1. Com o lançamento dum projeto político que explora as posibilidades da razão populista de Ernesto Laclau1, o conceito do “significante vazio” saiu da academia para tornar-se ferramenta pública, objeto de debate e termo fetiche. Contudo, tras o conceito laclauniano há uma genealogia que enfia aoutras propostas de vazio político, que para Althusser começaria com O príncipe2. No século XVI Itália reunia todas as condições para encetar a unificação nacional com a exceção de uma: a conexão entre elas, o homem sem nome que num conto sem nome aglutine o projeto nacional. Para Althusser esse seria um “homem do nada, saúdo do nada, e que parte dum lugar inasignável”, porque esse nada, esse silêncio, “é uma condição política do encontro”.
2. Nas Teses da filosofia da história Benjamin atribui ao pensamento revolucionário a tarefa de identificar novos espaços em apertura, detetar vazios políticos onde se faz possível a política: “Na realidade, não há um instante que não traça consigo a sua chance revolucionária, só que esta tem que ser definida como uma (chance) específica, a saber, como chance duma solução inteiramente nova, prescrita por uma tarefa inteiramente nova. Para o pensador revolucionário, a chance revolucionária peculiar de cada instante histórico resulta duma situação política dada. Mas não resulta menos para ele em virtude do poder que este instante tem como chave para abrir um recinto do pretérito completamente determinado e clausurado até então. O ingresso neste recinto coincide estritamente com a ação política”.
2.1. Se o ingresso nesse recinto –nesse vazio- é a ação política em sentido estrito, para Mario Zubiaga “na negatividade absoluta que carateriza o exterior do significante vazio, ainda se passeaiam zombies que não são conscientes do seu estado”3. De novo Athusser, num texto de 1982 escrito no pavilhão 7 de Soisy-sur-Seine, Sur la pensé marxiste, antecipava-se com grande lucidez: “Os partidos, descansando sobre os sindicatos da aristocracia operária, são mortos viventes que subsistirão em tanto dure a sua base material (os sindicatos detentam o poder nos comités de empresa, os partidos fam-no nos municipios), e enquanto sejam capazes de explorar o sacrifício de classe dos proletários e de abusar da situação dos subproletários das subcontratas. Se o marxismo ainda pode reviver a força de destelhos, os partidos são mortos viventes, ancorados no seu poder e no aparelho que detenta dito poder e fácilmente se reproduze para detentá-lo e detentar a sua exploração (…). Vivemos nesse contradição. E à nossa geração tocou-lhe em sorte fazê-la estalar. E, pese a todas as dificultades, estalará na rebelião da nova mocidade do mundo”.
3. Um novo chanço na genealogia da política do vazio leva-nos a La comunità che viene4. Na análise que Giorgio Agamben realiza da revolta chinesa de Tienanmen, ao tempo que esta se produzia, o filósofo achava a resposta à pregunta de qual “pode ser a política de singularidade qualquer, isto é, dum ser cuja comunidade não está mediada por condição alguma de pertença (o ser vermelho, italiano, comnista) nem pola simples ausencia de condições (comunidade negativa, como aquela que há pouco fora proposta na França por Blanchot) senão pola pertença mesma?”. Tal como no 15-M, o que mais surpreendia era “a relativa ausencia do conteúdos determinados nas reivindicações (democracia e liberdade são noções demasiado genéricas e difusas para constituirem objeto real dum conflito (…)). Porém, o trabalínguas filosófico de Agamben (“A singularidade qualquer, que quer apropriar-se da pertença mesma, do seu ser mesmo na linguagem, e declina por isso toda identidade e toda condição de pertença (…)”) torna-se muito mais compreensível se o espacializamos como praça vazia.
4. Joseba Sarrionandia propõe com a ideia da praça vazia algo mui próximo à hipótese laclauniana, mas numa linguagem muito mais gráfica5. A Transição é para Sarrionandia o exemplo da praça vazia colapsada nada mais inaugurar-se: “Na praça da pólis há um velho monolito com uma inscrição inspirada por Remy de Gourmont: “Os demais têm que deixar-se impor a nossa língua, mas nós não nos vamos deixar impor a sua língua”. É um dos trastos que enchem a praça, vem-se trambém reunas de uma igreja, está a Guardia Civil, há homens emprestando dinheiro. Há um rei esquiando, há um drone, e até ha´milhares de cópias de um catálogo que se chama Constituição, inventário de objetos depositados nessa praça que os que inventárom a democracia pensárom que devia estar vazia para que coubesse toda a gente. Mas a maioria nem se acerca à praça, na realidade, porque sempre está cheia de cousas e quase não se pode nem passar”. Mas o crucial é que Sarrionandia extende o diagnóstico à esquerda, às nossas pracinhas.
