O momento histórico que estamos a viver, tão convulso, tão crítico, coloca-nos perante várias encruzilhadas
Ás vezes as pessoas, como Édipo, aparecem situadas, sem saberem por que, numa encruzilhada. A encruzilhada é o território do dilema. Pode aparentar um lugar sugestivo, onde deleitar-se no prazer de exercer uma escolha livre, mas é também o sítio onde desprender-se de algo que durante um tempo o Édipo arrastou consigo, que o constituiu. O momento histórico que estamos a viver, tão convulso, tão crítico, coloca-nos perante várias encruzilhadas: não daremos derrubado um mundo contaminante, agressivo, competitivo, gerador de abismais diferenças de classe e dum infortúnio infinito sem a ousadia de escolhermos as vias idóneas, por complexas que puderem ser. Agora quero referir-me à encruzilhada ortográfica; não é a única, insisto, mas tampouco é menor. Tenho de falar mirando para um e para outro prato da balança e sou consciente de que ninguém que já se aventurar por um dos dous caminhos possíveis vai-se sentir contente. Em qualquer caso, o Édipo arranca-se os olhos, expõe a sua dor à vista: confessa.
De entrada, observo que nos últimos tempos algo está a se mover na literatura galega. Se calhar de tanto sonhar-se a si própria como um produto que ninguém quer ler, se calhar por estar durante décadas orientada para o consumo da mocidade que lê −ou lia quando os ecrãs ainda não a tinham sequestrado− apenas por obriga tudo quanto lhe fosse exigido para passar os exames com sucesso, a literatura galega morreu. Embora os seus certames literários, as suas editoriais que escolhem os textos que devem ver a luz em competência com mercados mais firmes, embora os seus clássicos nos beiços de políticos que assim escondem a vergonha de não julgarem legível a escrita contemporânea porque preferem Pérez Reverte e Almudena Grandes, a literatura galega morreu e agora, mexe-se, inesperada e sub-reptícia, no sepulcro para agir, de novo, liberada e comprometida. Não podo achar outra metáfora, distinta de aquela judeu-cristã da ressurreição, para explicar a quantidade de publicações que nos últimos tempos assomam, associada agora a uma dissidência: a ortografia do galego internacional. O assunto é, no mínimo, surpreendente numa época em que a língua está sendo literalmente esmagada pelo poder.
Achava, honestamente, que não se devia extremar mais a achega pelo temor, hoje penso infundado, a que o galego morresse com as suas peculiaridades próprias de se diluir em português standard
Talvez muitas pessoas que escrevem na Galiza só vem já possível para a normalização e a revitalização do galego um compromisso efetivo com a tradição ortográfica portuguesa, emquamto decidem proseguir o caminho cuidando do que nos faz fortes. Essa é uma valentia. O compromisso adota-se num nível ético e político e produz −não esqueçamos− uma exclusão voluntária. As autoras e autores que optam por se reintegrarem nessa tradição ficam nas margens do sistema e provavelmente nem sequer hão achar o prémio da difusão da sua obra além dessas fronteiras com que tantas de nós quereríamos rachar. Dixo-lhe Alexandre o magno a Diógenes: "Se obedeceres o rei, não terás que contentar-te com umas lentilhas". E respondeu Diógenes: "Se te contentares com umas lentilhas não terás que obedecer o rei". Gosto da autonomia moral, da liberdade e da coerência de Diógenes.
Pessoalmente senti-me durante muito tempo satisfeita com a solução que propunha Freixeiro Mato, o eminente professor da UDC, cultivando isso que ele chama um reintegracionismo em norma oficial: uma língua pronta a restaurar as construções sintáticas presentes hoje em português, que olhasse para o sul na escolha de formas léxicas cultas, mas que mantivesse isso que pomposamente se denominou o consenso ortográfico. Achava, honestamente, que não se devia extremar mais a achega pelo temor, hoje penso infundado, a que o galego morresse com as suas peculiaridades próprias de se diluir em português standard. Julgava também eu, mulher implicada em distintas formas de ativismo político, que não podíamos bater mais no povo, falando-lhe uma língua que soasse lisboeta, isto é, que figesse sentir mais uma vez ao povo galego que o seu não valia nada. Mas quiçá julguei mal. Porque nem a normalização avança, nem a gente agradece essa cautela.
