Numa entrevista recenté Alexandra Fernández, deputada por En Marea, sintetizava em poucas linhas um perfil sociológico na nova política mui pertinente para profundizar na análise: “existe o fenómeno geracional da juventude de clase média altamente formada sem expetativas laborais que, em boa medida, está a nutrir isso que se chama nova política. Que o componente de clase da nova política não acabe condicionando o seu futuro como politicamente popular ainda está por ver. Percebe-se em certos ámbitos uma aposta desmedida pola meritocracia, entendida esta em parámetros academicistas e fruto das expetativas de amplos setores do precariado. Corremos o risco às vezes de cair em discursos elitistas e, em última instancia classistas, que bebem dos princípios ideológicos do capitalismo em que fomos educados e educadas” (1). Fernández perfila mui bem a sociogénese dos protagonistas da nova política, que estão a deslocar na esquerda as velhas elites mas também, por baixo, uma outra figura em decadência: o militante.
O ocaso dos militantes
É comummente aceitado, desde Max Weber, que as posibilidades sociais da participação política limitam muito o caráter popular da mesma. “Só o socialista de origen burgués” – sinalava Robert Michels em 1911- “possui aquilo do que ainda carece por completo o proletariado: o tempo e os meios para efetuar a sua educação política, a liberdade física de transladar-se dum lugar a outro e a independência material sem a qual o exercício duma ação política, no sentido próprio e real da palavra, é inconcebível” (2). Assim, os dirigentes das organizaçons de esquerdas eran não poucas vezes notáveis que puderam gozar dessa skholé política e que já tinham um maior capital cultural.
Uma das grandes epopeias do movimento operário, descrita vivamente em livros magníficos como o Die Ästhetik des Widerstands de Peter Weiss, foi precisamente a construção de inumeráveis instituições autonómicas para a emancipação educataiva da clase trabalhadora, que arrincava horas de sono às suas fatigadas vidas para aprender. Naquela altura, antes da II Guerra Mundial, não é só que o movimento operário fosse capaz de proporcionar à sua gente um “capital cultural substitutivo”, senão que a própria cultura e saberes que elaboravam e reproduziam, eran altamente autónomos a respeito da cultura burguesa (pouco deviam Marx ou Gramsci à academia), e respondiam aos seus próprios intereses de classe. Isto era assim até tal ponto que, como indicaron Julia Varela e Fernando Álvarez-Uría, a imposição da escola pública supujo “cerrar o passo a modos de educação geridos polas próprias classes trabalhadoras”, eliminando assim a burguesia uns “programas de autoinstrução operária que atacavam a divisão e a organização capitalista do trabalho ao exigir uma formação polivalente e uma instrução unida ao trabalho e impartida polos mesmos trabalhadores com uma projeção política destinada à sua emancipação” (3).
Nessas escolas militantes adquiriam-se todo tipo de saberes teóricos e práticos (do marxismo à horticultura, de segurança laboral à higiene sexual…) e também se formavam os futuros quadros do movimento. A ausência desse capital cultural herdado que os burgueses incorporavam por ósmosse no mesmo ambiente em que se criavam, era compensado entre os operários por prodigiosas “hecatombes bibliotefágicas” – que diria Cortázar- e polo aproveitamento duma skholé mui pouco convencional: encarceramentos, convalecencias por accidentes ou as já referidas horas roubadas ao descanso. Nas décadas posteriores à II Guerra Mundial iniciou-se a expansão da ideologia meritocrática e a progressiva desvalorização do capital militante. Este processo, paralelo ao distanciamento face o mundo do trabalho, é descrito com dureza por Allan Popelard: “Lavada pola ideologia antitotalitária e a ‘cultura do narcisismo’, a figura do militante operário foi desacreditada pola pequena burguesia inteletual. Levantaram-se suspeitas sobre o compromisso militante, levado a uma forma de recrutamento, e sobre a formação, concebida como um formateio”. Ao mesmo tempo, “a cada vez mais frequente externalização acentua a dilapidação do savoir-faire militante. Às organizações e aos think tanks, a produção teórica; aos emprestadores de serviços externos, o manejo de tarefas técnicas (organização de mitins, produção e análise de inquéritos, colar cartazes…)” (4).
Arruinada a (relativa) autonomia cultural dos movimentos operários, os seus saberes específicos diluiam-se num mercado cultural unificado onde, de novo, o eletricista não tinha nada que dizer perante o joven licenciado, com um título debidamente sancionado polo Estado. Assim, a morta da figura do militante é também o signo da desaparição duma cultura popular contra-hegemónica. Já não há um “aforo” do capitalismo.