4.1. Como colapsa um significante vazio? Como se satura? Ernesto Laclau detem-se em casos históricos como o do peronismo, que colapsa quando Perón abandona o exilo e já não pode manter a ambiguidade calculada e o PCI de Togliatti. Após a libertação italiana toda a simbología partisana funciona como simbología nacional, e o PCI é o único partido com um projeto propriamente nacional. É certo que tinha limitações estruturais para tornar-se um significante vazio –a obediência ao PCUS-, mas também foi colapsando polo próprio processo. Assim como o PCI decide impulsionar todas as demandas setoriais democráticas, estas vão-se vendo cada vez mais como peças do taboleiro do partido. Sem essas condições únicas para a emergencia dum projeto populista –como as que agora se estão a dar no Estado espanhol-, o PCI foi-se encerrando numa longa guerra de posições.
A trajetoria do BNG também é sucetível de entender-se como a energência dum significante vazio que, por falta de condições, colapsou numa guerra de posições. Até há mui pouco “Galiza” e todo o “galego” funcionárom como um significante vazio capaz de unificar a maioria de demandas sociais (sindicais, culturais, anti-caciquis, ecologistas, etc) numa longa cadeia equivalencial, de forma que o protesto sempre falou galego. Ainda, poder-se-ia falar de “Galiza” como significante flotante, porquanto o fraguismo deu uma dura batalha para apropriar-se dele com uma constante contra-programação, cujo conceito mais acabado foi o da “auto-identificação”. Agora, numa difícil situação fora do significante vazio, propostas como a de “Asemblea Aberta-BNG” demonstram a incapacidade para superar o bloqueio: a própria solução é um significante vazio colapsado de saída, uma nova praça vazia com uma enorme estátua no meio de meio.
5. Em 1963 o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque estreava uma mostra sobre arquitetura popular de todo o mundo, e que incluia paineis com os hórreos da Galiza e Portugal. A exposição intitulava-se “Arquitetura sem arquitetos”. Com toda certeza uma mostra de “Política sem políticos” teria que começar com uma imagen da ágora grega (“Nenhum medo tenho a esse homens que têm por costume deixar no centro das cidades um espaço vazio”, esbardalhava Ciro, rei dos persas6), mas também incluiria as Casas da Palabra dos povos amazónicos, os campos comunais da Inglaterra pré-capitalista ou as canchas do El Alto boliviano, com a vizinhança a jogar futebol, intercambiar chicha caseira e preparar a revolta. À par, os espaços de juntança dos concelhos abertos de Galiza: o “Outeiro do Concelho” de Cotovade, o Carvalho da Junta de Taboadelo… Ainda há toda uma (etno) arqueologia da democracia galega por explorar, com todos os círculos líticos que receberam nomes como concelho ou assembleia dos mouros. Gente como Otero Pedrayo até tinha olho para detetar formas democráticas mais lá dos sujeitos políticos humanos, “cando as pegas se amorean nos outeiros no seu concello aberto pola castañeira”, e mesmo encontrava a velha instituição nuns seres tão modernos como eran as estradas7.
A única condição do espaço para o concelho aberto era a sua vacuidade, de forma que não fosse um espaço de ninguém porque o encontro, como recorda Deleuze, é o contrário ao reconhecimento. Nas Aventuras de Alberte Quiñoi Miguel García Barros recorda a política do vazio em Berres a começos do século XX: “O lugar compúñase de dous núcreos principaes, afastados por unha corredoira que os comunidaba. Á parte de contra a carballeira chamábanlle a Espiñeira, i á outra, a de contra o agro, a Reigada. Cara ista banda había unha praciña formada polo cruce de congostras e os outóns ou os portales de algunhas casas, na que costumaban axuntarse os veciños para cousas de intrés común, tales como a represión do gando, a limpeza das presas, os arregros do camiño ou fixar o día de iren a pagar unha renda”. Igualmente, Manuel Mandianes conta como em Loureses “o “concello” reúnese na encrucillada ou no forno (comunal) se chove. “Ultimamente xúntanse no bar, pero iso non está ben. Hai que reunirse na encrucillada. A encrucillada é de todos e todo o mundo ten máis liberdade de expresarse”. Hai que reparar no simbolismo da encrucillada”. E na manutenção do significante vazio.
NOTAS:
1. E. Laclau. La razón populista. Buenos Aires. F.C.E., 2004.
2. L. Althusser. “Le courant souterrain du materialism de la rencontre”, Écrits philosophiques et politiques, tomo I. Paris, Stuck/Imec, 1994.
3. M. Zubiaga. “Significante vazio”, Gara 5.2.2015
4. G. Agamben “Tiennamen”, La comunitá che viene, 1990.
5. J. Sarrionandia, ¿Somos como moros en la niebla? Pamplona. Pamiela, 2012, p. 610
6. O filósofo galego Felipe Martínez Marzoa interpreta os Diálogos de Platão como uma filosofia em que a forma é o conteúdo, isto é, o conteúdo dos textos são a sua tensão dialógica interminável: a ágora como praza vazia.
7. R. Otero Pedrayo, Entre a vendima e a castañeira. Vigo, Galaxia, 1957. As estradas em concelho aberto están em “O angaceiro das estradas”.
8. M. García Barros, Aventuras de Alberte Quiñoi. Vigo, Edicións Castrelos, 1976, p. 172.
9. M. Mandianes, Loureses, Vigo, Galaxia, 1984, p. 97.