Victorino Verea Montero e os deuses do milho

Uma das fotos da série de Pasarelos, em Oroso, tiradas no ano 1968, do livro de Manuel Pazos

Recordar significa, etimologicamente, voltar passar polo coração, e recordamos com inusitada intensidade ao ver as imagens de Victorino Verea Montero, o fotógrafo de Cãs, porque –como aqueles guerreiros africanos de fusil à cadeira- Victorino não apontava desde o olho mas desde o coração. A sua câmara, uma Kodak Brownie Hawkeye de caixão enviada em 1957 polo seu irmão José de Honolulu até Oroso, tem o visor na parte superior, polo qual para usá-la tinha que colocar-se no peito, à altura do coração. Dessa perspetiva foi Victorino olhando as gentes da comarca de Ordes, deixando-nos umas fotografias nas quais recordamos mais do que tinhamos esquecido. “Vê-se só com o coração, o essencial é invisível para os olhos”, reza a cita de Antoine de Saint-Exupéry que abre Victorino Verea Montero.  Imaxes contra o esquecemento (1), o catálogo organizado por Manuel Pazos Gómez e saído à luz quase ao mesmo tempo que Galicia máxica. Reportaxe dun mundo esquecido (2), outro catálogo onde se recolhem as fotografias tiradas entre 1965 e 1968 polo investigador danês Gustav Henningsen na comarca de Ordes, cuja memória visual dá, assim, um grande salto neste final de 2015.

Disparos: Fotopoder e estética

“Hai que premer o disparador con firmeza, sen moverse”, explica Victorino. “Nalgunhas fotos en branco e negro sae xente sorprendida, mirando á cámara, como se lle tiveran medo ao disparo. Algúns rapaces era a primeira cámara que vían”. Com uma dessas divisões das que tanto gosta o ensaismo antropológico, poder-se-ia falar de povos fotofóbicos e de povos fotofílicos; os que fugiam do obturador atrapa-almas, suspeitoso de ser uma ferramenta do poder, e os que, como aqueles miúdos da Bahía que suplicavam a Lévi-Strauss por um retrato que jamais veriam (“Tire o retrato! Tire o retrato!” (3)), intuiam que neste novo mundo o acesso à existência social parecía passar polo acesso à imagen. Gustav Henningsen relata como no seu trabalho de campo em Ardemil foi visto, primeiro, como um polícia secreta, passando a usar as fotografias para ganar a confiança dos vizinhos, apresentando-os com retratos para poder enviar aos familiares emigrados (4). Por sua parte Victorino Verea, um homem com vocação de serviço à comunidade –estivo décadas à fronte da cooperativa agrária, e posteriormente foi concelheiro da Coalición Galega por assuntos de agricultura e educação-, converteu-se numa sorte de brigadista de auto-defesa fotográfica: “tirei fotos sen flash a encamados para pedir unha pensión, superviventes da guerra… Saquei moitas fotos para renovar o título de familia numerosa. Toda a familia tiña que ir a Santiago ou a Foto Ribeira, en Ordes… Non podían ir todos xuntos e acudían a min”, quem jamais cobrou um peso às famílias pobres. “Acudín a onde me chamaban andando, en bicicleta, en moto, en coche… Víñanme buscar á casa e despois traíanme de volta”. E entre as vicissitudes da fotofóbia e a fotofília, Victorino ia treinando o olho.

A sindrome Jeffries e a canaveira mágica

“Experimentaba, era un “pillo” coa cámara. Un día fotografei cun teleobxectivo a un veciño doutra aldea cando se estaba afeitando. Ensineille a foto e non dou creto ao que estaba vendo”; eis Victorino reconhecendo-se na sindrome Jeffries, atrapado na magia da olhada. Em Rear Window, o filme de Alfred Hitchcock, o fotógrafo L. B. Jeffries –encarnado por James Stewart- rompe uma perna. Encerrado no seu apartamento, começa a fascinar-se pola contemplação do pátio de vizinhos como uma interminável obra de teatro ou filme. “Sim, a personagem era um voyeur”, reconhece Hitchcock a François Truffaut, “mas não somos todos voyeurs?”. “Aposto a que nove de cada dez pessoas, se vem do outro lado do pátio uma muler que se despe antes de ir durmir ou, simplestemente, um homem que está a arrumar o seu quarto, não podem evitar olhar.

Poderiam olhar par aoutro lado e dizer-se: “Não me incumbe”, poderiam cerrar os postigos… Mas não! Não o vão fazer, ficarão aí a olhar (5)”. A técnica, a simples câmara como instrumento, situa-nos numa relação completamente diferente com o mundo (6); basta dar um catalejo de canaveira de milho a uma criança para que o entorno quotidiano se lhe revele como um mistério a descobrer e gozar. A fotografia como arte tem muito de olhada treinada para, de um modo artificial, recuperarmos capacidade primigénia de fascínio que tem a criança da canaveira, voltando a topar-nos com o excecional no quotidiano, desnormalizando o extraordinário de um sorriso, as cereijas ou o azul.