Uma juventude desclassada
A aparição de movimentos como o da Geração à Risca ou o 15-M, cristalizado posteriormente na ‘nova política’, guarda importantes semelhanças sociológicas com a crise que desembocou no Maio do 68; a mais importante a que Bourdieu explica assim: “o desajuste entre as aspirações que o sistema de ensino produz e as oportunidades que realmente ofrece, numa fase de inflação das titulações, é um facto estrutural que afeta, em diferentes graus segundo as singularidades das mesmas e segundo a origen social, ao conjunto dos membros duma geração escolar” (5), produzindo uma sorte de “desilusão coletiva” que vai muito mais lá do caso vivido individualmente e que dá em formas de luta insólitas, amiúde mal compreendidas polos sindicatos e partidos clásicos.
A resistência ao desclassamento desta geração traiçoada toma várias formas diferentes. Primeiro, “pode ocorrer que o possuidor de alguma titulação não tenha outro recurso, para defender o valor da sua, que o de recusar vender a sua força de trabalho ao preço qe se lhe ofrece; a opção de permanecer no desemprego revete então o sentido de uma greve (individual)” (6). Esta estratégia personifica-se nas figuras do eterno opositor; do eterno estudante que perante a devaluação dos títulos enceta uma acumulação interminável de mestrados ou pós-graduados que lhe permitam revalorizar-se; ou a do eterno becário que, a falta de trabalho estável “no seu”, pode mesmo chegar a “pagar por trabalhar” com tal de atualizar-se no mercado que prometia a sua titulação. Estes fenómenos fam-nos recordar que os habitus são teimudos, e que podem manter-se até muito depois da desaparição do campo ao que se ajustavam (7).
Outras estratégias procuram a reconversão desse capital escolar para que poda dar rendimento em ámbitos insólitos. Bourdieu atribuia então este tipo de estratégias aos filhos de classe dominante eliminados pola escola mas hoje, após décadas de acesso popular à universidade, são mais próprias das camadas que se caraterizam por terem mais capital cultural do que económico. Trata-se de todos esses projetos e profissões que conforman um novo setor serviços, que se distingue do convencional por incorporar como valor engadido um forte investimento cultural: “proprietários de lojas de objetos de “desenho”, fotógrafos, ou mesmo donos de restaurantes de “tabernas” à moda, “alfareiros” provençais e livreiros de vanguarda afanados em prolongar mais lá do tempo dos estudos o estado de indistinção entre o ócio e o trabalho, o militantismo e o “diletantismo”, caraterístico da condição de estudante, vendedores todos eles de bens ou serviços culturais, encontram umas profissões ambíguas à medida dos seus desejos, em que o sucesso depende polo menos tanto da distinção subtilmente desenvolta do vendedor e dos seus productos como da natureza e qualidade das mercadorias, um meio de obter o melhor rendemento para um capital cultural […]” (8). Nem que dizer que atualmente esas estratégias pouco têm de dilatentismo, e que longe de ser uma eleição estão impostas pola precariedade.
Junto com estas reconversões está a dum ingente número de pessoas tituladas nas “engenharias” sociais (educação e trabalho social, pedagogia, antropologia social, sociologia, filosofia, psicologia e, como não, politologia) que, perante a desaparição de postos de trabalho que antes fornecia principalmente o Estado, procuram uma saída profissional como autónomas ou criando pequenas empresas ou cooperativas que oferecem os seus serviços em âmbitos inéditos. Como consequência disto é evidente –basta com fixar-se nos anúncios publicitários que aparecem em revistas de ecologismo, feminismo ou das esquerdas em geral- que se está a dar um novo “deslizamento da ética à terapéutica”, como se deu antes com o boom do psicanálise, sexologia e demais; deslizamento que “mantém uma relação dialética com o desenvolvimento de um corpo de profissionais capazes de producir a necessidade do seu próprios produto, isto é, um mercado para os bens e serviços que estão preparados para oferecer” (9). Fenómeno tanto mais possível quanto que a geralização da instrução produziu, quando menos, umas classes dispostas a reconhecer – por boa disposição cultural- a legitimidade destes serviços, cousa que não era nem muito menos evidente.
