Os pais da Deolinda

Os nascidos na volta dos quarenta, eu mesmo, fazemos parte de umha geraçom afortunada. A nossa infáncia desenvolveu-se num contorno extremamente silencioso. Parecia-nos natural, tardámos anos em interpretar os silêncios dos pais e em chegar a perceber os ecos da memória rejeitada. Dali a pouco cremos ouvir com claridade a chamada geracional a mudar a resignaçom quotidiana por um ordem social mais justo que nós demos em chamar socialismo. Socialismo sem mais, fim da grisalha social e dos farrapos do trinta e seis, tempo novo. Procurávamos a soluçom definitiva: a emancipaçom do trabalho e das consciências para começar. Nom passávamos por menos, parecia-nos umha tarefa sem desculpas. Ao pouco, a opiniom marginal convertiu-se em clamor social.

Os sessenta pareciam um prólogo glorioso quando eram já um epílogo. Fomos umha geraçom privilegiada, mui propícia a narcisismos

De 1945 a 1975 escoárom por Europa trinta anos irrepetíveis, fôrom os do consenso social-democrata da pós-guerra presididos polo crescimento económico, a mutaçom de costumes e comportamentos, a criatividade intelectual e a descolonizaçom. Todo envolveito em músicas que ainda nos acompanham, e em imagens: a do Che Guevara de Alberto Korda, a das mini-saias das raparigas, a da camaradagem em pensons de estudantes e os ensaios de clandestinidade. Todo ia para melhor. Observávamos satisfeitos a ruína imparável do regime com toda a sua parafernália de obras hidráulicas, concentraçons patrióticas, sindicatos verticais, concorrência ordenada de pareceres e nuvens de incenso enchendo igrejas e jornais. A Universidade virou em ágora crítica e a Igreja mesma submeteu-se a exercícios espirituais no Vaticano II (1959-1965) num esforço, hoje incrível, de repensar doutrinas e comportamentos. As sacristias chegárom mesmo a vibrar ao uníssono com as aspiraçons operárias e a agitaçom universitária. Os sessenta pareciam um prólogo glorioso quando eram já um epílogo. Fomos umha geraçom privilegiada, mui propícia a narcisismos.

E foi nestas, quando o capital, sempre proclive aos achaques, petou forte na porta e decidiu que era chegada a hora de inventário e liquidaçom de existências. O argumento esgrimido foi que todos tinham vivido por riba das suas possibilidades

A geraçom dos nossos pais vira-se obrigada a passar da mocidade breve à guerra atroz e desta à pós-guerra interminável. Uns morrérom, outros emigrárom e a maioria aplicou-se à arte de sobreviver. Os mais deles alcançárom a experimentar o tempo da melhora económica coincidente cumha incompreensível efervescência no círculo dos filhos. Umha geraçom a deles encalhada entre chumbo soterrado, ecos de proclamas, ordem e propaganda. No 75 morreu Franco e as aplaudentes Cortes orgánicas apressurárom-se a soterrar a aquele escuro militar africanista encumeado a generalíssimo pola força das armas primeiro e das conveniências da política de blocos despois. Home providencial era o qualificativo preferido na época para referir-se à sua dimensom.

O 1 de Janeiro de 1986 Espanha ingressava na Comunidade Europeia, em 1999 aderia à moeda única que no 2002 circulava já polo país adiante. Espanha assemelhava-se cada vez mais à Europa de aí em volta, víamo-lo nos jornais, comprovávamo-lo nas viagens. E foi nestas, quando o capital, sempre proclive aos achaques, petou forte na porta e decidiu que era chegada a hora de inventário e liquidaçom de existências. O argumento esgrimido foi que todos tinham vivido por riba das suas possibilidades, tanto os titulares de contas em Suiça como os subscritores de preferentes e os trabalhadores em precário. Todos tinham que contribuir a nom ser os beneficiários do “chocolate do loro” que por serem poucos ficavam excluídos. Os filhos fôrom as vítimas primeiras despois veu toda a família até alcançar os avós: um colapso catastrófico de expectativas e trabalhos, de destruiçom de serviços públicos, de suba incontrolada dos juros exigidos polos acredores estrangeiros, de inflaçom galopante de verborreia justificativa e publicidade enganosa.

Passei umha semana ao sol no Porto no verao do 2011. O motivo foi a assistência ao breve curso de cinco dias aPorto organizado pola Agal e Andaime. Aulas pola manhá, actividades culturais e passeios pola tarde, música, jantares e convivência óptima. Um verao para aconselhar a gente amiga. Entre as actividades da manhá, na Faculdade de Letras, encostada frente ao Douro, lembrarei sempre o concurso de cançons para pequeno coro improvisado.

Vai debulhando Deolinda com angelical ironia a paisagem da desolaçom geracional

Todos participámos, nós com a cançom Sodade da Cesária Évora. Nom alcançamos muito éxito. Nom há desculpa, com Cesária!. Houve gente melhor, os galegos gostam do canto ensaiado em festas e sobremesas e nunca falta quem o faga bem.

Vem-me isto à memória ao lembrar a cançom que um grupo de colegas escolheu para competir: Parva que eu sou da Deolinda. Um pequeno descobrimento para mim daquela, um breve hino ou balada da juventude portuguesa à rasca, sem presente nem futuro. Pudem comprovar despois que a balada da Deolinda era já conhecida aqui pola gente nova da família. O tam-tam juvenil do youtube, talvez.

Vai debulhando Deolinda com angelical ironia a paisagem da desolaçom geracional:

Sou da geração sem remuneração/e nem me incomoda esta condição/que parva que eu sou!(...)E fico a pensar/que mundo tão parvo/que para ser escravo é preciso estudar(..) Sou da geração 'casinha dos pais'/se já tenho tudo, para quê querer mais?(...)Filhos, marido, estou sempre a adiar/e ainda me falta o carro pagar/que parva que eu sou!(...)Sou da geração 'vou queixar-me para quê?'/há alguém bem pior do que eu na TV/que parva que eu sou!(...)

As Deolindas e os seus companheiros de entre 16 e 29 anos somam hoje em Galiza quatrocentos indivíduos mal contados dos quais 41% estudam, 22% nom encontram emprego e apenas o 37%, 142.000, constam como ocupados

As Deolindas do Porto ou de Vigo carecem de remuneraçom e andam a cismar se a parvoíce que as afoga é de colheita própria ou colectiva, pecado persoal ou infortúnio dos tempos. As Deolindas e os seus companheiros de entre 16 e 29 anos somam hoje em Galiza quatrocentos mil indivíduos mal contados dos quais 41% estudam, 22% nom encontram emprego e apenas o 37%, 142.000, constam como ocupados. Constam quer dizer que desfrutárom como mínimo de “1 hora de trabalho durante a semana em que foi efectuado o inquérito” segundo a gloriosa definiçom do Instituto Nacional de Estatística. Deolindas todas, voltem à rua, reclamem, vociferem, apaguem a TV, levem aos irmaos e companheiros a protestar, escuitem atentamente as mensagens, nom esqueçam mais.

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