General, teu tanque é mui forte

Andam agitadas as manchetes de imprensa polo caso do “cidadao Snowden contra o Estado norte-americano” como poderia anunciar a vista da causa um desses empoleirados juízes americanos de filme de temática judiciária. O rebuliço nom é para menos, Snowden, um jovem analista informático de 29 anos que trabalhava para a Agência Nacional de Segurança dos EUA e a CIA decidia fazer públicos os métodos de espionagem automática e massiva utilizados por Washington para esquadrinhar comunicaçons diplomáticas e persoais. A ágora elegida para a mediática descarga de consciência foi o diário británico The Guardian e também The Washinton Post que recusou publicar a notícia quer por escrúpulos patrióticos quer por temor ás consequências. Ser livre nunca sai grátis, ao inimigo nem água é um imperativo de obrigado cumprimento nos círculos do poder.

Que as agências de espionagem andem a farejar nas nossas comunicaçons a ninguém pode surpreender embora tenha desgostado ás chancelarias europeias sempre tam melindrosas em formalidades como raposeiras e avarentas na gestom de assuntos próprios. Grandes espaventos em público e servilismo incondicional ao gendarme ultramarino em privado. O tratamento infligido a Evo Morales nom figurará em nengum Arc de Triomphe europeu: liberté, egalité, servilité.

Que as agências de espionagem andem a farejar nas nossas comunicaçons a ninguém pode surpreender embora tenha desgostado ás chancelarias europeias sempre tam melindrosas em formalidades como raposeiras e avarentas na gestom de assuntos próprios

Na América a opiniom anda dividida entre a cidadania atemorizada pola suspeita de escuras tramas conspirativas -the lownely crowd- e essa outra que reivindica a supremacia cívica proclamada polos padres fundadores da República. A negra sombra orwelliana paira há tempo sobre o projecto jeffersoniano. Tramas ocultas há, quem pode duvidá-lo: o encobrimento, a hipocrisia, o cinismo e a verdade mutilada que impregnam o discurso diário som prova flagrante da férrea ocultaçom de secretos inconfessáveis. Que o perigo prolifera é também sabido: aí está o pesadelo dos terrorismos ubíquos, tanto os segregados polos fundamentalismos fideístas de toda casta como os impostos pola extorsom financeira de obrigado cumprimento. Este último o mais perigoso pola sua capacidade destrutiva: o tributo de sangue da bomba mística tem normalmente efeitos mais limitados. Vivemos instalados num permanente apocalipse now como tem assinalado Ulrich Beck quando qualifica a nossa consciência social de “sociedade de risco”, quer dizer, em expectativa de catástrofe iminente: ecológica, económica, política, de fundamentos.

É seguramente por isso polo que proliferam os movimentos de contestaçom cívica: a reclamaçom do direito á privacidade ou simplesmente ao de viver livres da ameaça da vigiláncia anónima e o despojo por decreto. Tentamos conjurar a ameaça de que o avanço tecnológico aliado á voracidade do poder acabe encerrando-nos em qualquer base de dados secreta disposta a testificar em contra nossa. "Alguém devia ter calumniado a Josef K. porque, sem ter feito nada de mau, umha manhá foi detido" começa “O processo” de Kafka.

Temor que vira em indignaçom quando a suspeita do controlo se confirma com a exibiçom da mao que embala o berço: o latrocínio por decreto e luva branca, os hermeticos paraísos fiscais, o amanho judiciário arquitectado para esquivar normas e castigos merecidos. Todo bem temperado em molho mediático narcotizante e tóxico. A gaiola de ferro que anunciara Max Weber tem reforçado muito os seus barrotes. Passem e vejam, por favor, a excelente resoluçom do seu próprio retrato.

Quando a gente começa a suspeitar de enigmáticos residentes no próprio computador ou telefone que podem estar transmitindo em directo a crónica persoal á vertiginosa máquina do marketing ou aos ficheiros das forças e corpos de segurança cresce o atractivo de umha ética cívica de signo libertário

Quando a gente começa a suspeitar de enigmáticos residentes no próprio computador ou telefone que podem estar transmitindo em directo a crónica persoal á vertiginosa máquina do marketing ou aos ficheiros das forças e corpos de segurança cresce o atractivo de umha ética cívica de signo libertário. Ninguém se opom ao sistema métrico, nem ao semáforo, nem ao horário partilhado nem á cortesia devida ao concidadao mas recusa com firmeza a proliferaçom de cámaras de gravaçom, a institucionalizaçom do rito de apalpamento aeroportuário, a reiterada obriga de exibir os signos de identidade persoal e cadastral em permanente homenagem á insaciável voracidade dos arquivos do poder enquanto este viaja em assentos traseiros blindados e tintados para ocultar-se da mirada comum. “Ver sem ser visto” é o primeiro princípio da táctica militar, ensinárom-nos. A guerra é contra a maioria.

Nom precisamos justificar a nossa simpatia por Julian Assange, polo soldado Manning e por todos os Snowden e Falciani que parecem estar laborando por essa cidadania universal sem fronteiras que sonhara o pensamento ilustrado. A defesa da privacidade contra a codificaçom anónima e a ética de cooperaçom contra a ordem imperativa de competência de todos contra todos som imperativos éticos que deveriam ser elevados a rango constitucional.

Nom precisamos justificar a nossa simpatia por Julian Assange, polo soldado Manning e por todos os Snowden e Falciani que parecem estar laborando por essa cidadania universal sem fronteiras que sonhara o pensamento ilustrado

Vem-nos á memória a música de rebeldia que acompanhou a nossa adolescência, discos como “Cajitas” (1969) de Adolfo Celdran ou a do seu pai, o querido avozinho Pete Seeger com o seu banjo inconformista: little boxes on he hillside...

As “Cajitas” de Adolfo Celdran guardavam toda a insolência de Bertold Brecht: “General, teu tanque é mui forte, derruba a floresta... General, teu bombardeiro é poderoso, corre mais que a tormenta... E finalmente: General, o homem é mui útil, sabe voar, sabe matar, mas tem um defeito: pode pensar”. Bertoldo e as suas parábolas de libertaçom para a última batalha perdida.

Snowden, Assange, Manning, Falciani dérom em pensar, decidírom baixar do tanque e renunciar ao voto perpétuo de sigilo exigido polos Generais e a Banca Suiça. Andam agora os killers como cam doente atrás de eles em duelo desigual. Queremos crer que acabará prevalecendo a razom emancipatória sobre a força blindada e emboscada. A raposinha dos nossos contos infantis contra a pretensiosa superioridade do amo.

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