Em resumo, a massificação da universidade provocou a rutura desse contrato social que prometia um trabalho acorde à titulação atingida, produzindo-se uma brutal “desilusão coletiva”. Se no Maio do 68 essa ameaça de desclassamento deu numa revolta que centrou os seus ataques “contra os dogmas fundamentais da orden pequeño-burguesa, “carreira”, “situação”, “promoção”, “progresso”” (10), no Estado espanhol do século XXI, com un espaço político do possível mui minguado (queda do bloco socialista, pensamento único, etcétera) e com a erosão da autonomia das culturas populares, a contestação é fundamentalmente meritocrática, o “que hay de lo mío” das classes médias ilustradas com pretensões benestaristas. Igualmente, o fracasso da mobilidade social ascendente prometida de una reconfiguração das profissões populares de sempre: o filho do tendeiro que estudou para profesor não pudo trabalhar de profesor, é a profissão de tendeiro a que se reconfigurou par dar rendemento a esse capital cultural adquirido que não encontrou saída ‘por riba’.
A politologização da política
Curiosamente, o mito fundacional da Podemos que deu Raimundo Viejo Viñas (11) recolhe todos os aspetos deste esboço sociológico da ‘nova política’: o movimento como resposta ao desajuste entre umas pessoas hiperqualificadas e um mercado laboral incapaz de cumprir as promesas do pacto social, e mais em concreto como estratégia de reconversão dum grupo de politólogos. Assim o dizia Viejo Viñas: “Os politólogos normalmente non nos metermos en política porque está moi mal visto. Pero o réxime ten tensado tanto a corda da precariedade que chega un día en que aparécenche tres expertos, Errejón, Monedero e Iglesias e dinche: “Ata aquí chegamos. Ides ver. Ímosvos facer unha campaña que non vistes na vida. Imos activar todos os recursos discursivos que sabemos que funcionana para poñervos contra a parede”. E isto é só o principio. Non sei como temos aguantado tanto tempo a esta panda de incompetentes. A min, noutra universidade catalá baixáronme un 68% o soldo nun ano. E o irónico disto é que cunha praza de catedrático e dous postos fixos na universidade, Podemos non existiría” (12).
Este relato condensa varios dos efeitos da passagem dos politólogos à política (como o trasfundo meritocrático (13)), que arrastam consigo as disposições, tendências e perceções associadas ao campo acadêmico, como a visão escolástica e inteletualocêntrica que, acreditanto na ilusão da omnipotência do pensamento (três peritos tumbando o poder a golpe de recursos discursivos) e confundindo as cousas da lógica com a lógica das cousas, planteja a luta política como um enfrontamento científico contra uma “panda de incompetentes” que, porém, vêm muita habilidade na defesa dos seus intereses de classe. Da mesma maneira, e independentemente da sua validez ou não, a “autonomia da política” preconizada por Chantal Mouffe dá a cobertura teórica perfeita para uma direção política fortemente centralizada em aras da ampla flexibilidade tática que debe te o seu liderado, entendido como um príncipe lacluniano ou politólogo-rei. Por se fosse pouco, revisa-se a história recente em base a estas premissas autojustificantes e, por exemplo, afirma-se que “a configuração da sociedade civil autoorganiada com capacidade de autogoverno, na Espanha profundamente desmobilizadora e individualizante do regime do 78, forma parte mais do mito e a reconstrução nostálgica do que nunca foi, que da constatação empírica […]” (14).
Para condenar a militância organizada para além dessa participação atomizada e fragmentária que já se deu em chamar “centralismo plebiscitário”, o núcleo dirigente da nova política usa muito o insulto político do “movimentismo”, mui en linha com a visão do boliviano Álvaro García Linera e o seu estatalismo. É nessa desputa entre “movimentistas” e dirigentes da “nova política” onde melhor se pode apreçar como a irrupção deste fenómeno não só deslocou as velhas direções burocráticas (caracterizadas porque, entanto que devem todo à organização, esta deixa para elas de ser um instrumento para tornar-se um fim em si mesmo) senão que, por baixo, também deu o toque de graça à figura do militante, que reage à defensiva muitas vezes. Todo fica numa “participação” intermitente, com uma relação mais bem de tipo consumidor, que tem todos aqueles traços descritos por Lipovetski na sua fenomenologia da política do pós-dever.
Coda: A Vergeistlichung da política terapéutica
O mundo social já está saturado das nossas próprias teorías sobre eles. Há tempo que as psicanalistas se queijam de já não só dão interpretações freudianas ou lacanianas, senão que se encontram com sintomas freudianas, lacanianas, etc. O mesmo sucede com a política, cheia de metalinguagens, “pós-debates” e “debates do debate”, que invadem tudo, como se a própria sociedade se tornasse laclauniana. Incapaz de suportar a “náusea da Vergeistlichung –a vertigem dum entorno sempre já explícito, formulado e povoado das nossas próprias imagens e propósitos-“ (15), Xavier Rubert de Ventós intentou conjurar o malestar escrevendo um livro demoledor. Robert de Ventós ajuda a verbalizar essa estranha sensação que também produz a politologização da política, a multiplicação da metadiscursos e o encerramento numa sorte de solipsismo político onde já nada pode ser vivido diretamente como “autêntico”.
