Visita guiada polo franquismo em Ordes

“Em grego, o que se opom à verdade é o
esquecimento. Verdade di-se aletheia e
esquecimento lethe. A nossa democracia
está edificada sobre umha mentira: sobre
um pacto de esquecimento”
Jesús Ibáñez

“… a maior traiçom: fazer o que é
justo por umha razom injusta”
T. S. Elliot

A Armada Espanhola e o Concelho de Ordes anunciárom a celebraçom, para o vindouro 10 de Setembro de 2017, de umha jura de bandeira espanhola para pessoal civil e missa solene para comemorarem o 80 aniversário do falecimento do Soldado Lois, herói local do franquismo. Felizmente, tal festejo foi imediatamente contestado por muitas vizinhas indignadas. Perante o esquecimento, o militarismo e a barbárie, a memória antifranquista. Aí vai umha proposta de roteiro reivindicativo e antifascista pola vila de Ordes, visitando o mausoléu ao Soldado Lois no cemitério do Pinheiro, a avenida Alfonso Senra, e a alameda do Soldado Lois com o monolito a ele e ao cruzeiro Baleares.

 

Avenida Alfonso Senra

Durante séculos umha pequena aldeia, Ordes, foi crescendo até vila com a construçom da estrada da Corunha a Santiago, que a atravessa e lhe dá a sua morfologia como artéria principal. Antigamente chamada Rua Real, desde há décadas chama-se Avenida Alfonso Senra, denominaçom que incompreensivelmente sobreviveu à eliminaçom de nomes franquistas do roteiro ordense. Dizia-se que, depois de todo, Alfonso Senra “só” fora um cacique da Iª Restauraçom, deputado polo distrito de Ordes com a ajuda de Saturnino Aller (1), cacique de Messia. Na realidade o “apenas” cacique Alfonso Senra foi um franquista destacado, um alto cargo da repressom. Este tudense, que já elogiava o general Sanjurjo como “caudillo” e “ejemplar único de la raza” após o seu fracassado intento de golpe de Estado contra a democracia em 1932, assumirá com o golpe fascista de 1936 um importante posto no Tribunal de Responsabilidades Políticas, assinando as condenas a algumhas das principais autoridades da República: em 1941 condena a Niceto Alcalá Zamora e, poucos meses antes, a Sánchez Albornoz (2). Cousas da ironia, em agosto de 1934 Alcalá Zamora passeava pola hoje chamada Avenida Alfonso Senra, sendo homenageado com umha actuaçom da banda de música de Ordes (3). Como alto representante da repressom franquista, Alfonso Senra reuniu-se em 1940 com o seu aliado alemám Paul Winzer, chefe da Gestapo em Madrid (4).

Ainda, os seus apelidos, os mesmos que dam nome à nossa rua principal, ficarám por sempre unidos a outros dous de barbárie: ao femicídio cometido polo seu filho contra a sua noiva, e ao vapor militar Alfonso Senra, fundado em Rianjo depois de que os fascistas assassinassem a tripulaçom e o convertessem em um campo de concentraçom para presos políticos.

 

Alameda do Soldado Lois e monolito ao Baleares

Situada à beira da Avenida Alfonso Senra, na alameda dedicada ao herói local do franquismo também há um monolito que lembra o cruzeiro Baleares. Há outro, mais grande, no parque de Sa Feixina, em Palma, que luita por derrubar a associaçom Memòria de Mallorca. Da participante desde colectivo e historiadora Dolors Marín tomarei muitos dados para explicar o significado do Baleares no imaginário franquista (5).

