrapa de modo principal, ainda que por partes mistura galego e castelhano, entanto mantém idêntico compromisso com as histórias, culturas e sujeitos nom oficiais que aparecem em Cativa. Resulta difícil imaginar que qualquer dos dous últimos livros de Luz Pichel pudesse ganhar prémio algum de acordo aos estándares monoglóssicos do sistema literário espanhol. Nom obstante, encontram-se na península poucos poemários mais ousados com a língua nem mais comprometidos com o relato de fundo do tempo histórico em que estamos imersas que Tra(n)shumancias de Luz Pichel.
Tra(n)shumancias é um livro do ano 2015 onde aparece uma parte dessa parte do mundo que nom pode ter casa e a duras penas conserva a vida biológica colada à pele. Essa parte do mundo que aquele ano ocupou e ainda hoje ocupa algumas faixas de programaçom televisiva dentro do sintagma nominal de “crise de refugiadas”, no livro de Pichel ocupa várias dezenas de versos como “caminantes cargados con la vida buscan la cascada […] los cuerpos se retuercen / pasan bajo los troncos / los esquivan/ se alzan un cuerpo se reconoce / en el esfuerzo del otro cuerpo”. Estes versos permitem compreender com uma olhada como Pichel, por uma parte, renuncia a definir às pessoas mediante as suas nacionalidades e, por outra, escolhe re-enfocar a agência de quem está em trânsito, é dizer, decide nom enunciá-las desde um problema (ou crise) para Europa, mas desde a sua própria decisom como pessoas na busca de uma vida melhor. A mudança de foco resulta notável a pouco que seja comparada com as formas de enunciar dos canais massivos de descriçom da realidade. Em vez de sírias e afegãs, no livro aparecem “caminhantes”. Em vez de causas geopolíticas estritamente atuais, no livro remete-se aos problemas que historicamente mobilizaram as viagens das povoações em perigo: “Fame traballo lama”.
Porém “esto no es sencillo / isto non é doado”. Procurar que as séries de sentido previamente configurado (ou pré-gravado) polas series de substantivos da programaçom prime-time sejam deslocadas a través da humilde materialidade doutras séries de substantivos gravados (ou memorizados) por uns poemas é uma operaçom cultural mui valiosa. Um logro notável do plano de desprogramaçom semântica disposto polo último livro de Pichel é construir uma descriçom do mundo que nom reproduza em caso nenhum, a nenhum nível, a repartiçom de papeis produzida pola ordem social. Como já acontecia em Cativa en su lughar, Tra(n)shumancias nunca cai na oposiçom de totais, por exemplo rural vs. urbano, nacional vs. estrangeiro, culto vs. analfabeto, etc. Neste mesmo sentido, no livro nom é separada a transumância económica da política, nem a transumância exterior da interior, como tam frequentemente aconteceu na retransmissom em direto da crise de refugiadas. Este livro descreve em conjunto a viagem na procura de prosperidade, seguridade e hospitalidade, dos corpos polos caminhos, porque, entre outras cousas, participa de um relato histórico de mais longo prazo.
O bairro de Entrevías, Vilaverde e o Pozo no livro aparecem sobre o mesmo paralelo que a Venezuela ou a Argentina às que viajaram as galegas que falavam castrapo, sobre a mesma linha de caminhos de ferro dos estados negros dos Estados Unidos sobre os que a ativista Harriet Tubman dormia, todas ao sul, nesse grande Sul da migrância, que leva mais de um século a pleno rendimento. A história de fundo relatada por Pichel lembra-nos que muito antes de que “a geraçom mais preparada” tivesse que sair do país, a herdar por cima o “problema de España” con o talento ilustrado, gerações sem apenas “problema” (nem país?) enunciado cruzaram um oceano em barco, baixaram dos barcos a cidades bastante mais modernas que por exemplo Madrid, regressaram, deixaram filhas, fizeram fortunas ou morreram de doença, fizeram de criadas a cuidar os filhos doutras mulheres, importaram objetos e imaginários, e até desejos, se é que uma, duas ou três décadas após nom se mudaram desde os núcleos rurais aos bordos da cidade desarrollista onde tinham nacionalidade mas nom os direitos sociais e materiais necessários para exercer a cidadania: “un registro de migraciones en el olvido / rastreable el dolor / te era tan desconocido por una carta que no se leyó nunca”. Desta história de gente a mover-se, a ocupar, a fazer vida, bairro e lugar ali de onde nom era com as partes culturais do lughar de onde saira, é da que o escritor italiano Erri de Luca, ao seu passo polo Círculo de Bellas Artes em 2015, afirmava:
