No passado 9 de abril faleceu no seu domicilio de Cádis Rafael Serrano Valls, homem que encarna à perfeiçom o espírito da Transiçom enquanto dispositivo de branqueamento da história, capaz de transformar, da noite para a manhá, franquistas recalcitrantes em democratas de toda a vida, numha democracia à espanhola onde, caso único na Europa, se pode ser democrata sem ser antifascista.
Rafael Serrano Valls (Dúrcal, 15-XII-1920 – Cádis, 9-IV-2018) veu ao mundo no ecossistema quartelário da guerra espanhola contra o independentismo rifenho, entorno abafante onde se pré-configurou, matando “mouros”, o núcleo ideológico do golpe contra a II República de 1936. O seu pai, Alberto Serrano Montaner, fora oficial das Fuerzas Regulares Indígenas e da Legión, chegando a subinspetor desta última. Com apenas 15 anos, Serrano Valls somou-se às fileiras golpistas da mao do seu pai, como soldado de infantaria de 2ª classe nas Fuerzas Regulares Indígenas de Tetuán nº 1 onde estava destinado o progenitor. Aí começa umha carreira militar marcada por ascensos suspeitos de nepotismo. Aos dous anos já é nomeado alférez provisional de infantiaria e, como a vitória do fascismo, em abril de 1941 ascende a tenente provisional passando em comissom de serviço às incipientes Fuerzas de Policía Armada y de Tráfico que estava a organizar, novamente, o seu pai. Em 1944 destinam-no à Legión de Melilha, mas em março de 1945 passa à Guarda Civil onde fará carreira.
O seu correligionário José Núñez, autor do laudatório obituário publicado no Diario de Cádiz no passado 10 de abril, dá neste ponto da biografia de Serrano um salto no tempo até 1961, ano em que aparece como tenente coronel chefiando a 237ª Comandáncia de Cádis1. Dezasseis anos de atornador silêncio biográfico que talvez se deva a que esse período já o escrevera pouco antes o historiador Manuel Pazos Gómez, e o revelado nom resultava ser mui recuperável para a hagiografia de um democrata2.
A meados da década de 1940 Serrano é destinado à Galiza, concretamente à comarca de Ordes, onde a resistência antifranquista se estava a fazer forte. A sua missom era, naturalmente, liquidá-la, e para a tarefa nom poupou em métodos contrários ao direito internacional, alguns seguramente classificáveis como crimes de guerra e, polo tanto, imprescritíveis por muita amnistia de 1977 que esgrima o Estado espanhol. Som também os anos de intensificaçom das contrapartidas guerrilheiras –método igualmente condenado polo direito internacional- que foram chave para desartelhar a resistência e, o que é ainda mais grave, causarem umha brutal subversom memorial do que ainda nos resentimos hoje. Tratava-se da criaçom de destacamentos de direitistas que, em nome da resistência antifranquista, realizavam todo tipo de feitorias para desprestigiar o Exército Guerrilheiro da Galiza e deixá-lo sem apoios entre o povo. Sirvam dous exemplos tirados de dous informantes locais para comprovar os efeitos dessa estratégia repressiva: o primeiro, umha mulher nada na década de 1930 e que recorda vivamente as requisas de gado e cereal que afetuavam nas casas dos labregos os que ela chama de “foucelhas”, o nome com que popularmente se conheciam os guerrilheiros em todo o país. Perguntada por se lembrava quem eram tais “foucelhas”, a senhora cita de cor o nome dos mais conhecidos falangistas da comarca. Assim mesmo, di recordar como um destes “foucelhas” pressumia na feira de Ordes vestindo a zamarra que lhe roubara a “um dos do monte” que assassinara. Outro caso é o de um homem nado já entrada a década de 1940, e que me assegurava que na entrada da vila de Ordes, à altura da Fonte Estrei, havia colocado junto um letreiro “o símbolo dos foucelhas”. Estranhado por tal afirmaçom, mas sabendo que há constáncia documental de que o Exército Guerrilheiro figera pintadas reivindicativas na vila na década de 1940, perguntei como é que era esse símbolo. “Era um jugo com umhas flechas, o símbolo dos foucelhas”. Ese shock memorialístico continúa a ser transmitido de geraçom em geraçom, sem que a chamada Transiçom supugesse rutura nengumha.
