Sendo professora de ensino secundário, nunca me vim numa situação como a vivida na segunda passada no IES Joan Fuster, de Barcelona. Em realidade, nem eu nem ninguém no estado espanhol, pois é a primeira vez que um colega de trabalho, Abel Martínez Oliva, acaba morto a mãos de um aluno. Uma situação extrema, duríssima e, há que dizê-lo, insólita na nossa sociedade.
Levo dous dias assombrada perante o facto de, anos após a experiência sufrida no nosso centro, ver como os mesmos erros, vícios e abusos voltam ser cometidos na gestão duma nova que afecta a estudantes menores de idade
O que sim já tenho vivido de perto é o acoso mediático e a falta de respeito aos direitos das crianças. E levo dous dias assombrada perante o facto de, anos após a experiência sufrida no nosso centro, ver como os mesmos erros, vícios e abusos voltam ser cometidos na gestão duma nova que afecta a estudantes menores de idade.
Onde o sentido comum das jornalistas, que emitiram sem pudor informações não contrastadas e inecessárias sobre o meninho autor dos feitos?
Quando na segunda cheguei à casa do trabalho, tinha interesse em saber quê acontecera. A minha surpresa foi comprovar como eram editadas e emitidas nos telejornais, a falta de informações oficiais, as declarações de alunado contando dizemqués, boatos e segundas versões de terceiras testemunhas, sem nenhum tipo de controle. Um dos grandes motivos de conflito no meu centro, sobretodo entre moços e moças, é a transmissão deformada de informações: eu digem digo, ti escuitas diogo, ela ouve dogo e aquele transmite cão de presa. Não podedes imaginar quantos mal-entendidos, enfados e pelejas provoca isto. Podo entender o interesse e morbo de uma adolescente ao se sentir protagonista e com possibilidade de sair na tv, mas supõe-se que aí temos que estar as adultas para que a situação não saia de mãe. Onde o sentido comum das jornalistas, que emitiram sem pudor informações não contrastadas e inecessárias sobre o meninho autor dos feitos? De verdade que puderam considerar fiável a história contada por um aluno que se refere ao meninho como “ese chaval”, demostrando assim que não o conhece de nada? Por que difundir tão alegremente juízos de valor sobre uma pessoa emitidos por outras pessoas das que desconhecemos o alcanço dos seus preconceitos? Sabem estas jornalistas que não podem ser difundidas imagens nem testemunhas de menores sem permissão das suas famílias? Nos mesmos informativos (neste caso A3Notícias) os perfís nas redes sociais do meninho. E o nome. Por se temos interesse em linchá-lo virtualmente, já que a polícia, desmancha-prazeres ela, vai impedir que o fagamos fisicamente.
Uma moça de 16 anos não pode decidir se quer ou não ser mãe, porque é meninha, porém já se fomentava na imprensa estes dias o debate sobre se um meninho de 13 anos é “assim tão pequeno” como para não ir a prisão
Porém a cousa não ficou aí. Acedim a páginas web atualizadas de vários jornais e, em todos o títulos, ou como pouco nos subtítulos, encontrei a mesma palavra: inimputável. A lei estabelece um limite penal mínimo para proteger às meninhas de si próprias e da manipulação alheia. Ainda não sabiamos quê se passara exatamente. Ainda não abandonara a polícia o centro. Ainda não estava claro o número de vítimas nem o alcanço das lesões que estas sufriram. Mas, isso sim, já todas sabiamos que o meninho assassino [porque já decidimos que é um assassino, não um homicida, ou um imprudente, ou um inconsciente] nunca iria ao cárcere, por ser “demasiado” novo. E se levo todo este artigo utilizando o termo “meninho” é intencionadamente. Estamos a falar de um meninho. De uma criança de treze anos. Pensade nalguma menor que tenhades perto: filha, sobrinha, vizinha. Uma pessoa que ainda não tem sentido da razão abundo para a considerarmos responsável penal dos seus actos; isso não quer dizer que não tenha responsabilidades, nem que não vaia haver uma atuação por parte das instituições; só quer dizer que não podemos julgá-la por assassínio. É bem certo que aqui encontramos contradições mui interessantes: uma moça de 16 anos não pode decidir se quer ou não ser mãe, porque é meninha, porém já se fomentava na imprensa estes dias o debate sobre se um meninho de 13 anos é “assim tão pequeno” como para não ir a prisão. As menores não são melhores nem piores que as adultas. Bom, quiçãs sejam melhores: que percentagem da violência é exercida por menores e que percentagem por adultas? Não caiamos na cilada da Lei Mordaça: utilizar casos insólitos de violência para atacar os direitos da cidadania [aumento de regulação sancionadora nas escolas, diminução da idade penal...]. A Lei do Menor já é, proporcionalmente, bastante mais severa que a Penal que nos rege às adultas.