Essa Vergeistlichung ataca amiúde: quando ao pegar nas atas dumas jornadas de formação da esquerda abertzale –que circulam polo cárcere- se pode ler como um dos ponentes se apresenta como “perito nos processos de criação da hegemonia política”, ou quando o autor dum livro da história da revolução nãoviolenta assegura na introdução que “este texto pretende ajudar a todas essas pessoas com vocação revolucionária, que se veem a si próprias como ativistas para transformar o mundo, a encontrar inspiração para fundamentar o repertório de técnicas de ação que se adapte melhor à sua luta popular” (16).
Por outra parte, militantes que conheceram nas próprias carnes as tiranias internas dos velhos partidos comunistas, laiam-se agora do desconcertó que lhes produzem as novas formas de controlo relacionadas com a profissionalização e terapeutização do ativismo. Se no velho paternalismo leninista a discrepancia se ridiculizava muitas vezes como se fosse uma vacilação própria do não iniciado na verdade do partido (“ainda não está preparado para dar o passo”) ou uma rémora ontológica (“sempre será um pequeño-burguês”), a nova terapia participativa organizará um “atelié” dirigido por “peritos” para reeducar a ignorante. O Comité Central tornou-se foucaultiano.
Cárcere de Villabona, 1 de outubro de 2016
NOTAS
1. Brais Fernández, “Entrevista a Alexandra Fernández: ‘No nos organizamos solo para tomar las instituciones, sino para el día después’”, Viento Sur, nº 145, abril 2016, p. 116.
2. Robert Michels, Zur Soziologie des Parteiwesens in der modernen Demokratie, Leipzig, Werner Klinkhardt, 1911.
3. Julia Varela e Fernando Álvarez-Uría, Arqueología de la escuela, Madrid, La Piqueta, 1991, p. 50.
4. Allan Popelard, “En la escuela de los militantes”, Le Monde diplomatique en español, nº 231, janeiro de 2015, p. 23.
5. Pierre Bourdieu, La distinción, Madrid, Taurus, 2015, p. 166.
6. Ibidem, p. 165.
7. Um tema clássico da literatura galega é o da fidalguia desclassada, e dentro dumas décadas bem poderia ser o duma geração com estudos mas sem emprego que, porém, não voltou a trabalhar as terras dos avôs.
8. Bourdieu, op. cit. P. 162.
9. Ibidem, p.
10. Ibidem, p.
11. Viejo Viñas, por certo, é autor duma das melhores diagnoses que se têm escrito sobre o colapso das vias mais anovadoras e interessantes do movimento galego, e que o independentismo deveria ler com muito proveito: “Notável, partido e movimento na Galiza”, em: Daniel Salgado & Manuel Barreiro (eds.), Entrementres. Ensaios para unha nova cultura política, Santiago de Compostela, Corsárias, 2014, pp. 129-141.
12. “Xamais haberá unha grande fronte de esquerdas con Podemos”, Raimundo Viejo Viñas entrevistado por Alfonso Andrade, La Voz de Galicia, 8 de junho de 2014.
13. Owen Jones desenhou em Chavs. The Demonization of the Working Class uma pequena genealogia desta ideologia, cujo nome provém do livro O triunfo da meritocracia, publicado em 1958 por Michael Young, autor do Manifesto Laborista de 1945 e importante inteletual do movimento operário britânico. Young tivo que explicar recentemente (“Down with meritocracy”, The Guardian, 29 de junho de 2011) que o que ele figera era “uma sátira concebida como uma advertência (que, sobre dizê-lo, não se tomou em conta) contra o que podia ocorrer-lhe à Grã Bretanha entre 1958 e a imaginada revolta final contra a meritocracia em 2003”. Uma das consignas clássicas do laboralismo era, precisamente, o progresso como classe, não como indivíduo. O triunfo da meritocracia espalha-se de forma descarnada até no “Parva que eu sou” de Deolinda, hino da Geração à Risca.
14. Jorge Lago, “¿Asaltar las instituciones?”, Viento Sur, nº 143, dezembro 2015, p. 83.
15. Xavier Rubert de Ventós, Crítica de la modernidad, Barcelona, Anagrama, 1998, p. 15.
16. A figura do politólogo-político está sempre a cair na falácia por excelência das ciências sociais, que consiste em pôr na consciência das pessoas estudadas o que o investigador debe ter na sua para compreendê-las.