Esta embarcaçom construiu-se nos estaleiros de Ferrol, e foi botada em 19 de Abril de 1932 entre umha grande conflitividade social, pois com a botadura pairava sobre os obreiros a ameaça de despedimentos em massa. Assim as cousas, o Primeiro de Maio desse ano os trabalhadores debatêrom em assembleia as medidas a tomar, declarando finalmente a greve geral em toda a comarca nada mais começarem despedir gente. Com a sublevaçom fascista de 1936, especialmente violenta na popular e combativa comarca de Trasancos, os golpistas apoderam-se do cruzeiro acouraçado Baleares. A sua história em combate contra a marinha republicana é bem pouco épica: só entra em combate directo contra a frota democrata em quatro ocasions, funcionando o resto do tempo como umha máquina de extermínio da populaçom civil indefensa, bombardeando –segundo os informes do tenente do vaixell, Miguel Cervera- até trinta e três vezes os portos da costa republicana. O seu “heroico” percurso foi este:

Do 5 ao 9 de Fevereiro de 1937, o Baleares bombardeia Málaga a menos de mil metros da costa, matando mulheres e crianças que fugiam a Almeria pola ainda hoje conhecida como “Carretera de la Muerte”. Em 13 de Abril bombardeiam Castelló, e na manhá a seguir Tarragona. Do 20 de Abril ao 4 de maio atacam Maó, para continuar com o Grau de València no dia 26. Do 4 ao 8 de Junho toca-lhe a Palamós e Sant Feliu de Guixols. Na noite de Sam Joám atacam outra vez Palamós e Sant Feliu e Mataró. Durante o 26 ajudam a minar a costa da Tortosa, e no 3 de julho atacam Tarragona e Palemós, mais outra vez. Entre o 22 e o 31 de Julho participam do bloqueio naval de Santander, e em Dezembro atacam a costa alacantina, fazendo afundir três pesqueiros em València no dia 21. No 22 bombardeiam Dènia e Gandia durante umhas horas eternas. Três dias depois bombardeiam o bairro marítimo do Grau de Castelló, atacando à tarde Minarós. Junto com o Canarias e o Almirante Cervera atacam València na manhá do 23 de Janeiro de 1938 e outra vez do 17 ao 23 de Fevereiro, com ajuda da aviaçom. Essa será a sua última matança, antes de ser afundido em Cabo de Palos pola frota republicana em Março.

Semelhante folha de serviços consagrou definitivamente o Baleares como jóia da Marinha franquista (o próprio Juan de Borbón solicitara por carta a Franco poder servir nele), elevado a mártir após do seu afundimento em março de 1938, momento em que já se multiplicam as ruas, praças e monumentos que levam o seu nome. Decidido a aproveitar este símbolo, o governo franquista encarrega à RKO umha superproduçom cinematográfica sobre o Baleares, um projecto faraónico que manejava um orçamento de 700.000 pesetas da época num momento de absoluta penúria económica. Dirigiu o filme o fascista mexicano Enrique del Campo, que trabalhara como espiom e comandante do exército franquista. Na gravaçom nom se poupou em nada: centos de extras, fogo real, assessores militares e políticos, gravaçons no navio gêmeo Canarias, etcétera… A espectacular estreia anunciara-se para o 12 de Abril de 1941; um cento de salas de cinema de todo o Estado estavam preparadas, mas no dia antes o filme é censurado e todas as cópias eliminadas. A versom nom oficial di que no visionado prévio realizado polos generais Franco indignou-se ao encontrar demasiado sentimentalismo e demasiado pouco patriotismo num filme do que aguardava muito.

Toda esta contextualizaçom histórica do Baleares serve para entender o símbolo do Soldado Lois, pois sem o Balares, nada do acontecido ao rapaz ordense Manuel Lois, por mui heroico ou trágico que fosse, havia atingir a mais mínima relevância política.

Manuel Lois García, segundo o investigado por Manuel Paços Gomes (6) nasceu em 22 de maio de 1912 em Vila Verde, aldeia da paróquia de Ordes. A sua nai, Dolores Lois Villaverde, tivo que criar o neno sem nengumha ajuda do pai, quem se desentendera completamente das responsabilidades. Tendo só 13 anos, Lois fica orfo ao morrer-lhe a nai, e para sair adiante começa a trabalhar de jornaleiro em casas labregas como a de Rada ou a de Manecho de Cestanhos, onde conhece a que será a sua namorada, Consuelo Moure Silveira. Juntos terám umha nena, Josefina, mas morre-lhes ao pouco tempo. A gente que o conheceu di que Lois era um moço cheio de vitalidade e mui trabalhador, que tivera que deixar a escola pola necessidade económica. Também que de rapaz foi alvo de despreços classistas, como quando algumhas moças se negavam a bailar com ele nas festas por ser pobre e pequeneiro. Foi precisamente a sua curta estatura o que o livrou de realizar o serviço militar. Mas entom os fascistas sublevaram-se e todo muda.

