Atrancar a porta ao forasteiro

O século XX nasceu em Sérvia no 28 de junho de 1914, ou talvez no 25 de outubro de 1917 do calendário juliano, 7 de novembro de 1917, em Sam Petersburgo. O século XXI nasceu, com certeza, no 11 de setembro de 2001; há apenas dezassete anos. A dinámica infernal desatada no 1914 convocou por duas vezes os ginetes do apocalipse sobre o continente europeu. Ignoramos que traguerá este século que se anunciou com um alarido terrorista em Nova Iorque.

Fortificar as fronteiras, recluir-se no redil doméstico, esgrimir a diferença, som comportamentos que se propagam sem freio mundo adiante contradizendo as promessas de prosperidade recíproca garantida polo intercámbio comercial e de moral cosmopolita universal anunciada pola razom ilustrada e confirmada pola náusea dos extermínios milenaristas.

A ordem internacional vacila hoje a impulso do protecionismo económico, do medo ao assalto das multidons empobrecidas do sul e do açoute niilista do monoteísmo vingativo.

As carreiras ao redil protector multiplicam-se desde a Grande Recessom de 2008 estimuladas polo temor ao assalto por parte das diásporas desatadas pola guerra e a miséria. A fronteira mexicana norte-americana, os portos europeus do Mediterráneo, testemunham a atracçom irreprimível dos espaços de paz e prosperidade que a comunicaçom global difunde e magnifica.

O medo à China emergente e ao imigrante mestiço e miserável ecoou na América profunda e consagrou o triunfo da demagogia xenófoba e do reflexo isolacionista; Trump é aclamado comandante da fortaleza assediada. O medo à perda de identidade e do vínculo representativo do poder político despertou o reflexo insular e autorreferencial do Brexit que agora desafia o projeto europeu, a mais valiosa criaçom política do nosso tempo. No coraçom de Europa, o fenómeno Macron, de incerto recorrido, arrasou os restos inoperantes da Quinta República que agonizava sem fôlegos desde 2007, com Sarkozy e Hollande no papel de impotentes testamenteiros. A sólida Alemanha da CDU e o SPD amostra também inequívocos sintomas de fadiga enquanto prolifera a peste eurófoba por toda Europa.

A UE, abafada polo receituário ordoliberal e ameaçada por forças centrífugas cada vez mais potentes demanda auxilio, capaz de atualizar os ideais de Altiero Spinelli e os padres fundadores. Europa necessita mais Europa e o mundo também, sob a ominosa olhada dos E.U.A. e a Rússia de Putin vigiados de cerca por Xi Jiping.

Aqui, no extremo sul ocidental de Europa, a Espanha tenta sacudir os restos da poeira tardo-franquista que impregna ainda condutas e instituiçons, enquanto ensaia um novo equilíbrio tetrápode desafiado pola reactivaçom do conflito catalám e o desassossego plurinacional reprimido. A liçom do mestre de Castelao que nos visita nestes dias em Compostela, é um recordatório das vozes proibidas da Guerra Civil que incomoda os corredores do poder.

Desenredar complexo novelo dos medos mútuos que dividem o mundo sem cair em tópicos e na generalizaçons abusivas é um requisito prévio para desvendar as linhas de força que entesam as relaçons internacionais e ensaiar um tratamento, inevitavelmente global. Um informe preliminar da situaçom exige umha elevada capacidade de síntese e inteligência interpretativa.

Temos por fortuna agora nas livrarias um valioso breviário de apenas cento vinte páginas  que aborda com detalhe e paixom democrática um cenário político internacional que cheira a fim de ciclo, ou talvez a princípio de outro do qual nada sabemos, a nom ser que refuta sem possibilidade de réplica a tese do final da história prognosticada por Fukuyama.

Aos cem anos de aqueles vinte felizes do século passado —que de facto preludiavam umha conflagraçom atroz — observamos um inquietante cenário de crise que demanda renovar o compromisso democrático europeu contra a ameaça hobessiana que impregna as relaçons internacionais.
O autor de Ruptura é o reputado sociólogo espanhol residente nos E.U.A. Manuel Castells, professor na Universidade de Califórnia em Berkeley. Figura internacionalmente reconhecida no campo da sociedade da informaçom e a comunicaçom, instrumentos cruciais para diagnosticar o mal-estar reactivo e autorreferencial que nos couta.

A aguda conciência democrática de Castells assomava de novo estes dias na imprensa diária — El País, 10/10/2018 — para denunciar o alarmante ascenso de um sinistro personagem no Brasil que se arroga o direito a escarnecer impunemente os princípios mais elementares da convivência democrática e o mínimo respeito devido ao ser humano. Um engendro dos tempos que correm na segunda economia de América, agente inevitável, por sinal, do mundo que vem.

Nom seria razoável tentar resumir, sequer sucintamente, o informe de Castells acerca do desconcerto mundial que nos assedia. Nom me resisto sem embargo a reproduzir umha frase tirada do epílogo que cerra o informe: La crisis de ese viejo orden político está adoptando múltiples formas. La subversión de las instituciones democráticas por caudillos narcisistas que se hacen con los resortes del poder a partir del hastío de la gente con la pudredumbre institucional y la injusticia social; la manipulación mediática de las esperanzas frustradas por encantadores de serpientes; la renovación aparente y transitoria de la representación política mediante la cooptación de los proyectos de cambio; la consolidación de mafias en el poder y de teocracias fundamentalistas   

Indignaçom democrática e precisom analítica: fórceps moral insubstituível para ajudar a nascer a democracia que necessitamos na luita de todos contra todos que se anuncia.

Passam os anos, Prometeu sonha agora com chegar a Marte, nengum sonho para a Terra.

 

1Manuel Castells (2018): Ruptura. La crisis de la democracia liberal, Alianza Editorial, Madrid.

Grazas ás socias e socios editamos un xornal plural

As socias e socios de Praza.gal son esenciais para editarmos cada día un xornal plural. Dende moi pouco a túa achega económica pode axudarnos a soster e ampliar a nosa redacción e, así, a contarmos máis, mellor e sen cancelas.