Para o professor Fernando Venâncio
A nossa é umha história prematuramente truncada que nos legou, nom obstante, um maravilhoso romance que nos individualiza e nos transcende. Herdança indivisa, polêmica ás vezes pola inveterada incomunicaçom entre os legatários da mesma. Umha Galiza doente de autismo e com preocupantes sintomas de desmemória; um Portugal encerrado em saudades de velho marinheiro em porto despois de ter navegado todas as rotas da língua; um Brasil, uns jovens países africanos da nossa fala, esquecidos talvez das suas remotas origens.
A posiçom do galego nesta heterogênea comunidade familiar nom pode ser reduzida a ociosa palestra acadêmica sobre peculiaridades fonéticas ou léxicas, o fondo do problema é de índole política porque remete a questons identitárias e aponta a consensos sociais. É precisamente a funçom identitária do idioma a que levanta resistências e alimenta hostilidades. O galego esmorece pola erosom provocada polo meio hostil em que subsiste. A cadeia de transmisom familiar e vizinhal toca ao seu fim assediado pola inexorável urbanizaçom da sociedade e a omnipotência dos meios de comunicaçom em língua alheia. A imprensa, a empresa, a generalidade do ensino som baluartes inexpugnáveis do castelhano. A esperança reside agora nos neofalantes, na prática consciente e tenaz do idioma preterido por parte das novas geraçons tam bém sintetizada nesse lema das camisetas juvenis: “eu nunca serei yo”. Umha política de escolarizaçom fiel ao idioma, com objectivos claros e congruentes, é umha fantasia ainda trinta anos despois da promulgaçom do Estatuto de Autonomia de 1981.
A restauraçom e potenciaçom do galego como parceiro legítimo dum idioma global demanda umha decidida abordagem léxica e ortográfica
A restauraçom e potenciaçom do galego como parceiro legítimo dum idioma global demanda umha decidida abordagem léxica (promoçom de formas genuínas e rechaço das alheias) e ortográfica (como Paul Valéry sabia o mais profundo do ser vivo está na pele) do idioma a fim de harmonizá-lo com as suas variantes internacionais. A correcçom ortográfica permitirá-nos já de entrada pronunciar como é devido tanto apelido galego orfo de mae: os Araújo, Gestoso, Sanjurjo, Gigirei, Meijide, Abeijom e tantos mais. Mas, como costuma ocorrer, o imprescindível é declarado inoportuno porque interferem poderosos resortes da identidade colectiva: o galego como língua regional espanhola, o português como idioma exclusivo de Portugal. Só permanece incólume o sagrado statu quo, refúgio ante qualquer tentaçom de mudança. O perigo certo que ameaça o galego é a sua dialectizaçom a maos do espanhol. Dialectizaçom, mimetizaçom: última estratégia de supervivência dos organismos vivos. Afinal que é um dialecto? Max Weinreich (1894-1969), um lingüista que amou e estudou o idioma yidish, definiu-o em frase genial: a sprakh iz a dialekt mit an armey un flot, “umha língua é un dialecto com exército e frota”. Galiza carece destes potentes instrumentos de persuassom desde os tempos de Paio Gomes Charinho, trovador e almirante do século XIII.
A nossa é umha história incómoda, amigo. Galiza é a variável oculta dos livros de história de Espanha e Portugal. A historiografia espanhola decidiu relegar o nosso relato primordial a nota a pé página do reino astur-leonês e este a simples prenúncio do reino de Castela. Castela, essa si, essência de Espanha, consagrada como tal pola ilustre geraçom do 98. A historiografia portuguesa decidiu arrombar simplesmente a sua matriz histórica no altar de um mítico épos lusitano. “Ninguém sabe quais sejam os lusos, nunca fôrom identificados”, aponta com intençom Fernando Venâncio; nom podo por menos de concordar. Caso de ter que eleger épica para o reino irmao dos navegadores eu teria optado pola pedra formosa da citánia galaica de Briteiros. Um fundamento bem mais sólido para o quinto império.
