A identidade pós-nacional galega

Mapa de Galicia de 1616 Dominio Público IGN

O objetivo deste texto é refletir sobre as miradas antropológicas da formação e reprodução das identidades culturais coletivas galegas em contextos de globalização contemporânea. E uma forma de o fazer é pensar nas mudanças, nas classificações, representações e identificações de ‘nós’ e dos outros, do ser de aqui e ser de ali, de ser local e de ser global, de ser do lugar e ser cosmopolita. Tenciono fazer uma breve genealogia do conceito de identidades e de identificações coletivas, apontando a incompletude permanente de toda identidade e as tensões e dialéticas entre diferentes níveis territoriais e espaciais de construção identitária glolocal: a intimidade cultural e a identidade local, a identidade regional, a identidade nacional, a identidade nacional-estatal, a identidade transnacional, a identidade universal e a identidade mundial. 

As culturas nacionais são uma fonte de identidade cultural, que por sua vez está baseada na perceção, organização e construção das diferenças com outros no reconhecimento de um passado, raízes e afinidades comuns no interior do grupo. Mas, em realidade, as nações são construções híbridas e mestiças do ponto de vista genético, social e cultural, algo que muitas vezes não agrada aos ultranacionalistas que pensam a nação como um constructo essencialista, puro, primordialista e absoluto. Por outro lado, face ao mito do caráter nacional coletivo (cf. Caro Baroja, 2004), as nações mostram-se na sua pluralidade, diversidade e plasticidade, o que as converte em sujeitos coletivos complexos em permanente construção e reinvenção.

A identidade cultural é um dos grandes problemas humanos, isto é, pensar quem somos? Ou como pensamos o que somos? Como somos? O que e como queremos ser? E nas últimas décadas tem-se produzido nas ciências sociais um giro ou mudança de visão sobre o assunto: da identidade às identidades, da identificação às identificações, do passado ao futuro, da monocultura às pluriculturas. Isto é, a identidade cultural é vista hoje não como algo monolítico e reificado, porém como algo plástico, estratégico, variável, contextual, situacional e complexo. Os tipos de respostas a estas questões podem ser de três tipos: 

Essencialista, substantivista, psicologista e primordialista, como uma essência, um caráter coletivo primordial e a priori da nossa existência. 

Cognitivista, enquanto visão do mundo, cosmovisão, mundividência e forma de cognição e perceção; 

Interacionista, relacional, processual, situacionista e sociohistórica, resultado de múltiplas relações entre agentes sociais.

A primeira resposta está hoje desnotada e muito criticada em ciências sociais, ainda assim, alguns partidos políticos e movimentos sociais continuam a raciocinar e manipular com essa lógica, muitas vezes com um apelo emocional, supremacista, redutor e fechado. A segunda e a terceira linhas de resposta são discutidas com rigor em ciências sociais, especialmente em antropologia, e representam uma visão mais construcionista e aberta das identidades. 

Neste pano de fundo, a identidade nacional é uma das identidades coletivas dos seres humanos. Ela pode ser adquirida por nascimento, herança, filiação, residência ou opção própria (escolha, adoção). A identidade nacional, ou melhor a identificação nacional, pois ele é mais um processo social do que uma coisa ou essência primordial psicologista, é expressa nas relações entre o indivíduo e o coletivo mediatizada pela língua, a história, o território e a cultura. Neste sentido, a nossa identidade pessoal é também nacional, não apenas pela pertença a uma nação como pela identificação com uma ou várias entidades nacionais (com ou sem Estado, porque a nação não coincide necessariamente com o Estado). E digo várias, porque os cidadãos identificam-se cada vez mais com várias nações e entidades supranacionais. Essa identificação complexa implica afetos, desafetos, sentimentos e emoções moldados pola cultura e pelas escolhas de adscrição e atribuição, mas também direitos e obrigações. 

A diferença do pensamento de alguns autores, consideramos que a identidade nacional não é contrária a uma articulação com uma identidade plurinacional e cosmopolita. Ela manifesta-se em diversas e múltiplas expressões sociais e culturais tais como: a) o nome próprio coletivo; b) uma narrativa ou relato histórico sobre a relação entre passado e presente; c) um território controlado, reivindicado ou imaginado; d) a língua; e) os mitos de origem partilhados. Ao mesmo tempo, a noção de identidade nacional tem evoluído e mudado ao longo do tempo. 

Na Idade Média a noção de nação era o lugar de nascimento de uma pessoa, que se integrava num coletivo diferenciado, com interações quotidianas humanas, algo delimitado e íntimo face ao exterior do grupo, e relativamente unificado no plano interior do intragrupo. Mais tarde, e especialmente a partir do século XIX (Romantismo e Nacionalismo), a nação foi equiparada a grupo étnico com partilha de atributos sociais e culturais e com fronteiras simbólicas. Sublinhar que os grupos étnicos são historicamente anteriores às nações, algo que convêm não descurar, de aí a diferença entre consciência étnica e consciência nacional, como acontece na Galiza, que os galegos têm em geral consciência étnica, mas poucos têm consciência nacional (Beramendi, 1997). A nação seria assim uma construção social coletiva, que desde uma visão orgânico-historicista teria língua, história, cultura, literatura própria e território bem com autonomia política (nação-Estado e outras fórmulas), sem ela ou com reivindicação desta (nação sem Estado). 

