O politicamente correto

Sou professora de ensino secundário e um dos meus objetivos é melhorar a competência leitora do meu alunado. Para isso, entre outras cousas, trabalho com os meus grupos de 1ºESO (crianças de 12 anos) a constelação literária De quadro em mito, que tem elaborado Guadalupe Jover. Cada semana, na sala de aulas, comentamos uma pintura, conto-lhe o mito relacionado e dialogamos sobre o mesmo. Uma das sessões que quebram o imaginário do alunado é aquela que dedicamos a comentar Dánae e a chuva de ouro, de Rubens. A pergunta que lhe fago às crianças após revisarmos a pintura e eu botar o conto é se Dánae é vítima duma agressão sexual. De entrada, a resposta é unânime: não. Zeus (metamorfoseado em chuva de ouro chove o corpo da donzela, prenhando-a) não utiliza com ela a força física. Reparai na pintura de Rubens: Dánae aparece estombalhada e relaxada num leito bem mole e acarinhando um cadelinho. Como vai ser uma vítima! Só no processo de diálogo caímos na conta de que ela não sabe que está a acontecer e não tem capacidade, por tanto, de reação. Assim, aprendemos que as “trasnadas” de Zeus são, habitualmente, violações. E aprendemos a pór-lhe nome. Nome difícil de utilizar. Quase sempre, nenos e nenas, recorrem ao eufemismo. Zeus não viola, “faz das suas”. A palavra parece-lhes dura. Quando continuamos a contar o mito e chegamos ao momento em que Perseu, filho de Dánae e Zeus, mata à monstruosa Gorgona Medusa, proponho um repto-tarefa: pesquisar a origem dela. E aí o alunado flipa, sim, flipa. Porque Medusa vem a ser uma rapariga transformada em monstro como castigo por ter sido violada. Repito: castigo por ter sido violada. Nenos e nenas passam a ver o monstro com outros olhos. Duvidam do direito de Perseu a matá-lo (antes não houve questionamento). E clamam pola injustiça que Medusa sofre. Não percebem por que é sempre contada a história só desde a perspetiva do filho de Zeus. E de aí chegamos à atualidade e as Gorgonas de hoje em dia através de Marilar Aleixandre e a sua A Cabeza da Medusa. O alunado questiona que eu leve esses contos às aulas. Por que o faço? Que intenção tenho? Esta é a literatura que levamos aprendendo 2500 anos, digo-lhe, e quiçá é tempo de perguntar-nos por que.

Quando eu comento fora da sala de aulas que estamos a fazer este tipo de sessões, muitas vezes recebo a mesma pergunta: e não tens problemas com as famílias? E não tens problemas com a inspeção? Porque o que estou a fazer nas minhas aulas é politicamente incorreto. Estou a trabalhar o cânone literário pondo-o em questão e deconstruindo-o desde uma ótica feminista. E as cousas não são assim. O normal é estudar Rubens, estudar Ovídio, estudar Mitologia Greco-latina, assimilando-os como O acervo cultural, O importante, A base da nossa intelectualidade.

Por que conto isto? Pois porque anda a percorrer as redes uma polémica por volta duma prova nas oposições de ensino secundário. Na disciplina de Língua Inglesa foi oferecido para comentário um fragmento de Santuario, de William Faulkner em que é descrita uma violação. E as companheiras da CIG, atendendo às queixas de opositoras, emitiram um comunicado de protesta. Não consideram adequada a proposta e as tarefas associadas a ela1, que não incluíam explicitamente uma atividade que abordasse a problemática da violência contra as mulheres.
Há que considera a reação da CIG (e das opositoras) desproporcionada, e argumenta que estamos a ser invadidas polo politicamente correto, que está a promover-se a censura de grandes autores porque o seu discurso não se corresponde com os tempos, ou que as opositoras têm assim liberdade para fazer uma crítica do texto desde o feminismo.

Não partilho estas opiniões.

Os contextos são importantes. Eu trabalho textos canónicos nas aulas. Os politicamente corretos. Os Ovídios e os Faulkner. Eu não defendo a sua censura nem a sua ausência dos espaços de aprendizagem. São do mais adequado para desenvolver a competência leitora e o espírito crítico. Por isso fomento que sejam questionados e criticados, oferecendo ao alunado as chaves para o fazer. Mas faço-o num espaço de confiança no que é promovida a liberdade de expressão. Não trabalho o mito de Dánae o primeiro dia de escola. Porque previamente tenho que criar na sala de aulas um clima propício ao diálogo entre iguais. Eu sou autoridade, sei, por isso devo fazer ver às crianças que aquilo que digam não vai ser utilizado na sua contra. Que se dizem que não gostam de Rubens, que a Medusa merece ser castigada, que… não vai haver negativos ou reprovados, que só vai passar que falaremos. Esta não é a situação das opositoras na sua prova. Elas estão a passar um momento de estress e submetidas à necessidade de adaptar o seu discurso às exigências de um tribunal, autoridade que vai decidir o seu futuro (e mesmo presente) laboral. O lógico é não questionar o texto, aceitá-lo como parte do cânone admitido e dessa cultura da violação que normaliza as agressões sexuais.

Porque na realidade, para mim, o que está aqui em questão é a escolha. A mim flipa-me, como ao meu alunado, que a sete presidências de tribunais opositores lhe pareça adequado um texto que trate uma violação. Para um comentário linguístico. Duvido muito que a sua intenção na escolha fosse propiciar uma análise feminista por parte das opositoras. Não. Simplesmente queriam um texto complicado (Faulkner é complicado) que facilitasse o processo seletivo. Mas olha que Faulkner tem obra! E foram tirar do que descreve uma agressão sexual do ponto de vista do agressor! As sete pessoas presidentas de tribunais não repararam (inconscientes) na normalização que fizeram assim da cultura da violação. Ao tempo, penso nessas companheiras que tenham sido vítimas de violências sexuais (calcula-se que no estado há uma violação cada oito horas) e tenham que defrontar um texto deste tipo num dia tão importante. Que necessidade há de fazê-las passar por isso? Ah, é que não pensamos nisso… É essa cegueira que me parece perigosa. E criticável. E questionável.

Se eu, que me pode passar como funcionária que sou, faço parte de um tribunal de oposição e tenho interesse em forçar uma análise feminista por parte das opositoras (que me interessa), não escolheria para a prova um texto misógino de Quevedo mas, provavelmente, um texto de sor Juana Inés de la Cruz, que também faz parte do repertório ao que podo acudir (Século de Ouro, nas disciplina de Língua Castelhana e Literatura). Os de Quevedo reservo-os para a sala de aulas com tempo e vagar para os analisar em contraste com outras obras. Optando por sor Juana Inés de la Cruz visibilizo as mulheres que sim fazem parte do cânone, desfecho o posicionamento privilegiado dos três grandes (Quevedo, Lope e Góngora) e propicio uma análise feminista. Por que não Carson McCullers, Katherine Anne Porter, Flannery O’Connor? Isto sim é politicamente incorreto, e não colocar um senhor a deleitar-se na descrição de uma agressão sexual. Como sempre desde há 2500 anos (que saibamos).

Porque neste mundo o politicamente correto é que as machistadas passem por normalidade. O alternativo, o que faz pensar, é mudar os marcos de referência, duvidar dos marcos de referência normalizados. Como fizeram as opositoras que questionam a pertinência desse texto numa prova de acesso ao corpo docente do sistema público.

 

1- Um resumo do texto, uma análise sócio-linguística, respostar a perguntas sobre vocabulário, fonética, e fazer uma escolha de um apartado e explorar esse texto com jogos dirigidos ao alunado.

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