Que galego e português são a mesma língua é uma evidência filológica historicamente enunciada por eruditos galegos e portugueses, mais tarde estudada pela Linguística Românica e, finalmente, formulada com clareza pelos filólogos Celso Cunha e Lindley Cintra em 1984 na sua Nova Gramática do português contemporâneo1. A atual divisão concetual em duas “línguas” é um fenómeno político moderno que responde a interesses diferentes do estudo da realidade linguística. O movimento reintegracionista tem lutado, especialmente desde a década de 70 até ao momento atual, pelo direito da população galega a que a nossa língua e cultura sejam respeitadas e promovidas como parte do mundo lusófono.
Esse fenómeno que concetualmente divide galego e português é produto da política peninsular: Primeiro, a criação unilateral do Estado espanhol em 1812, depois o centralismo canovista e a corrupção borbónica que dominou esse Estado e, nos últimos tempos, a longa noite de pedra franquista, onde o galego foi proibido, o progressivo afastamento de um Portugal independente e uma Transição espanhola antigaleguista. O galego-português é uma língua atrapada entre vários Estados. Na parte galega, o distanciamento político de Portugal favoreceu a máfia do localismo isolacionista que hoje vigora nas instituições e couta os nossos direitos, a nossa educação e o nosso desenvolvimento nacional.
Visto que este é um problema político, a solução terá de ser política. Agora que conhecemos, graças à bravura catalã, aonde é que levam os confrontos jurídicos sobre direitos fundamentais no Estado espanhol, a via política revela-se como a única frutífera para a mudança de paradigma linguístico. Neste sentido, em abril de 2019 produz-se um caso inédito na nossa história: Um partido político de âmbito estatal, na sua rama galega, En Común-Podemos, propõe no seu programa eleitoral a identidade galego-portuguesa e toma em consideração uma entidade que vem do movimento popular reintegracionista, a Academia Galega da Língua Portuguesa. Assim pode ler-se nos seus artigos 141 e 145, que reproduzimos a seguir:
141 ▶ Recoñecemento da lingua galega como lingua internacional. Declaración e definición da lingua galega como lingua internacional pola súa conexión co mundo da lusofonía e por compartir a mesma lingua cunha comunidade de falantes de máis de 200 millóns de persoas, permitindo a comunicación e interconexión sen necesidade de que exista mediación.
145 ▶ Creación dunha Casa da Lusofonía. Crear a casa da Lusofonía con sede en Galicia como forma de estimular as relacións de Galicia e o Estado español co conxunto de países que integran a lusofonía. Establecer contacto coas institucións precisas para a súa posta en marcha, ademais do Ministerio de Asuntos Exteriores e a AECID, a Xunta de Galicia e o ámbito municipal galego onde se determine a sede para constituir o consorcio para a súa posta en funcionamento. Implicar as institucións relevantes para garantir o desenvolvemento deste proxecto: Consello da Cultura Galega, Real Academia Galega, Academia Galega da Língua Portuguesa, Instituto Galego de Análise e Desenvolvemento Internacional (IGADI).
Naturalmente, depois de quase cinquenta anos de reintegracionismo ativo, estas medidas podem parecer insuficientes e mesmo mal formuladas. Por exemplo, uma voz distante adverte que a marca “Casa da Lusofonia” está atualmente registada, em prevenção da possível usurpação que noutra altura aconteceu com as Galescolas. Falta uma referência explícita à Lei Paz-Andrade. Outros pontos desse mesmo programa empregam a expressão “cooficial”, conceito fantasma que serve para ocultar a verdadeira situação subordinada das línguas do Estado diferentes do castelhano, e, por cima, nomeiam o Instituto Cervantes como referência para o galego sem ter em conta o Instituto Camões.
O programa do Podemos não é perfeito, possivelmente nem seja aproximado, de facto o partido não leva na prática a teoria que expressa no ponto 141. Mas, é um documento acordado, público e comprometedor para o partido. Seria bom que a necessidade não nos deixasse incapazes de perceber o que ele representa: 1) O reconhecimento político, a nível estatal, de todo o movimento reintegracionista, 2) O sucesso da via lusista, que hoje sofre o apartheid linguístico brutal por parte do governo da Xunta e do âmbito editorial e 3) A vontade política, partilhada por boa parte da população, de formar e desenvolver a cidadania galega dentro do espaço internacional lusófono.
