De ouriços e raposas

A pugna tenaz e sempre renovada entre poder e oposiçom, instalaçom e mudança, dogma e heterodoxia impregna a história toda e constitui um tema de reflexom permanente da filosofia política. Os adeptos ou agentes de umha e outra posiçom livram batalha, aberta ou disfarçada, em toda corporaçom existente e nom digamos nas mais poderosas: o Partido, a Igreja, o Estado. Foi o científico social italiano Vilfredo Pareto (1848–1923) quem deu com a denominaçom precisa para a interminável contenda: “conflito da circulaçom das elites”. Assi mesmo é, afinal, a tam socorrida autoridade divina da vox pópuli acaba sempre falando por boca de porta-voz que é o dono do megafone e a equipa de amplificaçom.

A pugna tenaz e sempre renovada entre poder e oposiçom, instalaçom e mudança, dogma e heterodoxia impregna a história toda e constitui um tema de reflexom permanente da filosofia política

Devemos-lhe a Pareto igualmente umha brilhante ilustraçom do conflito de elites por via de parábola: a que contrapom o leom soberano e a astuta raposa, elevados a categoria sociológica. A coerçom e a apelaçom ao bem comum e á tradiçom som os argumentos do leom, o fino instinto para farejar ventos de mudança e antecipar alternativas som as habilidades da raposa e é com elas como consegue subverter ás vezes o implacável statu quo leonino. Afirmava Pareto que o processo ininterrupto das elites em circulaçom que enfia a história permite contemplar esta como um imenso cemitério de aristocracias sucessivas. A força coercitiva do leom finalmente vencida pola astúcia incansável da raposa.

Afirmava Pareto que o processo ininterrupto das elites em circulaçom que enfia a história permite contemplar esta como um imenso cemitério de aristocracias sucessivas

A permanente fissura que separa dominadores de subordinados é a raiz de toda pugna política. Foi um agudo filósofo político filonazista quem caracterizou a política como aquela instáncia que divide a sociedade em amigos e inimigos1. É difícil discordar de tam implacável opiniom como nom seja para perguntar onde fica esse princípio que orienta todo comportamento humano que chamamos moral. É a norma moral a única que permite distinguir vítima de verdugo e crueldade de benevolência. Há lugar para a moral na inóspita dicotomia da teoria política de Carl Schmidt? O verniz moral do conflito que enfrenta poder e oposiçom tem umha versom particular na diferência estabelecida por Max Weber (1864–1920) entre ética da responsabilidade e ética da conviçom. A primeira é a que pondera as consequências de cada acçom: a que nunca se aventura; a segunda a guiada em exclusiva pola fidelidade aos princípios que iluminam a consciência sem atender ás consequências: faga-se justiça e pereça o mundo! A primeira fundamenta a realpolitik que rege á prática do poder e tenta preservar a estabilidade social, a segunda a que empurra á acçom ao insatisfeito e o revoltado; ao "pacifista absoluto” e ao “sindicalista revolucionário”, em palavras de Weber. Umha e outra ética, concluía o mestre Weber, som complementárias e imprescindíveis em toda autêntica vocaçom política.

O verniz moral do conflito que enfrenta poder e oposiçom tem umha versom particular na diferência estabelecida por Max Weber entre ética da responsabilidade e ética da conviçom

Há ainda outro subtil contributo á compreensom das disjuntivas que polarizam a percepçom humana, é a diferença que separa concentraçom de dispersom na procura dos propósitos. Devemos-lha a Isaiah Berlin2 (1909-1997) que se inspirou na ocasiom num fragmento da sabedoria clássica atribuído a Arquíloco: Muitas cousas sabe a raposa, o ouriço sabe só umha, mas é grande. O poder sugestivo da sentência serviu-lhe de escusa para assinalar a permanente oposiçom entre aqueles que se aferram a um fundamento último que todo o explica e aqueloutros que percebem o mundo como um intrincado embrulho de circunstáncias incontroláveis. Os primeiros sempre tentados polo fanatismo, os segundos polo cepticismo. Devemos reconhecer que esta nova dicotomia é essencialmente ambígua nos jogos de poder: tanto o imperador como o profeta rendem culto á firmeza nos propósitos como tributo á sua própria verdade, tanto um como outro vêem-se obrigados também a exercitar o repertório de manhas que melhor protegem os seus propósitos.

Há ainda outro subtil contributo á compreensom das disjuntivas que polarizam a percepçom humana, é a diferença que separa concentraçom de dispersom na procura dos propósitos

A fractura que separa satisfeitos de desacougados, instalados de dissidentes, impregna o debate quotidiano: direita contra esquerda, espanholismo contra galeguismo, centralismo contra soberanismo; mesmo a contraposiçom de estratégias que garantam o futuro do nosso idioma. O eco das polémicas promovidas polas minorias activas é o rumor mesmo da dinámica social.

O cidadao comprometido, o impugnador do presente, é um operário da mudança social. A história avança a ombros de precursores capazes de antecipar disjuntivas

O cidadao comprometido, o impugnador do presente, é um operário da mudança social. A história avança a ombros de precursores capazes de antecipar disjuntivas, igual que astutas raposas que farejam os ventos da mudança e obstinados ouriços cachos que carregam a sua verdade caminho adiante sem ponderar obstáculos. É o ofício dos desertores do rei leom.

Os deambulantes polos espaços da dissidência da esquerda transformadora, dos direitos colectivos do nosso país, aqueles comprometidos com a justiça sem fronteiras ou com a renovaçom do idioma secular bem poderíam reivindicar a raposa e o ouriço como figuras totémicas: astúcia e determinaçom.

Contodo, seria bom nom esquecer que os caminhos do futuro som longos e acidentados e o caminhante nom deveria esquecer incluir na mochila as necessárias doses de paciência e irónica reserva para evitar cair na miragem de confundir o percurso empreendido com o caminho da salvaçom.

 

(1) Carl Schmidt (2005), El concepto de lo político, Alianza Editorial, Madrid.

(2)  Isaiah Berlin (2002), El erizo y la zorra, Editorial, Península, Barcelona.

Grazas ás socias e socios editamos un xornal plural

As socias e socios de Praza.gal son esenciais para editarmos cada día un xornal plural. Dende moi pouco a túa achega económica pode axudarnos a soster e ampliar a nosa redacción e, así, a contarmos máis, mellor e sen cancelas.