O eminente filólogo Fernando Venâncio tivo a bem enviar-me umhas recomendaçons de leitura apropósito de um artigo meu publicado em Praça Pública
Deixemos as histórias a mitómanos e historiadores e passemos á língua. O eminente filólogo Fernando Venâncio tivo a bem enviar-me umhas recomendaçons de leitura apropósito de um artigo meu publicado em Praça Pública. Apresurei-me a seguir o conselho, admiro a Fernando Venâncio desde que lim os seus brilhantes artigos na revista Grial: “Uma proposta portuguesa para o léxico galego” e “O indesejado ditongo ão”. Lim com toda atençom “Palavras doutra tribo. Sobre traduções de literatura galega”, excelente como esperava. De caminho tropecei com algum outro texto desconhecido para mim, entre eles um breve discurso sobre as armadilhas e peculiaridades do galego e o português padrom. A diferença dos artigos de Grial, destinadas a galegos e portugueses, as “Palavras doutra tribo” pretendem divulgar a problemática do galego-português a umha foreign audience. Entre os argumentos que articulam o breve discurso quero destacar um: “galego e português som um único idioma porque compartem todas as estruturas que distinguem ambas variantes do resto das línguas románicas”. O postulado dista de ser umha descoberta, mas agradece-se a como confirmaçom embora poda ferir sensibilidades. Fernando Venâncio venera os traços que singularizam a variante galega do romance comum; justo é que eu corresponda cumha confessom persoal referente ás minhas leituras em português. É frequente que detenha por um momento a minha leitura para pensar: que bem expressado está isto! Será possível fazê-lo melhor?
“Guardar o próprio, fomentar o comum, desincentivar o alheio ao sistema” som os preceitos que Fernando Venâncio propom para fomentar a nossa irmandade idiomática. Concordo plenamente. Mesmo poderia conceder que no primeiro preceito som as instituiçons oficiais de custódia do idioma, ILGA e RAG, as que ostentam a primazia. Disponhem, é verdade, de meios, mas também, reconheço, de entrega e paixom. Discordo embora da acentuada mania diferencialista que impregna a sua estratégia defensiva quer mediante a adopçom de neologismos arbitrários e artificiosos quer por reabilitaçom caprichosa de arcaísmos de incerta funcionalidade. A RAG, amigo Venâncio, segue empe(ñ)ada em “canonear” com horríssonos “canóns” toda posiçom contrária ao insensato ideal da soberania lingüística incondicionada do galego. Mas o galego nom é um idioma isolado, fai parte de umha herdança lingüística indivisa. Manipular o idioma como se de um euskera batua se tratasse é ignorar que o tránsito de Tui a Valença nom requer passaporte lingüístico. O resultado de destilar um idioma em alambique artesanal é um licor para consumo caseiro, sem possibilidade de exportaçom. Pretender confiná-lo num espaço impermeável á indústria cultural luso-brasileira é um péssimo negócio.
Quanto aos outros dous preceitos sugeridos, amigo Venâncio, devemos concordar que entramos em território reintegrado. Os organismos normalizadoras do galego com legitimaçom oficial carecem das categorias do comum e do alheio ao sistema porque para eles o sistema se limita aos resultados dos inquéritos sobre a fala viva e por acaso ás pesquisas que alimentam o VOLGA. Território opulento, reconheçamo-lo, mas precário porque impede nomear o quotidiano, tarefa que o espanhol desempenha a perfeiçom.
Pretendo exercer de reintegracionista, caro amigo, com a tenaz cautela de quem sabe que de pouco vale desperdiçar fôlegos numha tarefa de incerto percurso que requer ademais um paciente labor de persuasom social
Pretendo exercer de reintegracionista, caro amigo, com a tenaz cautela de quem sabe que de pouco vale desperdiçar fôlegos numha tarefa de incerto percurso que requer ademais um paciente labor de persuasom social. O reintegracionismo é um modo de viver o galego. Plural, por sinal. Se tivesse que precisar a minha posiçom particular nesta congregaçom confessaria a minha preferência pola variante primitiva do movimento. Reconheço-me nas ediçons do “Estudo Crítico” (1983, 1989) e textos concomitantes como também nas propostas actuais de Carlos Garrido. Nom aprecio demasiado os til de nasalizaçom que mais servem, na minha modesta opiniom, para entorpecer a leitura e realçar a observáncia reintegracionista do usuário do que para ganhar hegemonia social. Nada me estorvam os grupos cultos -acto, apto, ato; cacto, capto, cato- que tanto incomodam a amigos mais disciplinados. Estou disposto a mudar de opiniom quando for convencido, creio poder distinguir manias de conviçons. Entenderá-me também o meu amigo se lhe confesso que acho a expressom: “português da Galiza” para se referir ao galego actual um bocado excêntrica e desnecessariamente autopunitiva. O galego reintegrado é galego sem mais. Nascim na aldeia e orgulho-me da fala secular da minha vizinhança.