Mas hoje, o conceito de nação já não é tão orgânico-historicista nem segue a noção exclusivista e racial que, entre a primeira e a segunda guerra mundial, defendia a ideia de povo superior e de pureza da raça. Tampouco é hoje aquela noção resistencialista do nacionalismo de amor à pátria ou mátria, de ligação à terra própria, aos antepassados, à democracia e à liberdade do povo. Hoje as nações são questionadas pela globalização e as entidades supranacionais como a União Europeia, sem embargo elas subsistem enquanto formas de organização social e política das diferenças, enquanto sujeitos sociais coletivos. Que sentido tem hoje a nação e as suas identificações? Pode haver nação sem nacionalismo? São todos os nacionalismos iguais? São todos moralmente maus ou criticáveis? Os nacionalismos bons só são os estatais? 

As respostas às anteriores questões não são simples nem consensuais entre os académicos e os agentes sociais. A começar primeiro por esclarecer que o nacionalismo não é apenas uma simples doutrina política, e sim uma visão do mundo, um discurso sobre o mundo e um complexo de sentimentos e emoções ativadas. De acordo com o antropólogo José Manuel Sobral (2012) existiriam hoje dois olhares face ao nacionalismo, enquanto movimento social de afirmação da nação: 1) os que adotam a doutrina política da nação como divisão natural entre grupos humanos, segundo a qual a nação coincidiria com o Estado, seria pensada como uma ideologia; 2) os que pensam o nacionalismo como sentimento, cosmovisão e comportamento particularista com base no afeto, na defesa cultural, na exaltação do próprio, na autonomia e nos interesses próprios; nesta segunda mirada haveria que integrar o denominado “nacionalismo banal” (Billing, 2014), o popular, o do nosso quotidiano. 

Portanto, nesta segunda mirada, o nacionalismo seria uma manifestação da identidade nacional, que pode estar latente, adormecida, ser afirmativo ou violenta, e que se expressa no nosso quotidiano através dos médios, das ações sociais, dos símbolos e da linguagem corrente. Também segundo José Manuel Sobral (2012) existiriam diferentes tipos de nacionalismos. Em primeiro lugar devemos diferenciar entre nacionalismos emancipadores e nacionalismos totalitários. Os primeiros são defensores da liberdade de um grupo humano oprimido ou dominado por outros, como há tantos no mundo. Os segundos assumem uma crença de superioridade inata, racional e nacional de um determinado povo segundo o “ius sanguinis” (direito de sangue). 

Em segundo lugar é preciso distinguir os nacionalismos étnicos dos nacionalismos cívicos. Os nacionalismos étnicos privilegiam a existência de uma comunidade antiga de genealogia prestigiante e excluem os não descendentes dela. Eles associam-se ao “ius soli” (direito de solo) dos que nasceram nesse território. Os nacionalismos cívicos, dentro dos quais incluiria o galego, defendem os valores de participação na comunidade nacional de residência, independentemente da origem territorial ou étnico nacional, portanto são integradores e do nosso ponto de vista pós-nacionais, no sentido que Habermas (2007) da ao conceito. Estes nacionalismos cívicos, dos quais o nacionalismo galego faz parte de forma particularista e vanguardista, exigem o respeito pelos direitos e obrigações de cidadania, uma cidadania inclusiva e não exclusiva nem discriminatória de forma avulsa. 

Em terceiro lugar os nacionalismos também podem ser tradicionalistas e racistas, democráticos, libertadores e revolucionários, promovendo diferentes modos de ação social na construção diferencial da nação. Neste sentido, o nacionalismo contemporâneo galego é um nacionalismo democrático, diverso, divido e segmentado, política e socialmente, que tem ciclos de conexão e desconexão entre a cidadania e os partidos políticos nacionalistas galegos. O nacionalismo galego sofreu ao longo da sua história uma dialética entre o que eu denomino de culturalismo de tintes regionalistas, protagonizado por exemplo por Ramón Piñeiro, e o diferencialismo político promovido desde o espaço político de centro-esquerda pelo BNG e outros. 

Podemos afirmar que os cidadãos galegos são nacionalistas de barriga (seguindo a ideologia dos produtos caseiros) do que nacionalistas políticos organizados com uma clara consciência nacional, isto é, o nacionalismo galego é mais étnico do que nacional. Dito de outra forma, segundo os inquéritos do CIS (Centro de Investigações Sociológicas) duas terceiras partes dos galegos sentem-se tão galegos como espanhóis, e só um terço mais galegos do que espanhóis. Todavia, isso não se traduz politicamente num apoio massivo aos partidos políticos de cariz nacionalista galego. Os galegos têm já consciência de povo galego, mas não de nação galega com direitos políticos que possam exercer-se e conduzir a autonomia, federalismo, confederalismo, soberania ou independência. 