John Berger ou Susan Sontag recorrem a uma categoria quase transcendental do silêncio para dar conta deste salto da vida ordinária ao mundo extraordinário da arte (7). Pola contra Bourdieu, bem mais pedestre, aponta à scholé –esse tempo de ócio roubado à urgência do trabalho- como condição social de possibilidade de contemplação do mundo como arte (8). As histórias das artistas e inteletuais das classes populares estão cheias de vocações que nascem de uma scholé acidental (a perna rota e o neno labrego que guardando cama, lhe dão umas pinturas com as que se descobre pintor), carcerária (o encerro como universidade dos trabalhadores rebeldes) ou conquistada mui duramente ao escasso tempo de descanso das obrigas diárias (as epopeias de leituras e escolas nocturnas). Victorino Verea, que sempre trabalhou de lavrador, forjou o seu jeito próprio de fotografar nessa scholé fugaz que surgia quando pousava o sacho e pegava na câmara.

Os deuses do milho

Preocupado por não cair no erro populista, que atribuiria ao fotógrafo “popular” conceitos estéticos que maneja o crítico “culto” para canonizar a sua obra (9), Bourdieu sustém que a fotografia popular, com a que o campesinato solenizava os momentos culminantes da existência familiar, obedece a uns princípios coerentes, mas diametralmente opostos aos da “pureza” da estética kantiana (10). Quando Victorino fala do seu trabalho, é certo, recalca a sua perícia à hora de ocultar fisionomias pouco favorecidas (um mariz mui grande, umas pernas tortas), mas parece inegável que tinha um gosto estético próprio. Há uma série de fotografias que fai em 1968 em São Romão de Passarelos que são singelamente incríveis. No meio de uma leira botada a milho, ainda baixo, Victorino Verea retrata, famílias de labregos numa atmósfera crepuscular: homens com pássaros nas mãos, rapazes com pistolas de joguete que semelham saídos de um filme de Bogdanovich… Tudo envolto num halo de irrealidade. Quiçá porque são fotografias a cor, e a nossa memória tinge retrospetivamente aqueles anos de brancos e pretos. Quiçá porque os negativos se deterioraram com os anos adulterando a cor –acaso a luz de Roma, cittá aperta não se debe à película caducada que tivo que usar Rossellini, e não por isso deixa de maravilhar-nos? Tanto tem, essa série é magnífica. Parecera que Adward Hopper passara aquela tarde por Passarelos, deixando a luz exata para acolher aquelas personagens da mitología domêstica. Ainda bem que Victoriano Verea estava lá para contar-no-lo.

Noite Boa de 2015.

 

NOTAS

1. Victorino é apresentado como o Virxilio Viéitez da comarca de Ordes em: Manuel Pazos Gómez, Victorino Verea Montero. Imaxes contra o esquecemento, Oroso, Arquivo Histórico de Imaxes do Concello de Oroso, 2015. Para uma análise antropológica de Virxilio Viéitez, também apropriada a Verea Montero: Marcial Gondar, “Self-portrait of a villaje”, Photovision nº 29/2000 (1): 18-27.
2. VV.AA., Galicia máxica. Reportaxe dun mundo desaparecido. Gustav Henningsen. Fotografías etnográficas 1965-1968, Santiago de Compostela, Museo do Pobo Galego, 2015.
3. Claude Lévi-Strauss, Tristes tropiques, Paris, Plon, 1955, Cap. 3.
4. Gustav Henningsen, “Informe sobre tres años de investigaciones etnológicas en España”, Ethenica: Revista de antropología, 1971 (1): 61-89.
5. François Truffaut, El cine según Hitchcock, Madrid, Alianza, 1998.
6. Como por exemplo Jack Goody explica que sucedeu com a técnica da escritura (La domesticación del pensamiento salvaje, Madrid, Akal, 1985).
7. “O momento em que começa uma peça de música revela uma chave da natureza de toda a arte. A incongruencia desse momento, comparada com o silêncio não medido, não percebido, que o precedeu é o secreto da arte…”, John Berger, The Moment of Cubism, Nova Iorque, Pantheom, 1969, p. 31. “O silêncio é uma metáfora para uma visão limpa, que não interfere, apropriada para obras de arte que são impossíveis antes de serem olhadas (…)”, Susan Sontag, El poder de la palabra, Ovedo, Losada/Nobel, 2004, p. 56.
8. Pierre Bourdieu, Meditations pascaliennes, Paris, Éd. Du Sevil, 1997.
9. Sobre os riscos epistemológicos à hora de abordar a “cultura popular” a cartografia de obstáculos e falhos que apontaram Claude Grignon e Jean-Claude Passeron (Lo culto y lo popular, Madrid, La Piqueta, 1992), continua a ser da máxima utilidade.
10. Pierre Bourdieu, et al., Un art moyen. Essai sur les usages sociaux de la photographie, Paris, Éd. Du Minuit, 1965.

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