Ainda que sempre se sinala o carácter forçoso do recrutamento de Lois, que em 14 de agosto de 1936 causou alta no Grupo de Infantaria de Marinha de Ferrol, haverá que esperar a que a documentaçom confirme o dado. Foi nesse dia que apareceu o corpo de um passeado em Ordes. No cruzeiro Baleares, onde ele embarca no 2 de Novembro, muitos dos tripulantes nom eran reemprazos obrigatórios senom voluntários da “Cruzada”, e para o caso maiorquino a historiadora Dolors Marín documentou como todos os tripulantes maiorquinos desaparecidos após o afundimento do barco eram voluntários. Seja como for, e à espera de confirmaçom, Lois passa a ocupar no acouraçado franquista o posto de telefonista ao pé do canhom nº 4. Do ambiente que se respirava abordo pode dar-nos umha ideia o hino composto pola própria tripulaçom, e que cantavam com a música do Grovenezza:

“Va el Crucero Baleares
tripulado por Falange
y en las costas de Levante
hace tronar sus cañones
destruyendo las guaridas
de los rojos forajidos
que abandonan al instante
Barcelona y Alicante.
Venga fuego con denuendo
y la Falange a luchar
y acabemos con la FAI
y la Generalitat”.

Entom chegou a chamada batalha de Cherchell contra a frota democrática, perante a costa argelina. A versom oficial di que nesse 9 de Setembro de 1937 Manuel Lois García sacrificou a sua vida para evitar que estoupasse umha caixa de projectis dentro do Baleares. Aí finava Manuel Lois e nascia o Soldado Lois, herói do Baleares.

 

Mausoleu do Soldado Lois

O corpo de Lois, longe de ser repatriado e devolto à sua namorada Consuelo (falta por investigar se a parelha do “herói” recebeu algumha idenizaçom por parte do Estado, é de imaginar que nom), foi expropriado polo novo Estado franquista e submetido a isso que Benedict Anderson chamou rituais do “nacionalismo funerário”, os processos mediante os quais o Estado capitaliza em benefício próprio a grande energia social que produze a dor e a morte. A Marcha Heroica da Infantaria de Marinha que recrutara a Lois é absolutamente clara: “No me llores madre mía / si en la lucha he de quedar / que es deber del español / ¡por la Patria! / su sangre derramar”. Desta maneira o corpo foi soterrado em Cádis no Panteom dos Marinhos Ilustres, e em maio de 1939 é condecorado ao mesmo tempo que Franco com a Medalha Naval e a Cruz Laureada de Sam Fernando.

O momento decisivo na construçom do Soldado Lois como artefacto simbólico do regime produziu-se em Junho de 1965, quando o Ministério de Marinho, a iniciativa da Ayudantía Nacional de los Grupos del Mar de la Falange, translada o corpo de Lois ao seu Ordes natal, aproveitando para organizarem o maior ato de propaganda militarista e patrioteira que se recorda na vila. Os actos, que se enquadram numha estratégia de “total subversom memorial” (7), pretendiam esmagar definitivamente a memória e identidade fortemente antifascistas do concelho, só derrotado no mui seródio ano de 1952, com a execuçom de Benigno Andrade García ‘Foucelhas’ e a detençom do último grupo guerrilheiro, o liderado por Juan Couto Sanjurjo.