Apareceram depois os normalizadores, reputados pelas suas instituições, os Consellos da Cultura Galega, os Institutos da língua galega, as Reais Academias da língua galega, a praticar o ofício de regularem essas formas de laboratório, que pareciam não serem violentas
O povo abandonou formas como segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, antes tradicionais, quando as mestras chegaram como exército alfabetizador às escolas e rotularam no quadro lunes, martes, miércoles. E o povo trocou as palavras de todos os dias. Apareceram depois os normalizadores, reputados pelas suas instituições, os Consellos da Cultura Galega, os Institutos da língua galega, as Reais Academias da língua galega, a praticar o ofício de regularem essas formas de laboratório, que pareciam não serem violentas: a gente é parva, a gente não sabe dizer segunda-feira, mas a gente há de aprender luns. Porém ninguém aprendeu luns. Todos seguiram a dizer lunes, martes, miércoles... Conto esta pequena anedota para expressar a minha perplexidade com o facto de que, para esta altura, todas as autoridades da filologia não tivessem corado de vergonha por assumirem um modelo de língua que prefere os espanholismos frequentes da fala espontânea numa nação negada e sonhada antes que tirar da tradição literária na variedade portuguesa referência nenhuma.
Esse prurido isolacionista é quando menos extravagante num país que se quer tão pouco a si próprio, que se nega continuamente: como se pode chegar a esse ponto sem chauvinismo?
Esse prurido isolacionista é quando menos extravagante num país que se quer tão pouco a si próprio, que se nega continuamente: como se pode chegar a esse ponto sem chauvinismo? Se calhar a teimosia em se defender a soas, com uma venda nos olhos e caminhando pela fachada dum arranha-céus tenha algo a ver com as tendências obsessivas dos suicidas... A encruzilhada natural que nos obriga a decidir entre galego-português e galego-castelhano resolve-se ao lhe darmos uma leitura em termos políticos: o galego-português nega-se, não seja que nos declaremos independentes; não seja que sonhemos com sermos algo distinto do galeguinho torpe e parvalhão. A valentia de tantas assinaturas da língua galega, de mulheres e homens que escrevem fora das subvenções, fora das grandes editoriais, fora do stablishment da cultura, fora do que ouviram de crianças, fora de toda convenção, a valentia, digo, não pode ficar pairando no ar.
Se a minha língua só fosse falada na Galiza não seria pior: seria invulgar... e isso não faz mal. O isolacionismo é negativo por não nos abrir para outras realidades culturais, étnicas, de costumes, por negar a história verdadeira
Cada dia hão ser mais. Como demanda a iniciativa de lei Paz Andrade, cada dia havemos ser legião, uma legião de insubmissas à grafia incutida na escola. E entendei-me bem, como tantos excessos argumentais se cometeram, dum lado e do outro da encruzilhada, a escolha neste tempo não é já mais um problema de restaurar a ortografia de direito em lugar de uma bastarda. Não tal. As mulheres sabemos bem que as filhas bastardas são tão filhas como as outras: só um sistema de crenças baseado em valores burgueses e patriarcais poderia fazer essa diferença entre o legítimo e o ilegítimo. Não é por uma simples restauração histórica que cumpre fazer tal. Porem, não é tampouco por uma utilidade de mercado. Muitas vezes o reintegracionismo fundamentou-se na possibilidade de acharmos mercados além do mar, no Brasil, no sul de África ou no extremo oriente, mas uma língua não é melhor ou pior pelo número de pessoas que a falem... ou condenamos o éuscaro à morte, por exemplo. Em absoluto. Que a utilidade possa luzir atraente para um povo afeito a que lhe atirem à cara a sua miséria não significa que seja ético invocar o pulo dos milhões de falantes. Para além disso, qualquer critério utilitarista deve ser cuidadosamente evitado porque as pessoas falantes, quando esgrimirem esse pragmatismo, rematam falando o espanhol que lhes abre as portas do mundo-tal-qual-é, do reino da economia e do capital. Aliás, noutros assuntos, algo é considerado mais valioso quanta menos gente o desfruta. Se há poucos diamantes no mundo, os diamantes valem mais do que os peixes, por sorte mais numerosos do que esse carbono polido −embora quiçá não durante muito tempo se continuarmos a abusar do mar; sublinho-o porque todas as revoltas estão sem dúvida conetadas−. Se a minha língua só fosse falada na Galiza não seria pior: seria invulgar... e isso não faz mal. O isolacionismo é negativo por não nos abrir para outras realidades culturais, étnicas, de costumes, por negar a história verdadeira; não pelo absolutismo dos números. Essa lógica só se sustenta dentro da globalização capitalista. Ou isso, humildemente, acho eu.