Voltando à atuaçom de Serrano nesses anos em Ordes, a sua estratégia repressiva conseguira desmantelar quase completamente a rede de enlaces e apoios da guerrilha. As fontes orais lembram-no como um tipo ambicioso, com pretensons de ascenso e mui interessado nos galons. Segundo estas fontes, Serrano teria participado em numerosos enfrontamentos com os guerrilheiros, chegando a temer seriamente pola sua vida em um tiroteio com Antonio Nouche Costa, o ‘Soldado de Deixebre’. Também há quem assegura que participou no 21 de abril de 1947 no cerco do Fontao que rematou com os assassinatos do mais carismático guerrilheiro, Manuel Ponte Pedreira, e de Manuel Díaz Pan ‘Rogelio’ e Manuel Rodríguez o ‘Asturiano’. A casa em que se achavam os três antifranquistas fora rodeada por guardas civis dos postos de Ordes, o Penhasco, Xanceda e Cúrtis, preparando-lhes umha emboscada mortal. Os cadáveres foram fotografados como trofeios de guerra e enterrados numha vala comum no cemitério de Abelhá. Amorte de Ponte, o mais carismático líder da resistência galega, correu como a pólvora entre o exílio, multiplicando-se as homenagens em toda a imprensa antifascista da França, México ou a Argentina. Algumhas testemunhas orais mesmo apontam que teria sido Serrano em pessoa o autor dos disparos. Outras fontes sinalam que após o descabeçamento da IV Agrupaçom –à que seguiu umha macrooperaçom em que detiveram mais de 67 pessoas nas comarcas de Ordes, Bergantinhos e Costa da Morte, resultando torturadas muitas delas-, Serrano foi o encarregado de perseguir até a morte outro imprescindível da guerrilha: Francisco Martínez Leira ‘Pancho’. Entretanto, em 9 de setembro de 1946, Serrano casa em Ordes.
Foram estes importantes méritos de guerra (a comarca de Ordes, onde nom houvo guerra civil senom golpe de estado e genocídio, foi oficialmente zona de guerra até 1952) os que impulsaram o ascenso meteórico de Serrano na hierarquia da organizaçom armada. Após o destino a Cádis é ascendido, agora a coronel, e enviado a mandar o Terço da Corunha, mas poucos meses depois volta à provincia gaditana a dirigir o recém criado 26º Terço da Guarda Civil de Cádis. Ham saber os antifranquistas de Cádis como foi a sua atuaçom lá, pois entre 1967 e 1979, os anos do franquismo seródio e começos da Transiçom, estivo à fronte da Benemérita de toda a província.
A chegada de “democracia” deixa completamente intato o aparato repressor da Ditadura e autoamnistia os seus crimes, e aquele tenente que perseguia os democratas que resistiam em Ordes e Trasancos converte-se em general democrata. Serrano Valls encarna à perfeiçom esse paradoxo fundacional da nova democracia espanhola segundo o qual se pode ser democrata sem ser antifascista, precisamente porque o referente de oposiçom do Regime do 78 e dos seus democratas nom foi o franquismo, senom o independentismo; evidencia esta mais clara ainda à vista da desapariçom de ETA e do exemplo catalám. Juan José Imbroda, o presidente de Melilha polo PP, nom podia ser mais claro quando lhe botaram em cara que mantivesse na cidade africana a última estátua a Franco num espaço público: “nom o reconhecemos como ditador, senom como tenente-coronel da Legión contra Abdelkrim”.
Em janeiro de 1981 Serrano Valls foi nomeado Chefe da Primeira Zona da Guarda Civil (Madrid) tras cessar no mando da Quinta Zona (Logronho), que abrangia as comandáncias de Álava, Guipúscoa, Biscaia e Navarra durante os anos de chumbo e guerra suja do conflito basco. Depois da sua passagem pola “Guerra do Norte” –de cuja intervençom nom temos de momento mais dados- entra na reserva ativa como general de brigada em 1982. Durante o 23-F será um dos assinantes do chamado “Pacto do capó” que eximia de responsabilidades os golpistas com graduaçom menor à de tenente. O retiro por idade chegou-lhe a partir de dezembro de 1998, tendo ainda tempo de ser homenageado polo alcalde de Medina Sidonia, Santiago López Belizón, em julho de 2014, com ocasiom do 50º aniversário da casa-quartel do município. Durante o ano entregaram-lhe a Serrano a “enseña nacional”3.
