A toda a devota congregaçom afonsina galega e a Benedito Garcia, na memória
Tirana saudade é um sintagma potente e perturbador: saudade que tiraniza. Há algo de provocador nesta atribuiçom de tirania a esse sentimento de incompletude melancólica que os portugueses elevam a signo identificativo. Algo de errado parece haver em qualificar de dominante um sentimento doente e introspectivo. E nom obstante, o sintagma acabou ganhando estatuto de legitimidade na memória sentimental portuguesa em asas de umha inesquecível cançom de origem açoriana ou talvez portuguesa continental de origem e raiz.
Cantares do Andarilho é um álbum memorável de José Afonso editado em 1968 no qual o poeta cantor recreia cantares tradicionais de beleza inigualável. Duas cançons do álbum consagram o sentimento de saudade em forma exemplar: Saudadinha e Senhora do Almortão, ambas de inequívoca estirpe popular que o génio do cantor soube elevar à sua forma clássica. Raiz popular, alto voo poético; como a Rosalia primeira. Voz potente e limpa, entoaçom perfeita, acompanhamento mínimo: canta o povo e cantor. Som cançons do andarilho, do vagabundeio errante.
Perguntamo-nos de onde será que vem o inquietante emparelhamento de tirania e saudade. A hipótese aponta para umha origem talvez espanhola e setecentista como querem uns, ou mais bem portuguesa do norte como parece acreditar a colectánea musicológica oitocentista de César das Neves (1) que documenta unha tirana de Ponte de Lima e outra açoriana por finais do século XIX.
A geografia da saudade tirana aponta para os Açores onde ela disque nasceu, na ilha do Faial, no canto da Achadinha lá ao nordeste da ilha de São Miguel. Como Tirana do Faial nasceu antes de dar em Tirana saudade. Do húmus melódico e literário português que a engendrou nada sabemos a nom ser que a saudade tem pátria portuguesa que ecoa em nós também como morrinha em textos setecentistas de Martim Sarmiento e Juan Sobreira Salgado como doença que deriva em melancolia ou sujidade. Mistérios das palavras.
Lia eu neste dias um livro de interpretaçom de Portugal de Miguel Real (2), tema do que som adepto, quando tropeço com a frase: “A saudade é um pano roxo, cantavam os antepassados Terceirenses quando emigravam para os Açores relembrando a tristeza do continente durante a Quaresma”. A minha memória musical golpeou-me de repente com a pungente estrofe de Zeca Afonso: É um cortinado roxo que me morde o coração.
Na misteriosa vagabundagem de ida e volta entre as Ilhas do Espírito Santo e a saudosa metrópole lusitana, a seguinte apariçom da cançom em corpo mortal leva-nos a Coimbra onde achamos o popular estudante fadista Edmundo Bettencourt (Funchal: 1889, Lisboa: 1973) cantando a sua Saudadinha, quase irmã gémea da do Zeca embora mais angulosa e menos nostálgica esta. A sua Senhora do Almortão nom pode competir com a pungente do Zeca. A cançom do Bettencourt perde essa indefinível pátina evocadora, perfeita em elocuçom e melodia do Zeca para se disfarçar de música de romaria, mais rebulideira que saudosa. Na Canção da Beira Baixa recuperamos o melhor Bettencourt que emocionou os seus coetáneos, folclore depurado, comovente texto: “...Quando eu já for velhinha, acabada de morrer, Olha bem para os meus olhos, Sem vida, ainda te hei-de ver...” arrepia-nos o mestre Bettencourt. Longa memória ao grande precursor de José Afonso.
Em 1918, logo após da Grande Guerra, Edmundo Bettencourt ingressava na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Em 1922-23 e 1924-25 já frequenta as aulas de direito em Coimbra para abandonar depois os estudos e voltar para Lisboa, consoante com a sua índole pándega e boémia.
Edmundo foi fugaz impulsor da revista literária Presença (1927-1940) que convocou grandes personalidades da cultura portuguesa: Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, José Régio, Casais Monteiro, Miguel Torga, e tantos artistas mais da modernidade portuguesa. A sua poesia foi celebrada polos seus amigos até Manuel Alegre que lhe teceu umha coroa poética com um florilégio da sua: Vinde ouvir a voz de Edmundo. A Achadinha e o Almortão bolem aí de novo como memória poética. De Edmundo de Bettencourt conserva-se umha compilaçom (3) de doze cançons editada pola EMI em 1984 onde nom faltam a Senhora do Almortão e a Senhora Saudadinha, santas padroeiras da saudade vagabunda que cantara o nosso poeta do ermo: Sol a queima, i auga a molha/ i anda a probiña sen guia/ buscando quem a recolha/ desque morreu Rosalía.
1- Há um artigo erudito sobre os primórdios da invençom e compilaçom de tradiçom musical portuguesa na Revista Portuguesa de musicologia: http://rpm-ns.pt/index.php/rpm/article/view/96/103
2- Miguel Real (2017): Traços fundamentais da cultura portuguesa, Grupo Planeta, Lisboa
3- https://www.discogs.com/es/Edmundo-De-Bettencourt-Fados-de-Coimbra/release/10790482