Porque a ortografia, como dizia o filósofo Mosterín, é uma instituição mais resistente do que a Bastilha. Volta a Revolução. E por esta vez não será francesa: será nossa
Porém, se houve um momento na história em que o estado pesasse nas nossas costas, deve ser este. O estado espanhol nega a nossa identidade e a nossa soberania. O estado espanhol confunde-nos envolvendo-nos por baixo dum manto de folclóricas, festas taurinas, paelhas e sol. O estado espanhol desconsidera a nossa capacidade de decidir, trata-nos como menores de idade administrando a nossa fazenda e, por cima, convence-nos de sermos uma região subvencionada por esse gigante benfeitor que é a União Europeia, embora todas as pessoas conscientes e informadas saibam que as suas esmolas não deram restituído o que pagamos em produção energética, por exemplo. A necessidade de insurreição com respeito a um estado opressor, repressor e mentireiro, para além de infetado duma corrupção de que não saímos impunes −precisamente porque as instituições do estado nos dominam− está a mover-nos, também a mim, embora não seja uma questão pessoal, para adoptarmos estratégias múltiplas, inclusive a estratégia ortográfica... que, certamente, não é menor. Porque a ortografia, como dizia o filósofo Mosterín, é uma instituição mais resistente do que a Bastilha. Volta a Revolução. E por esta vez não será francesa: será nossa.
Escrevo isto desde a encruzilhada, no momento anterior de empreender o caminho. Como qualquer Édipo levo às minhas costas um fardo com os seus pesos. Após dar ao prelo vários centos de páginas escritas em normativa oficial, ou como quer que se chame a variedade que eu aprendi na escola, parece que as minhas reflexões puxam por mim para outro lado. Volto à incómoda posição da mocidade, quando houve de optar por uma língua que não falavam os meus maiores e que me chegava fundamentalmente através da escrita. Volto sentir o vazio sob os pés. Volto ter de estudar, volto a sentir-me insegura, a saber que alguém há rir com alguma construção pouco afortunada, com os erros... mesmo com a negação de quem fui. Não me hão acompanhar os grandes poderes; haverá que afrontar as críticas maldizentes de quem goza ao conhecer que alguém se bota deliberadamente nas margens. Haverá que lembrar Diógenes.
Após dar ao prelo vários centos de páginas escritas em normativa oficial, ou como quer que se chame a variedade que eu aprendi na escola, parece que as minhas reflexões puxam por mim para outro lado
Sabíamos antes que para insuflar-lhe vida à língua tínhamos de ser conscientes de tanto como a história nos roubou e afrontarmos com um esforço pessoal adicionado todos os problemas dessa transmissão geracional interrompida. Porque a língua nunca nos véu regalada como o ar que respiramos, nem requer pedigree rural como por vezes exigem os seus administradores. Tivemos de aprender a chuchá-la dos beiços que a conservam, a amassá-la como um pão com que nos nutrir cada dia, a expurgá-la de tantas falsas amizades como trazia. Se o figemos, antes como agora, é pola convição de que lutarmos pola língua com que a nossa tribo olhou desde antigo as cousas todas é tanto como assegurar-nos a dignidade, como reconstruirmos a identidade coletiva, em nome de quem venha detrás de nós. Lutarmos pola língua é lutarmos pola justiça e pola liberdade.
Como o Édipo sinto-me arrepiada por não poder continuar comodamente o meu caminho, como até agora. Mas a realidade é um fluxo cambiante, em perpétuo movimento. Não somos quem éramos há dez anos, nem um sequer: as nossas células morrem e nós, mesmo sem o desejar, mudamos. E estes tempos exigem novas estratégias. Ninguém imagina que a independência de Escócia ou de Catalunya se fagam em dous dias de rosas: todos os processos emancipatórios levantam-se sobre a dor. As cousas ainda pintam pior para a Galiza. A consciência de nação do nosso povo, sempre em rescaldo, precisa um fole que a agite e faga medrar as lapas. Berramos independência para decidirmos o nosso futuro. Berramos independência para assustarmos o poder.
Berramos independência para termos o direito a existir. Mas não berramos independência para sermos iguais que os demais, senão justamente para sermos diferentes
Berramos independência para termos o direito a existir. Mas não berramos independência para sermos iguais que os demais, senão justamente para sermos diferentes. Porque queremos uma Galiza livre do dente do capital, uma Galiza tão soberana, tão justa, tão alternativa, tão dissidente e tão criativa como seja possível. Igual que ao medrar temos que aceitar um corpo distinto ao que tínhamos antes, igual que o passo do tempo vai imprimindo mudanças nos nossos rostos, assim ver a nossa língua chantada contra toda a tradição espanholizante, a dos "bueno", a dos "pero", a das frases feitas tiradas das séries de televisão espanhola há refletir uma imagem distinta no espelho. Teremos erros, suportaremos burlas, mas na encruzilhada arrincamo-nos os olhos com a dor, como o Édipo, e empreendemos o único caminho possível: o da independência.