A de Serrano Valls nom foi, nem muito menos, umha trajetória singular, senom umha de tantas que seguiram caminhos parecidos. Em alguns casos, como o do tenente Camilo Pajuelo Arteaga, investigado por Jordi Bigues4, os paralelismos som assombrosos. Este guarda civil, já falecido, dirigiu em 1947 um operativo que se saldou com a morte de seis guerrilheiros anti-franquistas em La Pesquerda (Cuenca), matança que lhe serviu para ser ascendido e premiado, tendo-lhe imposto Franco a Cruz ao Mérito Militar com distintivos brancos. Em janeiro de 1981 Pajuelo Arteaga, após um ascenso irregular em 1980 –já em democracia”, pois- é nomeado general em chefe da IV Regiom Militar (a correspondente a Catalunha) em substituiçom de Isabelino Cáceres Ruiz, outro destacado especialista na guerra suja anti-guerrilheira que depois aplicou os seus métodos contra o movimento basco. Será um ano intenso para Pajuelo o de 1981, especialmente polos sucessos da FargaBebié (Ripollés), em que rematam com a vida de duas jovens levadas a identificar ao quartel como suspeitosas de militarem nos GRAPO, seguido do assassinato de outros dous moços, acribilhados a balaços quando estavam dentro de umha tenda de campanha, e um quinto um mês depois nas ruas do bairro de Vallcarca. Três dos assassinados eram galegos: Dolores Castro Saa, de 24 anos e natural de Mondariz; Albino Gabril López, de 23 e de Vilarelho; e Roberto Liñeira Oliveira, de 22 e nado na Corunha. Na operaçom Pajuel Arteaga participou como tenente coronel, mas como general de brigada acompanhava-o José Blázquez Pedraza (de 84 anos e vivo em 2017, quando Bigues publicou a reportagem), também envolto no operativo de 1960 em Mas Clarà (Pla de l’Estany) em que assassinaram quatro máquis dos grupos de açom do Quico Sabaté. Ao igual que Serrano, Pajuelo também é um desses altos mandos da Guarda Civil que aparecem nessa nebulosa que rodeia o golpe de Estado do 23-F, neste caso integrando o gabinete de crise formado posteriormente durante o assalto ao Banco Central da praça Catalunha de Barcelona, onde estaria o famoso “maletim” com os papeis secretos do 23-F. No 5 de maio de 1981, já como general em chefe, dam-lhe a Cruz de San Hermenegildo.
Desta brevíssima olhada aos altos cargos da repressom política franquista transformados em democratas pola Transiçom, premiados e ascendidos, nom podemos esquecer José Ramón Piñeiro, comissário general da Brigada Político Social na década de 1960, e que participou ativamente num dos últimos crimes da agonizante Ditadura na Galiza, no operativo contra a UPG de agosto de 1975 (na qual fora decissivo o infiltrado Mikel Lejarza ‘El Topo’, outro herói da “democracia”) que rematou com o assassinato a tiros de Moncho Reboiras na rua de Ferrol5. Na Transiçom Piñeiro foi nomeado comissário general de Segurança e Ordem Pública, e ainda se lembrava dele, numha recente entrevista, o ex – secretário geral do PSOE Histórico Manuel Murillo: “Ramón Piñeiro foi moi duro cos maquis, tremendo, porén eu creo que co tempo foi intentando lavar o seu pasado. Xa me advertira que me ían deter na casa cando o do 72 [refere-se à greve de Ferrol]. E despois en Madrid, cando era xefe de Orde Pública, no ano 77, e a raíz dos asasinatos de avogados de Atocha, un día achegouse ao meu despacho […] Díxome que non tiña policía suficiente para protexerme e que tomara eu medidas de seguridade”6.
Rafael Serrano Valls, Camilo Pajuelo Arteaga, José Ramón Piñeiro… Três trajetórias de carrascos da Ditadura que convergem, já em democracia, por volta dos acontecimentos do 23-F, aquele golpe de Estado “fracassado” que cumpriu com todos os seus objetivos: do branqueio da legitimidade franquista de Juan Carlos I à fêrrea perimetraçom da nascente democracia espanhola, que ficava terrivelmente limitada quanto aos direitos sociais de todo o Estado e aos nacionais da Galiza, País Basco e Catalunha. Assim as cousas, nom resulta paradoxal, senom todo o contrário, que o primeiro afetado pola Ley de Defensa de la Constitución –aprovada como consequência direta do 23-F- nom fosse nengum destes repressores sem depurar, senom A Nosa Terra. A nova lei ativara-se contra o semanário da esquerda nacionalista por mor do número especial polo Dia da Pátria Galega, saído à rua em agosto de 1981, e principalmente por três textos: um artigo desde a cadeia do preso político galego Xosé Beiroa; umha entrevista à familia de Roberto Liñeira Oliveira, o moço assassinado no operativo liderado por Pajuelo; e um artigo do historiador Francisco Carballo em que afirma que a morte de Reboiras fora um “assassinato”.
NOTAS
1- Jesús Núñez, “Fallece el general Rafael Serrano Valls”, Diario de Cádiz, 10 de abril de 2018.
2- Manuel Pazos Gómez, “Atila en Ordes. Listaxe de vitimarios”, em VV.AA., Os nomes do terror. Galiza 1936: os verdugos que nunca existiron, Santiago de Compostela, Sermos Galiza, 2017, pp. 135-157. O perfil de Rafael Serrano Valls nas pp. 141-143.
3- “La Benemérita rindo hoy homenaje a los guardias civiles y familiares que allí vivieron desde 1964”, Diario de Cádiz, 27 de julho de 2014.
4- Jordi Bigues, “Crims franquistes impunes en democràcia”, Directa, nº 435, do 12/7 ao 25/7 de 2017, pp. 4-11
5- Xurxo Martínez González, Luís Soto. A xeira pola unidade galega, Vigo, Xerais, 2011, p. 128.
6- Entrevista de Emilio Grandío e Xosé Manuel Piñeiro, “Manuel Murillo. A historia escura da Transición”, Luzes, nº 55, abril de 2018, pp. 26-30.
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