Lembremos que este paulatino crescimento das propostas reintegracionistas nos programas eleitorais galegos tem começado nas eleições municipais de 2015, onde os grupos Compostela Aberta e Ourense en Común propuseram claramente a implementação nos seus concelhos da Lei Paz-Andrade, lei autonómica para o aproveitamento dos vínculos com a Lusofonia. Agora, quatro anos mais tarde, vemos que um partido de âmbito estatal propõe também claramente vários pontos nessa mesma linha. O que estão a fazer estes novos partidos é o lógico e o normal, o qual num país como o nosso pode chegar a ser insólito.
Um amigo insiste-me: “Isabel, pode ser oportunismo, não confies”. Só o facto de pensarmos o reintegracionismo como alvo de oportunismos já diz muito do valor político do nosso movimento. Ninguém vê oportunidade num fracasso. Portanto, se for oportunismo, será porque estamos a ter sucesso. Aqui entra no jogo o medo à traição tantas vezes experimentada. O pessoal não quer ser traído, não quer decepcionar-se e tira importância ao facto de ver reconhecido o alvo principal de todo o seu trabalho diário e vital, a identificação linguística de galego e português. Nesse sentido decepcionar-se antes de tempo é como uma vacina, assim as pessoas ficam tranquilas, sem esperar Ítacas, nessa estranha zona de conforto onde domina o apartheid.
Um outro sintoma do valor do reintegracionismo é a sua presença em todas as formações políticas galeguistas. É preciso esperar as Ítacas! O surpreendente é que nenhum dos outros partidos reflete no seu programa eleitoral os objetivos reintegracionistas. Eu, como defensora da língua comum, fico atónita do pouco caso que nos fazem essas formações, algumas delas nada novas e que arrastam uma longa história, mesmo académica, de desencontros com a Lusofonia. Solidarizo-me com as companheiras e companheiros que trabalham nesses âmbitos e veem as suas demandas sistematicamente ignoradas nos objetivos programáticos. É paradoxal que sejam aqueles considerados “afins à Espanha” os que reconheçam abertamente a identidade linguística galego-portuguesa. Mas, o que nos deve espantar de verdade é a falta de reconhecimento dos ditos partidos “soberanistas”.
O programa é um contrato social. Não temos que confiar nos partidos. Aliás, eles dão-nos numerosas provas de não podermos confiar neles. Temos é de trabalhar socialmente sempre. Depois, votar num programa. E, finalmente, exigir e vigiar o cumprimento desse contrato social. O incumprimento do programa é motivo de revogação fulminante, de crítica dura e perda de apoios. Se EC-P somente lançou essas propostas para pescar votos sem intenção de as cumprir, a réplica terá de ser contundente e o fracasso será deles. O que nós podemos fazer é estarmos aí, como sociedade civil, primeiro pressionando para que estas iniciativas existam em todos os partidos, depois exigindo o seu cumprimento uma vez no governo. Assim é como se avançou na aquisição de direitos humanos, sexuais e reprodutivos, assim é como funcionam as manifestações de pensionistas, e assim terá de ser com os direitos ambientais, nacionais e linguísticos. Perdemos os direitos se não os defendemos, e os direitos que ainda não conseguimos há que os reclamar com paciência, constância e inteligência. As Ítacas nunca chegam porque é preciso caminhar. E já sabemos que vamos devagar e sem atalhos.
A cada dia mais gente fora do âmbito reintegracionista sabe da potencialidade da língua portuguesa, os benefícios económicos, culturais e humanos que o seu conhecimento e emprego traz para as gentes galegas. Boa amostra disso foi a aprovação por unanimidade, em março de 2014, da vigorante Lei Paz-Andrade. Agora é preciso que esse reconhecimento tenha o espaço que merece nas instituições galegas, portuguesas e espanholas. Leiamos e comparemos os programas dos partidos para estas eleições estatais e que cada quem tire as próprias conclusões.
1A formulação inicial desta evidência linguística foi em 1971 pelo filólogo português Lindley Cintra no seu artigo “Nova proposta de classificação dos dialectos galego-portugueses”, publicado no Boletim de Filologia, 22, p. 81-116, disponível em http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/biblioteca/novaproposta.pdf.