Dous anos após 7 de outubro de 2023, a “trégua” em discussão para Gaza não é um plano de paz mas uma pausa administrada por potências que continuam a gerir a questão palestiniana como um problema imperial de colonato a ser contido, não como um direito à autodeterminação a ser garantido. A devastação acumulada — mais de 67 mil palestinianos mortos no mínimo, milhões deslocados e o colapso de serviços essenciais — torna qualquer cessar-fogo sem desocupação, justiça e reparação uma mera gestão de ruínas. Num contexto de pressão internacional sem precedentes pola destruição total e sistemática de Gaza e da sua população, desencadeada com impunidade após 7 de outubro, a diplomacia volta a mexer ao ritmo do único ator capaz de falar com Netanyahu. Desde que aquilo que proponha o fortaleça pois o primeiro-ministro sionista não hesitou em humilhar publicamente a belicista Hillary Clinton quando a administração Obama lhe exigiu travar os colonatos.
A primazia de Trump impõe-se a governos europeus incapazes de articular uma alternativa comum. E mesmo os que reconheceram recentemente o Estado palestiniano subscrevem agora uma proposta que não o torna viável; polo contrário, consolida uma tutela. Interrompe-se o fogo, mas deixa-se no terreno uma realidade devastada: os palestinos confinados a menos de 22% das terras que reclamam, cerca de 67.000 mortos em dous anos e a fame novamente usada como arma de guerra.O “plano Trump” reapresenta a velha lógica de tutel com uma autoridade “transitória”, tecnocrática e supervisionada externamente, com Tony Blair no centro, enquanto se discute transformar escombros num projeto tipo “Riviera do Médio Oriente”. Isto replica as formas históricas de mandato colonial — governo sem soberania — e desloca a política para o mercado, prometendo “reconstrução” sem descolonização. Não por acaso, investigações detalham a dependência financeira do Instituto Tony Blair em doações de Larry Ellison, evidenciando a imbricação entre “governança” e interesses empresariais globais. Resumindo, trata-se de resolver um conflito colonial por meio de um mandato colonial após 77 anos. Sugerir Tony Blair para liderar esta “transição” diz muito sobre o enquadramento americano. Trata-se de tentar resolver um conflito colonial por meio de um mandato colonial — um século depois. E há ainda a ligação à agenda empresarial da política externa de Trump. O Tony Blair Institute for Global Change, fundado em 2016, conta com o apoio do milionário Larry Ellison, peça-chave no projeto de transformação do “Estado digital” sob Trump; além disso, o instituto de Blair também participou do desenho do infamante projeto da “Riviera de Gaza”.
Trump, ofuscado com o Prêmio Nobel, aposta em soluções imediatas, indiferentes à complexidade. Tal como com os Acordos de Abraão, promovidos pola sua primeira administração para normalizar relações de Israel com vizinhos árabes, a causa palestiniana volta a diluir-se sob o peso de equilíbrios e interesses regionais. A própria negociação do plano serve a várias capitais europeias como desculpa para travar a única medida de pressão real sobre Israel que chegaram a discutir: a suspensão do acordo de associação, agora tratada como menos necessária em certos discursos.Em paralelo, Hamas aceita libertar todos os reféns remanescentes mediante negociação, o que sustenta um cessar-fogo, mas não altera a estrutura de poder nem responde à questão central: ocupação e colonização. Sem enfrentar a lógica de colonização de povoamento — aquilo que Patrick Wolfe define como uma “estrutura, não um evento”, orientada pola eliminação/expulsão do nativo — qualquer “paz” será administrada sobre a mesma assimetria. O enquadramento jurídico recente reforça esta leitura. A CIJ ordenou medidas para prevenir atos proibidos pola Convenção do Genocídio (jan. e mai. 2024), o TPI avançou com mandados de detenção contra líderes israelitas (nov. 2024) e a Comissão de Inquérito da ONU concluiu em 2025 que Israel comete genocídio em Gaza — conclusões que Israel rejeita, mas que sublinham a natureza estrutural da violência.
Na gramática decolonial, é o que Quijano chama de “colonialidade do poder”, quer dizer, uma matriz que articula raça, economia e conhecimento para normalizar dominação e despossessão. Um cessar-fogo que preserve essa matriz perpetua a violência existencial. A Europa continua presa à sua própria história colonial. Alguns Estados reconheceram o Estado da Palestina em 2024–2025, mas aceitam planos tutelados que excluem os palestinianos do desenho do seu futuro. A proposta da Comissão para suspender preferências do Acordo de Associação com Israel mostra que há instrumentos de pressão, mas a convergência política tem sido errática; somam-se ainda os efeitos de décadas de “política de não contato” com o Hamas desde 2006, que empurrou a UE para a irrelevância num conflito a poucas centenas de quilômetros. Em chave decolonial, reconhecer o Estado sem redistribuição efetiva de poder, território e direitos — isto é, sem desocupação, direito de retorno/compensação e fim do regime de apartheid documentado por Human Rights Watch e Amnistia — mantém a subalternidade. Mas a Palestina é mais do que o Hamas. Hoje, alguns responsáveis europeus admitem em privado o erro de não ter reconhecido o resultado das eleições palestinianas de 2006 e de manter a política de “não contacto” com o Hamas.
A partir daí começa a irrelevância geopolítica que pesa sobre a UE num conflito próximo das suas fronteiras. Enquanto os bombardeamentos continuam e as negociações indiretas prosseguem no Egito, o mundo e a região agarram-se à hipótese de travar a violência por meio de uma paz imposta polo poder coercivo de Trump — não por justiça, nem por consenso, mas por força. Em suma, um cessar-fogo pode estancar a mortandade imediata, mas não é paz se deixar intacta a estrutura colonial. Uma abordagem genuinamente decolonial centra a autodeterminação palestina, desmantela a colonização (e a tutela internacional que a substitui) e repara a violência material e epistêmica acumulada. Sem isto, ficamos com administração de crise — e com a mesma política de desaparecimento, por outros meios.