Etnologia da Audiência Nacional

“…o problema do pessoal é encontrar
umha culpa ajeitada ao castigo”.
ERVING GOFFMAN

Como di Bourdieu, há “umha eficácia propriamente simbólica da forma. A violência simbólica, cuja realizaçom por excelência é sem dúvida o direito, é umha violência que se exerce, se pode dizer-se, nas formas, pondo formas”

A justiça mostra-se como umha formalizaçom máxima, como umha asséptica lógica do bem e do mal. A sua linguagem, intencionadamente esotérica, visa reduzir a complexidade dos factos a umha equaçom da que poder tirar um resultado matemático. Umha sentença é um solene resultado final do que se foram apagando todas as rectificaçons e aproximaçons prévias. Mas como di Bourdieu, há “umha eficácia propriamente simbólica da forma. A violência simbólica, cuja realizaçom por excelência é sem dúvida o direito, é umha violência que se exerce, se pode dizer-se, nas formas, pondo formas”1. Logo há que baixar à produçom –nom formal- dessas formas, à construçom das verdades jurídicas. Sem entrar na cozinha do “Estado de direito” é impossível compreender o seu funcionamento.

A construçom do culpável começa muito antes das detençons. Esse “motor imóvel” que é umha ideia completamente anti-democrática de “Espanha”, pom continuamente em marcha umha cadeia de tautologias “de “porque-sim”) que cria e envolve os seus inimigos, que som, por definiçom, “organizaçons criminais”.

Santiago Alba Rico explica bem o processo, que “é tam singelo como infalível. Porque pertencer a umha ‘organizaçom criminal’ é em si mesmo um delito, mas à sua vez esse delito converte em delito –ou polo menos em prova- qualquer prática quotidiana, por inocente que seja”

Santiago Alba Rico explica bem o processo, que “é tam singelo como infalível. Porque pertencer a umha ‘organizaçom criminal’ é em si mesmo um delito, mas à sua vez esse delito converte em delito –ou polo menos em prova- qualquer prática quotidiana, por inocente que seja”. A cadeia de tautologias, como umha catedral de palavras que abóia no ar, continua em prisom: os presos independentistas som FIES, polo tanto perigosos, polo tanto aplica-se-lhes o regime de primeiro grau. Mas por que som perigosos? Porque som FIES. E por que som FIES? Porque som perigosos. Desta presunçom de culpabilidade, os lógicos do Ministério do Interior pedem umha saída através da desvinculaçom das “ordens da organizaçom”. Mas… e se nom houver “ordens” nem “organizaçom”? É o que Karl Popper chamaria um caso de enunciado nom-falsável, e polo tanto impossível de refutar. Esta forma de magia jurídica aplica-se ainda com mais sanha aos presos –supostamente- islamistas: só podem aceder a um regime carcerário “normal” se se reconhecerem como “culpáveis”.

Mas voltemos ao principio, a um detido em regime de incomunicaçom. Ali, a alquimia social do direito continua a trabalhar: a violência de obrigar alguém a ficar despido diante dumha forense acompanhada de vários encarapuçados armados transforma-se em “prevençom da tortura”; os papéis assinados baixo coacçons e torturas em “declaraçons voluntárias”; e assim sucessivamente. O que na terminologia de Garfinkel som “cerimónias de degradaçom”, vam-se sedimentando no corpo do detido enquanto “o culpável” vai tomando forma. Esse ângulo morto do Estado de direito espanhol que suponhem os até cinco dias de detençom incomunicada –que nom é outra cousa que a institucionalizaçom da tortura2- dá suficiente margem para a construçom do culpável. Umha vez pronto, será subido (na Audiência Nacional o simbolismo dos espaços é transparente) perante o escritório do juiz para encetar a misse en scéne do “Estado de direito”. Do baixo, o inferno da produçom das formas, as masmorras subterrâneas e os maus tratos, ao piso superior, a luz, os juízes e as cortesias formais.

A alquimia social do direito continua a trabalhar: a violência de obrigar alguém a ficar despido diante dumha forense acompanhada de vários encarapuçados armados transforma-se em “prevençom da tortura”

Como elemento de transiçom, a polícia, cuja posiçom estrutural é a mesma que a analisada por Foucault a propósito do carrasco: “No seu enfrentamento com o condenado, o carrasco era em certo modo como o campeom do rei. Campeom porém inconfessável e nom reconhecido: segundo a tradiçom, parece ser, quando se tinham selado as credenciais do carrasco, nom se punham sobre a mesa senom que se deitavam no chao. Conhecidos som todos os interditos que rodeavam aquele ‘ofício mui necessário’ e, porém, ‘contra natura’. Por mais que, em certo sentido, fosse a espada justiceira do rei, o carrasco compartia com o seu adversário a sua infâmia. O poder soberano que lhe ordenava matar e que por meio dele matava, nom estava presente no carrasco; este poder nom se identificava com o seu escarnecimento”3.

O detido aparece para declarar com a sujidade de cinco dias sem se lavar nem descansar. Tiram-lhe os cordons dos sapatos e o cinto das calças que arrasta. É o resultado da longa sessom de maquilhagem do culpável. Assim apresentado e desumanizado, o assunto penal já nom é nem de “tratamento terapêutico” de reinserçom social e toda essa metodologia senom mais bem –como ironizou Loïc Wacquant- de tratamento de resíduos. (Recordava o ex-preso independentista Manuel Quintáns as palavras do director do cárcere Modelo de Barcelona em 1941: “Tendes que saber que um preso é a dezmilionéssima parte dumha merda”).

Os juízes e fiscais vestem com o uniforme dos justos. Com eles toda essa panóplia de cadeiras hierarquizadas, papéis timbrados e linguagens fossilizadas, que nom estám aí senom –dizia Foucault- para provarem a inocência do próprio tribunal

Perante ele, os juízes e fiscais vestem com o uniforme dos justos. Com eles toda essa panóplia de cadeiras hierarquizadas, papéis timbrados e linguagens fossilizadas, que nom estám aí senom –dizia Foucault- para provarem a inocência do próprio tribunal. Finalmente, “os juízes nom esperam que o acusado impugne umha tese, e menos ainda que refute factos; solicitam-lhe que corrobore um sistema do qual somente possuem um fragmento, e cuja totalidade querem que o acusado reconstrua de forma apropriada (…) porque, antes do que reprimir um crime, os juízes procuram (…) certificarem a realidade do sistema que o fijo possível4, o moto imóvel, o seu Estado espanhol.

Enfrente, a justiça em mao-comum, rosaliana. A “justiça de carvalheira” e o “exército de árvores”. A única que sempre tivérom as que, como o labrega do quadrinho de Castelao, pedem a Deus “que nos libre da xusticia”.

Noite Boa de 2013, Terra Ancha.

 

NOTAS
1. P. Bourdieu, Cosas dichas, Buenos Aires, 1988, p. 90
2. Também através, por certo, da nom-falseabilidade. A tortura  é estrutural porque criárom um espaço de impunidade –também lógico- no que é impossível demonstrar nada. Destruem –por dizê-lo doutro jeito- o marco lógico que permitiría verificar a existencia de torturas.
3. M. Foucault, Vigilar y castigar, Madrid, Siglo XIX, 1994 (1975). P. 58.
4. C. Lévi-Strauss, “El hechicero y su magia”, Antropología estructural, Buenos Aires, Eudeba, p. 157. Que Lévi-Strauss fale do povo zúnhi, e nom do Estado español, é algo impossível de distinguis neste fragmento.

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