Desengurrar o galego

Anda polas livrarias a versom galega em banda desenhada da melancólica historieta Arrugas (Paco Roca, Valência, 1969) que pudemos ver nom há muito num memorável filme produzido pola empresa galega de animaçom Perro Verde Films. A agridoce história registra as pequenas fantasias e grandes soidades da velhice numha instituiçom geriátrica. O melancólico futuro minguante impregna as breves travessuras dos anciaos recluídos. Rugas é o título da versom portuguesa, Engurras o da ediçom galega. As engurras que engurram o título da ediçom galega seguem a ortodoxia de Real Academia Galega que abona tanto o substantivo como o verbo como única opçom para designar esses sulcos ou pregas que o tempo vai imprimindo na nossa pele.

As engurras que engurram o título da ediçom galega seguem a ortodoxia de Real Academia Galega que abona tanto o substantivo como o verbo como única opçom para designar esses sulcos ou pregas que o tempo vai imprimindo na nossa pele

Desengurrar é, segundo a RAG, a acçom de tirar as rugas, esse objectivo mágico das inúmeras unturas cosméticas que prometem mergulhar os seus devotos na salutífera fonte da eterna juventude que rebuscara Ponce de León Florida adiante lá nos alvores do século XVI. Persoalmente nom acredito que a arte de engurrar e desengurrar practicado pola RAG tenha demasiado recorrido, de facto, a docta instituiçom admite já ao seu pesar o adjectivo rugoso e o substantivo derivado rugosidade, amável concessom que agradecemos. Imaginem vocês o embaraço táctil e otorrinolaringológico a que nos levaria andar apalpando todo tipo de engurrosidades. Escusado lembrar que tanto em galego como em português som de uso normal os pares ruga/rugar e enruga/enrugar que persoalmente acho mais que suficientes para as necessidades da vida diária.

Livre-me Deus de pôr em dúvida que a excêntrica opçom acadêmica nom esteja rigorosamente abonada por uso oral certificado mas gostaria conhecer a sua extensom. Talvez nom maior que as persistentes choivas e amosares normativos que inçam o nosso batua em uso. Seja como quiger, o fascínio normalizador por reabilitar remotos localismos nada mais pretende que defender a autonomia do galego frente ao castelhano –língua por defeito de normalizadores e normalizados- e sobre todo o seu direito de autodeterminaçom frente ao português. Afinal como veem um propósito patriótico.

A flagrante metátese da engurra evoca-nos a mui popular cocreta ou clocleta que adornavam os bares da nossa juventude acadêmica em Madrid

A flagrante metátese da engurra evoca-nos a mui popular cocreta ou clocleta que adornavam os bares da nossa juventude acadêmica em Madrid. As cocretas madrilenas som por certo parentes próximas dos cocodrilos hispánicos, raça autóctone que conseguiu exterminar os crocodilos universais que seguem mergulhando o se corpo couraçado nos rios quentes de meio mundo. Nada temos contra o encanto popular das vacilaçons metáticas consagradas.

Aí estám os currunchos/recunchos, tacholas/chatolas, pertos/pretos, e tenreiras/terneiras, mas todo tem o seu ponto. Umha regra sensata poderia ser a de adoptar as formas consagradas por uso extenso e continuado e reservar as locuçons esquisitas para o coloreado estilístico. A gente da palavra, os escritores, tenhem todo o direito a ensaiar quantos arcaísmos, localismos e neologismos precisem. A língua para quem a trabalha.

A remissom das dúvidas e variantes do galego ao português standard deveria ser consagrado como protocolo habitual nos laboriosos obradoiros do galego contemporáneo

A remissom das dúvidas e variantes do galego ao português standard deveria ser consagrado como protocolo habitual nos laboriosos obradoiros do galego contemporáneo. Aplaudimos de coraçom o exuberante registro das peças do carro de vacas que presidem a nossa memória infantil –a cabeçalha, a chavelha, o chedeiro, a caniçada, a leitura, o coucom- mas as nossas perplexidades nom está hoje na correcta denominaçom do património cultural do Museu do Povo Galego senom na listagem das peças do nosso carro automóvel quotidiano: a cambota, a bagageira, os amortecedores, a embraiagem. A trangressom do preceito áureo de diálogo franco com o português como instrumento de correcçom lingüística é o progressivo empobrecimento do idioma, quer por rendiçom ante o castelhano (burbulha inmobiliária em lugar da bocha/bolha imobiliária) quer por artificioso invento substitutivo (o desafiuzamento frente ao simples despejo). Num e outro caso dependência servil do castelhano imperante e imperativo sob o mesmo argumento que nos leva a propugnar o x frente aos g/j patrimoniais: nom confundir a grei escolar. Infantilizar o nosso idioma secular como oneroso tributo de dependência.

Como cidadao em uso pleno de direitos cívicos nunca concordarei com a falácia tecnocrática de que as doenças da minha língua quotidiana som assunto de incumbência dos linguistas profissionais

Como cidadao em uso pleno de direitos cívicos nunca concordarei com a falácia tecnocrática de que as doenças da minha língua quotidiana som assunto de incumbência dos linguistas profissionais como jamais aceitarei o ignaro tópico de “a política para os políticos”. Língua e política som matéria comum intransferível e as suas doenças -tam semelhantes- a todos contaminam: arcaísmos hipercaracterizadores, pseudogaleguismos, ampliaçons semánticas e dialectalismos hipercaracterizadores, coloquialismos e vulgarismos abusivos que tam eloquentemente delimita Carlos Garrido som enfermidades da língua como o som o oportunismo, electoralismo, clientelismo e populismo da política. Dissimular ou ocultar as graves doenças que padecem os nossos códigos lingüístico e político só contribui a agravar os seus efectos em prejuízo de todos salvo das doctas ou indoctas corporaçons que custodiam e usufruem os seus venerados códigos.

A tarefa de desengurrar o galego de localismos inoperantes e neologismos caprichosos pouco tem a ver para a nossa fortuna com a servidom adamita a que se veem submetidas as famílias lingüísticas monomarentais sem dimensom internacional. Nós, filhos de Meendinho e de Pessoa de Eça e de Cunqueiro podemos prescindir sem saudade dos Koldos Mitxelena e dos Pompeus Fabra porque a fala do marinheiro de Mugia é a mesma da do camponês do Algarve e o sertanejo brasileiro e o nosso capital cultural leva séculos rendendo frutos no mercado lingüístico internacional. Com ingredientes mais exóticos que os do nosso ámbito lingüístico se constrói o euskera batúa e as incertezas que nos assaltam empalidecem ante as que assediam o catalám.

Nós, filhos de Meendinho e de Pessoa de Eça e de Cunqueiro podemos prescindir sem saudade dos Koldos Mitxelena e dos Pompeus Fabra porque a fala do marinheiro de Mugia é a mesma da do camponês do Algarve

Nas minhas viagens a Barcelona pudem comprovar nom sem surpresa a manifesta vacilaçom do Institut d´Estudis Catalans para normalizar o rotulado de vias e avisos por alto-falante na rede de transporte público urbano: propera estació ou pròxima estació? A surpreendente disjuntiva entre um e outro advérbio teria imediata terapia no galego sem necessidade de convocatória urgente de pleno da RAG, bastaria com acercar-se ao metro do Porto. O metro português, velaí um meio óptimo para fugir das pueris soluçons que se algo demonstram é o estéril esforço por evitar o naufrágio do idioma na ubíqua opulência do castelhano.

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