"Acredito que a emigração é o elemento histórico principal do nosso tempo. Por vez primeira na história, deslocaram-se milhões de seres humanos de um continente a outro vaziando algumas zonas e enchendo outras. Na Argentina instalaram-se três milhões de italianos e Nápoles era um dos pontos de partida, um porto que vivia de explorar a emigração. Sempre se fala da nossa emigração a Norte-América, mas também há uma grandiosa diáspora ao sul do continente que a mim me interessa mais. Em geral, a modernidade caracterizou-se por esta classe de migrações, deslocamentos de milhões de seres humanos, povos inteiros, que mudaram a face do mundo. Nestes movimentos encontram-se as maiores narrações épicas imagináveis, essas vidas contêm gigantescos relatos de aventuras. Quem escreve histórias deveria sair a pescar, não? Eu gosto dessas grandes histórias muito mais que da introspeção psicológica que inventou a literatura do passado século. Não me interessa fuchicar nas vísceras das pessoas, interessa-me o que acontece aí fora"
A poesia contemporânea que participa do relato do século XX, e da sua passagem ao XXI, requer menos de tramas que de língua, cachos de voz ou cruzamentos de dialetos; porém igualmente defronta o problema de abertura de uma introspeçom que desde o XIX é ainda mais característica que a narrativa. Como é construido um “eu” lírico no burguês? E cabe a possibilidade de re-escrita de uma lírica (se nom) popular (quando menos) interferida polo afora? Tra(n)shumancias está cheio de pessoas a falar-se, a dizer, a responder. Gente tam pouco principal que o livro inicia-se descrevendo uma que está “sentada nun banco da beirarrúa / na beiramar na beiravía no bordo na marxe / (disque a un ladiño)”. Tra(n)shumancias está cheia de outros e outras que se fazem, dizem e falam a carom desta primeira figura, e que som, por exemplo: o meninho que dá uma erva à avó, conectando as idades da espécie em algo mui frágil, por universal?, as moças que no metro berram de manhã após uma noite de festa, porque também viajam entre idades, da infância à mocidade, a sair das famílias, Eulalia, a que se esforça em cumprir a norma de falar bem, mamã Patricia e mamã Álvaro, é dizer, as que cuidam sem importar o género em que nasceram, as que viajam do género marcado ao género sentido, Harriet Tubman, qualquer que veio aqui sem ser de aqui ou quem-quer que no livro fale bem perto das outras como num vagom, ou numa eira, ou num bar, ou numa praça, como numa continuidade não estereotipada nem classificada por faixas de voto: “é doado buscar sentido noutros abecés é fácil é barato facer o caldo así coas fabas da veciña generosa”. Há uma noçom de outredade irredutível às categorias identitárias de classificaçom da que este livro é militante. Há uma prática da igualdade ganhada mediante a construçom ativa de situações de fala horizontal (também nos poemas) e a escuta sensível de qualquer emissom (em fala ou em poema) da que este livro é exemplo.
E nom obstante a melhor nova de que exista um livro como Tra(n)shumancias poderia mui bem ser que Tra(n)shumancias tam só mostra a ponta do iceberg da escritura valente e oportuna que Luz Pichel veio praticando depois. As pessoas que assistimos à sua emocionante performance dentro das Picnic Sessions celebradas no Centro de Arte 2 de Mayo o último mês de junho, sabemo-lo. Aquele dia a poeta saiu a tatejar um texto escrito em galego rural, dito com pleno sotaque de zona ante umas trezentas pessoas sobretudo castelhano-falantes. A dificuldade trazida polo gaguejar e a opacidade semântica trazida pola variedade em questom ofereceram-se nom como obstáculos de entendimento mas como meios para potenciar uma escuta mui ativa e linguisticamente consciente do que se estava a contar. O resultado de uma escuta assim de atenta foi a meridiana claridade com que o texto se nos apareceu a todas as presentes que quisemos pôr-nos a fazer sentido dos farrapos de língua que ela nos lançava e dos nossos ao seu carom, sentadas todas em uma margem bastante exterior do que adoita soar polos canais de atualidade. O que vem, Co Co U, é um desses livros impossivelmente nacionais que tam importantes lhe resultam à língua da poesia, e ao relato do fundo histórico da passagem do século XX ao XXI, ganhem ou nom ganhem prémios.
Traducido por Susana Sánchez Arins