A identidade cultural nacional galega é uma construção social e histórica que apresenta um confronto diferencial com Castilha (nós/eles), mas inúmeras afinidades culturais com o Norte de Portugal (Sobral, 2012: 32). Dito de outra forma, a identidade galega não é, vai-se fazendo, sempre incompleta e em permanente construção sobre uma sólida base histórica de raiz. A identidade galega é multidimensional e parte de um complexo conjunto de níveis identitários: indivíduo, família, classe social, estatuto, idades, géneros, identidade local, identidade municipal, comarcal, provincial, nacional, estatal, europeia, transnacional. E enquanto identidade nacional, a Galiza é um constructo algo esquizofrénico nos seus mesmos nomes: Galiza, Galicia, Galícia, Le Galice… O próprio nome da nação é um terreno de luta político-ideológica pelas identidades, isto é, pela hegemonia na denominação da nação. Para além disso o confronto entre galego e espanhol criou imaginários, perceções cruzadas e representações estereotipadas projetadas desde o nacionalismo espanholista (Taibo, 2007; Núñez Seixas, 2010), que também existe e que nega a realidade plurinacional do Estado espanhol. 

A identidade nacional galega partilha um território administrativo hoje delimitado, mas que foi mutável ao longo da história e que integrou territórios vizinhos da atual Astúrias, Castela e Leão e Portugal, o que alguns chamaram de “Galiza irredenta”. Além de mais, a Galiza, enquanto território com uma identidade cultural complexa, reinventa-se em terrenos migratórios dos galegos, conformando uma identidade de certa forma pluriterritorial e alargadamente imaginada em contato com muitos outros aos quais enriquece e dos quais também se enriquece. Ela é também uma identidade de uma nação sem Estado, de uma “comunidade autonómica” de um Estado, o espanhol, que muitas vezes nega os direitos culturais internacionais de diversidade cultural, socioeconómica e linguística. E enquanto comunidade autonómica, apelidada depreciativamente por alguns como “região”, não no sentido geográfico, mas sim político, ela debate-se entre uma identidade atlântica e mediterrânea, uma identidade lusa e uma identidade hispana, uma identidade europeia e uma outra ibero-americana.

A identidade nacional galega é em nosso entender uma identidade borrosa (Lamas, 2004), com alguns complexos e estigmas, que experimentou uma mudança profunda nas últimas décadas de democracia, segundo a qual, a cultura tradicional popular deixou de ser o referente único da cultura nacional galega para hoje diversificar as suas fontes e referentes que conformam uma nova identidade cultural pós-nacional galega. Isto é, temos já uma nova cartografia cultural que nos obriga a repensar Galiza de uma outra forma e criar novas formas de convívio. 

 

AGRADECIMENTOS

Muito agradeço ao Prof. Dr. Edgar Bernardo (UTAD) a revisão do texto. 

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no Àmbito do projeto UIDB/04011/2020.

A elaboração do trabalho foi feito durante o desfrute de uma bolsa de licenção Sabática da FCT na Universidade de Santiago de Compostela, com o código: SFRH/BSAB/150447/2019.

“Este trabalho enquadra-se no projeto de I&D “Património cultural da Euro-região Galiza-Norte de Portugal: Valorização e Inovação. GEOARPAD” Programa operativo EP - INTERREG V A Espanha Portugal (POCTEP). Convocatória 1, Identificador 769- GEOARPAD (0358_GEOARPAD_1_E), financiado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) através do Programa de Cooperação INTERREG V-A Espanha-Portugal 2014-2020 (POCTEP)”

 

BIBLIOGRAFIA

-BERAMENDI, Justo G. (1997): “Conciencia étnica e consciências nacionais en Galicia”, en Pereira Menaut, Gerardo (coord.): O Feito Diferencial Galego na Historia. Santiago de Compostela: Museo do Pobo Galego, pp. 277-300. 

-BILLING, Michael (2014, or. 1995): Nacionalismo Banal. Madrid: Capitán Swing.

-CARO BAROJA, Julio (2004, or. 1970): El mito del carácter nacional. Madrid: Caro Raggio. 

-HABERMAS, Jurgen (2007, or. 1988): Identidades nacionales y postnacionales. Madrid: Tecnos. 

-LAMAS, Santiago (2004): Galicia borrosa. Santiago de Compostela. Seminário de Estudos Galegos. 

-NÚÑEZ SEIXAS, Xosé Manuel (2010): Patriotas y democratas. El discurso nacionalista español después de Franco. Madrid: Los Libros de la Catarata. 

-SOBRAL, José Manuel (2012): Portugal, Portugueses: Uma Identidade Nacional. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos. 

-TAIBO, Carlos (dir.) (2007): Nacionalismo español. Esencias, memoria e instituciones. Madrid: Los Libros de la Catarata. 

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