O “brote”. A única explicação possível quando o meninho é de boa família. Se for pobre, já sabemos...
A pressa por introduzir o debate sobre a penalização das menores foi anulada por uma nova posterior: o “brote”. A única explicação possível quando o meninho é de boa família. Se for pobre, já sabemos... Como me disse hoje uma aluna, medicada para TDHA, “o meninho esse estava louco”. Buff, pensei eu, o que dirão de ti se fas qualquer falcatruada. Como já foram publicitados dados sobre os gostos e interesses pessoais do meninho assassino, encontramos uma nova conexão: mães que tendes filhos, pães que tendes filhas, cuidado!, se a vossa meninha vê Walking Dead, igual está tola. Se escuita David Guetta, não perdades tempo!, direitas ao psiquiatra! Ai, se segue HYMYV!
Hoje chegou o colmo das estupideces jornalísticas. Um jornal “sério”, como afirma ser El País, informa de que no quarto do meninho foram encontradas bestas, machetes, um croquis e, atenção, um livro de Fernando Lalana, prolífico autor de literatura juvenil, por se não o sabedes. Era Morirás en Chafarinas o romance que guardava o meninhassassino? Não dão o título para não alarmar ou para que elucubremos com o mundo soldadesco e as mortes num aquartelamento militar? Teremos que retirar as obras deste senhor das aulas para prever a violência? Por se alguém não caiu na conta, só passaram dous dias desde a morte de Abel Martínez Oliva. Tudo isto em só dous dias.
Acompanhando este tipo de informações, as exigências educativas: como é que o professorado não viu? Que estava a fazer que não detetou um louco ceivo nas aulas?
Acompanhando este tipo de informações, as exigências educativas: como é que o professorado não viu? Que estava a fazer que não detetou um louco ceivo nas aulas? Como é que não está preparado para “reduzir” menhinhos assassinos? O professorado do IES Joan Fuster não pode responder essas perguntas. Porque havendo menores de por meio, deve-se à sua proteção e não deve difundir dados que afetem aos mesmos. Ainda que o seu silêncio protetor conleve o questionamento da própria profissionalidade.
A professoras podemos perceber melhor os potenciais problemas ou trastornos de um aluno num grupo de quinze meninhas que num grupo de trinta
Porém eu sim, por experiência e porque me raivam os pseudo-debates sobre as violências escolares e juvenis, permito-me lembrar algumas obviedades. A professoras podemos perceber melhor os potenciais problemas ou trastornos de um aluno num grupo de quinze meninhas que num grupo de trinta. As orientadoras podem fazer um trabalho mais individualizado e atinado com uma rátio de duzentas meninhas que com uma de quatrocentas, seiscentas, novecentas [não há incremento de orientadoras nos centros segundo o número de alunas]. Poderiamos derivar os casos de risco a psiquiatria infantil, se houver bons protocolos de comunicação entre SERGAS e EDUCAÇÃO e se houver no estado espanhol a especialidade de psiquiatria infantil [ainda acaba de ser criada]. Poderiamos derivar casos ao Sistema de Proteção de Menores, se não estiver colapsado e sem meios. Podemos gestionar de maneira dialogada os conflitos, porém os equipos de convivência escolar não contam com recursos horários para o seu trabalho. Podemos aprender a conviver, mas eliminam a matéria que introduzia no currículo escolar os direitos humanos: Educação Para a Cidadania.
E não. Não estamos preparadas para reduzir meninhos assassinos. Porque nós não trabalhamos com meninhos assassinos. Nós trabalhamos com pessoas.