Matar a Marx

Sociedad y barbarie de Ignácio Castro Rey é um insólito alegato de grande potência dialéctica e ousado propósito: a demoliçom de Marx e do seu legado. Um artefacto intelectual de fragmentaçom, potente e de recomendável leitura tanto pola desmesura do propósito como pola sua contundência. O opúsculo, panfleto ou como queiramos denominar ao breviário de apenas cem páginas e oitenta e cinco capítulos (¡!) de carácter aforístico, constitui um sólido contributo filosófico dedicado a socavar os alicerces do programa teórico-vital de Marx. O opúsculo distribui-se em três secçons de títulos premonitórios do calado da incisom praticada no corpo teórico de Marx: A classe como princípio de individuaçom, Deus ressuscita na História, A morte e o trabalho da socializaçom, Modernizar: abolir a contradiçom. Umha obra intempestiva por propósito e circunstáncia que poderia ter comprazido a Nietzsche. Marx é, com todo direito, o vértice da ilustraçom europeia e do programa emancipatório implicado; um alegato também, em consequência, contra o discurso ilustrado. Os tempos em que o breviário de Castro vê a luz coincidem infelizmente com o orto dumha implosom capitalista (haverá mais, permaneçamos atentos) e os seus efeitos de devastaçom massiva ou colateral mensurável em termos de socializaçom da dor e a angústia geral. Marx assiste como testemunha muda e irónica, ausente talvez, ao estropício.

A incomodidade e o desconcerto que parece impregnar a recepçom de Sociedad y barbarie é um sintoma eloquente. O prologuista do livro, Miguel Morey, introdutor de Foucault em Espanha e do qual poderíamos esperar a maior cumplicidade com o autor e a obra, que qualifica de indagaçom dos limites ontológicos do pensador do capital, manifesta um desconcertante silêncio valorativo. Haverá que esperar a conhecer opinions mais próximas ao pensador compostelano, talvez procedentes do anti filosofo lacaniano Jorge Alemán ou a do camarada em divagaçons filosóficas, o compostelano Javier Turnes. Gente revirada e desinibida experta em matéria de reflexom.

O continente Marx é de tectónica vulcánica, desbordou por inércia própria os confins filosóficos hegelianos originários para invadir, atravês do pensamento económico británico, os mecanismos do devir histórico num desmesurado intento de legitimaçom mediante o critério de refutabilidade científica sobre o qual contamos hoje com abundante material de ajuizamento

O continente Marx é de tectónica vulcánica, desbordou por inércia própria os confins filosóficos hegelianos originários para invadir, atravês do pensamento económico británico, os mecanismos do devir histórico num desmesurado intento de legitimaçom mediante o critério de refutabilidade científica sobre o qual contamos hoje com abundante material de ajuizamento. O veredicto da legitimidade das categorias marxistas parece adverso por mais que se pretenda ignorar por motivos de fidelidade ou conveniência. Quem si agita com indecorosa entusiasmo a evidência histórica em benefício próprio é a grei de arautos e pregoeiros do poder político e económico como prova irrefutável de vitória perpétua. Como se esta fosse possível.

Longa e mal-avinda foi a descendência de Marx e mui diverso a quinhom que tirárom na herdança paterna. A linha genética original, a de primogenitura, deu lugar a umha estirpe cruel e bem conhecida: classe→partido→cúpula omnipotente→tirania armada. Nom é preciso pôr exemplos. Outra linha, deserdada desde o início por carência das qualidades requeridas para a supervivência, tentou honrar ao progenitor da revoluçom inexorável. Nela forma a abnegada multidom de militantes, artistas, intelectuais, conspiradores e perseguidos, pensadores de factoria e desterro, alvo fácil de cárcere e tortura que nom conseguiu torcer a sua vocaçom emancipatória e fraternal. Som os fracassados, tampouco é preciso citar nomes. Entre o sanedrim armado e a congregaçom de adeptos iluminados pola manhá fraternal que apontava, umha imensa grei de seres humanos ignorantes dos desígnios da história e da sua própria existência fôrom no entanto duramente castigados pola dor incompreensível que esta é capaz de segregar.

Ignacio Castro (Compostela, 1952) -convertido por graça da dobra do livro em insólito coetáneo de Reveriano Soutullo (1884-1932)- é um filósofo que nom passa facilmente desapercebido. Redactor dum blogue de obrigada consulta para quem queira navegar polas rotas de umha ética e estética actual e sugestiva ou aproximar-se às suas obras mais recentes incluída Sociedad y barbarie. Ignácio Castro foi também em tempos mestre zen-novoneyrano num episódio de retirada in eremo que eu qualificaria de ascético. À maneira dum Hugo Mujica, Castro transmutou-se por um tempo em montaraz asceta de urzes, capudres e jançás. Do retiro nasceu um livro singular: Roxe de Sebes em memória do lugar onde destilou gota a gota haikus, cartas à família e reflexons dispersas. Corriam os meses que vam de Novembro de 1983 a Setembro de 1988. Subir ao monte foi sempre umha senda mística; como o ofício de jardinaria que Witgenstein adoptou um tempo.

Dono dum pensamento fragméntário e oracular, aderente a umha imprecisa variante da esquerda situacionista e dos movimentos de denuncia da opresom bio-política sementados por Foucault, simpatizante dum anarquismo que reivindica a revolta persoal (Stirner) contra a convocatória revolucionária colectiva (Marx), todo isto, misturado com doses explícitas de humanismo e um mesurado laconismo tao, podemos encontrar em Castro Rey.

Matar a Marx nom é tarefa fácil, habita entre nós, na nossa forma de mirar, de entender os acontecimentos

Matar a Marx nom é tarefa fácil, habita entre nós, na nossa forma de mirar, de entender os acontecimentos. Antes de Nietzsche anunciar a morte de Deus por boca de um tolo já morrera o Gran Deus Pan. Cada dia duram menos os deuses: “Saudade eterna, que pouco duras” meditava Pessoa, o solitário.

Talvez lhe chegou a hora a Marx. E contodo, como falar agora do que observamos a diário? Do antagonismo capital-trabalho por aludir à informaçom que inunda a imprensa diária e os informes do Instituto Nacional de Estatística. Que fazer agora com o tardo-capitalismo replicante e os capitalismos de Estado emergentes?

O vazio que deixa o extinto profeta é inquietante e contodo, o informe forense de Ignácio Castro Rey parece hoje imprescindível, quer como sentença definitiva e inapelável, quer como interpelaçom pungente ao tempo que vivimos.

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