Naquela bárbara jornada os militares franquistas desfilaram pola Avenida Alfonso Senra que, como todas as ruas principais de todas as vilas, é o cenário por excelência de representaçom do poder. Por esta rua já desfilaram os golpistas triunfantes (8), e por ela submetêrom a escárnio público, rapando-as e golpeando-as para obrigá-las a berrar “¡Arriba España!”, pessoas como Dolores Mandayo Montero, María del Río Mandayo, José Faya Fernández ou José Castro Castro. Pola contra, a propaganda antifascista da França libertada descrevera esta nossa rua, num relato idealizado, como o lugar onde o povo de Ordes desafiou a Ditadura após o assassinato de Manuel Ponte Pedreira, num acto de dignidade e resistência (10).

Mas o mais ignominioso desse dia foi a instalaçom de um mausoléu ao “Soldado Lois” no cemitério do Pinheiro, na parede norte, justo onde os mais velhos ainda lembram que eram fusilados os inimigos do franquismo e onde a tradiçom oral situa umha fossa comum ainda nom investigada (11). Justamente aí, justamente eles, foram pôr o corpo de Manuel Lois García como umha perversa lousa de desmemória e barbárie. Desde entom, e ininterrompidamente, festejam aí cada ano as autoridades municipais e o Tercio del Norte a homenagem ao Soldado Lois. Ainda, o cemitério de Pinheiro também era um ponto importante do imaginário antifranquista ordense: nele repousam os restos de um guerrilheiro morto em combate, ao que cada ano, sem que ninguém visse quem lhas colocava, apareciam flores de lembrança e reconhecimento (12). Compreende-se assim a “total subversom memorial” que supom a homenagem ao Soldado Lois.

 

Notas

Devido à precariedade material do lugar onde este texto foi redigido, algumhas referências estám incompletas.
1. Quem também tivo a sua “Avenida Saturnino Aller”, denominaçom trocada em 30 de Abril de 1036, polo governo municipal da Frente Popular, por “Rua Santiago Casares Quiroga”.
2. Veja-se o tríptico de Manuel Pazos Gómez, Alfonso Senra, Obradoiro da História de Ordes, e “Quem leva o nome das nossas ruas? Alfonso Senra”, blogue da A. C. Foucelhas, 13-4-2010.
3. M. Pazos Gómez, História da Banda de Ordes (1931-1934) [tríptico], Ordes, A. C. Obradoiro da História, 1998.
4. ABC, 3/12/1940.
5. Dolors Marín, “L’ amnèsia i el ‘Crucero Baleares’”, Directa, núm 395, do 3/11 ao 16/11 de 2015, pp. 18-19.
6. M. Pazos Gómez, Manuel Lois García, tríptico do Obradoiro da História.
7. Tomo a expressom do antropólogo Tiago Matos Silva, autor do excelente Pais de Abril, Filhos de Novembro. Memória do 25 de Abril, Lisboa, Dinossauro, 2002.
8. A fotografia vem na capa de M. Pazos Gómez, Achegamento à Segunda República em Ordes. Documentos, Obradoiro da História, Ordes, 2001.
9. Ibidem, p. 46.
10. O texto aparece reproduzido em X. Neira Vilas, Guerrilleiros, Ediciós do Castro; e em M. Pazos Gómez, Manuel Ponte Pedreira.
11. Veja-se Manuel Pazos Gómez, A Guerra Silenciada, Ordes, Obradoiro da História, 2011, pp. 65-67; e Manuel Astray Rivas, Síndrome del 36, Sada, Ediciós do Castro, 1992, pp. 115-116: “Aquí con la colaboración del grupo asesino, propio de la villa, era el escenario del crimen preferido por los criminales, pues aquí venían a matar cuidadanos de Betanzos, Carballo, de Curtis, etc / Los tiros fatídicos se disparaban en la pared norte del cementerio donde hoy precisamente se levanta el monumento a El Soldado Lois. De la muralla hacia adentro se cavaron varias fosas en las que tiraban los cadáveres, aun calientes y hasta se sospecha, que algún aun con vida”.
12. Lamento nom recordar exactamente se o guerrilheiro ao que lhe “apareciam” as flores era Manuel del Rio Botam, mas podem-se consultar ao respeito os dous livros referenciados na nota anterior.

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