O empenho em procurar umha norma culta, transparente para um público português alfabetizado, convergente com o seu duplo standard internacional e apta para toda comunicaçom deveria ser um imperativo irrenunciável para todo galego comprometido com o futuro do seu idioma e cultura. Creia-me professor Venâncio se lhe digo que o exercício de conviçons tam sensatas dista de ser tarefa cómoda. A recuperaçom da ortografia histórica e a delimitaçom de um córpus léxical genuíno na linha defendida por Carlos Garrido som dous vectores decisivos na estratégia de estabilizar o património lingüístico comum e rechaçar o heterogêneo. Renunciar ao disfarce espanhol e ao neologismo arbitrário som medidas de simples supervivência num mundo em competência lingüística ampliada. A AGAL vem laborando em tal direcçom desde 1981, e nom desiste. Velaí a recente iniciativa cívica promovida para debater no Parlamento Galego um conjunto de medidas elementares de aproximaçom ao português que foi admitida a trámite por unanimidade. Talvez nom seja inoportuno evocar agora com a precisa discriçom que a prática reintegracionista comporta custos persoais por vezes gravosos, mensuráveis em termos de exclusom da docência e da publicaçom em jornais e editoriais consagradas, mesmo de consideraçom social: fazer brincadeira do reintegracionismo nom éstá conceituado como desporto de alto risco em Galiza hoje.
Sou economista e a economia ensina que os mercados com acesso administrado e restrito som propensos á gerar rendas monopolísticas com efeitos adversos tanto em termos de equidade como de capacidade inovadora. Nom seria impertinente lembrar aos nossos gestores culturais, legisladores e policy makers tam elementar princípio. Nos espaços confinados falta vento e a ausência de vento dificulta notavelmente a fecundaçom cruzada.
Reconhece o professor Venâncio o notável valor dos dicionários de Estraviz e de Iriarte Sanromám. Ambos som membros de AGAL, condiçom que lhes garante o mais estimulante silêncio oficial. Concordo também no aprezo do meu respeitado amigo polo vigoroso empenho do eminente gramático Freixeiro Mato (Universidade da Corunha) em impulsionar umha língua de qualidade. Gostaria fazer extensível a mútua admiraçom a Carlos Garrido (Universidade de Vigo) pola sua formulaçom de um modelo designado para restaurar um galego actualizado e eficiente em perspectiva que eu acho convergente com a de Freixeiro. Nem um nem outro -escusado mencioná-lo- ostentam cadeira na RAG nem a esperam. Os desígnios da docta casa som, santa Rosalia nos valha, inescrutáveis.
Existe um certo desdem do cidadao português comum por Galiza, é um traço explicável dada a inveterada indoctrinaçom na imaculada concepçom da sua naçom
Existe um certo desdem do cidadao português comum por Galiza, é um traço explicável dada a inveterada indoctrinaçom na imaculada concepçom da sua naçom. A desconsideraçom intensifica-se com frequência cumha inmerecida e obsequiosa deferência para com Espanha. Agora que somos europeios e podemos atravessar sem dano a atroz fronteira que separava Tui e Valença talvez tenha chegado o momento de arrombar velhos preconceitos. O de Galiza é um bom vento, atlántico como o de Portugal. O profesor Venâncio sabe-o bem. De onde pois pode provir esse aroma receoso que creio perceber nas suas análises sobre as vantagens de umha aproximaçom franca e desinibida entre o galego e o português? Só se me ocorre umha razom, um pouco excêntrica bem sei e talvez disparatada. Poderia o nosso amigo filólogo estar afectado por acaso por esse vírus do desengano sobre o próprio país que acomete ás vezes aos grandes autoexiliados portugueses: os Eduardo Lourenço, Paula Rego, Maria João Pires, José Saramago? O amor desmedido pode adoptar por vezes este disfarce.
Rematava o professor Venâncio a sua afectuosa disertaçom «I see my language everywhere” com a fermosa proclamaçom de amor á língua do nosso Cunqueiro: mil primaveras mais para a nossa pátria de palavras. Só me resta corresponder a tam gentil alusom á nossa maltratada língua com outro celebrado lema do mais puro rock punk viguês: menos mal que nos queda Portugal.