Europa, o factor humano e a norma imperativa

Depois de muito remoer, por meados de outubro, o comité de ética da Comissom Europeia decidia manifestar que nom achava reprovável o facto de o ex-presidente da instituiçom, José Manuel Durão Barroso, ter fichado polo Goldman Sachs para prestar serviços de lobby perante a sede que antes presidira.

O afortunado banco americano, fundado em 1869 e a piques de afundar-se em flagrante bancarrota em 2008, tem filial espanhola desde 1984. As cousas nom lhe vam mal por aqui; em 2012 comprava-lhe a Endesa a Divisom Gasista por 1.000 milhons que agora resgata por 2.500, depois de acondicioná-la. Referimo-nos a Redexis. Comprar para vender a bom preço é o único segredo do negócio especulativo.

A voraz corporaçom bancária tem bom olho para contratar ilustres personagens da fauna política dispostos a arredondarem a posiçom alcançada com o fascinante brilho do ouro. Por Goldman Sachs passárom três secretários do Tesouro dos E.U.A. e ilustres próceres europeus como Romano Pródi, duas vezes primeiro-ministro de Itália e presidente da Comissom, Mário Draghi, actual presidente do Banco Central Europeu, e Jean-Claude Juncker, actual presidente da Comissom de reconhecida habilidade em negociaçons multinacionais para aliviar embaraçosas cargas impositivas.

Agora tocou-lhe a Durão Barroso, incerto personagem que soube compensar a sua modesta estatura académica e política com um infalível sentido da orientaçom nos labirínticos corredores de Bruxelas. A destreza há que pagá-la. Portas giratórias, naturalmente, como orientar-se senom pola frondosa selva dos corredores do poder sem confundir tenores com executivos?

Por aqui nom carecemos de eminentes exemplos de transmigrantes do serviço público para a dourada servidom do cofre-forte: do dom para o din, em fim. Sirvam González e Aznar como exemplo. A chamada do dinheiro é signo certo de predestinaçom divina.

A economia política do senhor Durão, chamemos-lhe assi, estava longe da proverbial modéstia da remuneraçom pública. O ex-presidente da Comissom percebia 350.000 euros por ano mais regalias e um acolhedor retiro agora de 18.000 euros cada mês. Nom é dinheiro para um Cristiano (Ronaldo) mas dá para ir tirando. A remuneraçom anual que lhe assegura Goldman Sachs ascende a 5 milhons de euros por ano. Isso é outro falar: “Poderia ter aceitado ocupaçons mais tranquilas, mas gosto dos desafios" declarou o destemido senhor Durão. Assi falam os grandes, imunes ao mal de alturas, tocados polo dom dos eleitos, afeitos a que as portas se abram por si só a seu passo e a imprensa redemoinhe em volta quando falam. Durãos, Draghis, Pródis, Junckers, selecto pólen da política em flor. Mas, nom é a política a que manda quando o dinheiro entra em cena.

A Uniom Europeia foi construída sem o preceptivo contrato social que a legitima, falta-lhe a clausula do we the people. Cumprem as suas funçons, é certo, os Estados nacionais, mas estes estám subordinados ao Moloch financeiro da filosofia ordoliberal que lhe serve de raiz e fundamento. O ordoliberalismo é o dogma que inspira o Estado alemám desde a maravilhosa geraçom dos precursores do Walter Eucken (1891-1950), os Hans Grossmann-Doerth (1894-1944), e os Franz Bohm (1895-1977). Deuses menores do Olimpo do pensamento económico mas ídolos consagrados no altar do Bundesbank, e, por extensom, do Banco Central Europeu. A dogmática ordoliberal é a causa do infortúnio que abafa hoje a maior criaçom europeia desde a Revoluçom francesa. Os preconceitos dominantes som com frequência, como bem sabia lorde Keynes, um desdenhável subproduto de qualquer esquecido pensador defunto.

O ordoliberalismo — versom alemã do neoliberalismo anglo-saxom, de procedência, aliás, centro-europeia — pretende instaurar um quadro regulatório da economia pública de carácter definitivo, automático, científico e blindado contra a incorrigível irresponsabilidade de governantes e governados a fim de assegurar o correcto funcionamento do mercado sem a nefasta interferência da política e da pressom social. Desenhado o motor do progresso, é preciso blindá-lo da turbulência da Rua, da Fábrica e do Parlamento. Automatismo preceptivo contra arbitrariedade política é o princípio rector. A fé ordenancista converteu-se em dogma na Alemanha devastada pola guerra e foi promovida a dogma central europeu quando a Alemanha foi requerida para ordenar a casa comum e eventualmente financiá-la. Desta maneira, a política ficou aferrolhada ao carro triunfante da ordem neoliberal que nos guia.

Desaparecido De Gaulle, os ideais republicanos houvérom de ceder o ceptro da política ao poderio regulatório e á solidez do incómodo vizinho do leste. Os países anglo-saxónicos — a Gram-Bretanha, os E.U.A. — praticam polo contrário um saudável relativismo pragmático que os preserva da letal metafísica monetária do Bundesbak quando contraria o sentido comum, base da sua admirável equanimidade. A Europa do Sul, carente para a sua desgraça da fortaleza e liderado necessário, constitui o sujeito ideal para a prática clínica da sangria restauradora que as ordenanças prescrevem. Um corpo de vigiláncia convenientemente instruído garante as doses necessárias e as eventuais reacçons incontroladas. Exuberante burocracia em Bruxelas, inoperáncia instalada em Luxemburgo, ordenancismo desapiedado em Frankfurt é a tríada que aflige o sonho europeu.

O projecto comunitário naufraga sem remédio na procelosa normativa do ordenancismo financeiro imperante que protege os sagrados direitos dos aforradores do norte a custo de arrasar vidas e fazendas no sul. Aos despejos bancários e o desemprego massivo suma-se agora a bíblica enxurrada dos deserdados da guerra e da fame que petam nas portas do Mediterráneo que já fora Cemitério Marinho: Esse teito tranquilo sulcado de pombas (...) O meio-dia pontual acende o fogo. O mar, o mar sempre a recomeçar

Custa pensar que aquele sonho de liberdade e unidade europeia que os valorosos antifascistas italianos escreviam em papel de papel de fumar clandestino na prisom da Ilha de Ventotene naufrague hoje sem remédio com o epitáfio populista e xenófobo do Brexit como campa. Será possível outra Europa?

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