Basicamente era português. A língua da Galiza na União Europeia

Cabina de persoal intérprete no Parlamento Europeo © Frederic Sierakowski / European Union 2017 / EP

No quadro das negociações para desbloquear a constituição de um novo governo em Madrid as línguas oficiais diferentes do castelhano estão a ser colocadas num novo patamar dentro do Reino da Espanha. Assim, ao que tudo indica, galegos, bascos e catalães já poderão falar as suas línguas no congresso espanhol no próximo dia 27 de setembro, dia de debate para constituição do novo governo.

Nesta mesma linha de atuação, e fruto dessas negociações, o governo espanhol em funções enviou recentemente uma petição à União Europeia solicitando que catalão, basco “e galego" passem a ser línguas oficiais da União Europeia.

Há pessoas que vêem com bons olhos tal medida, o que sem qualquer debate pode ser afirmado no caso do catalão ou do basco, mas dificilmente poderia ser afirmado sem reticências, ignorando tal debate, no caso da língua da Galiza.

Isto se deve a que o galego, idioma oficial e ainda hoje maciçamente falado pela maior parte da população na Galiza, tem uma relação de proximidade com o português comum. Uma proximidade em todo semelhante à relação que o valenciano tem com a língua catalã, o quebecois do Canadá com a língua francesa ou a língua do Tirol italiano com o alemão.

A ninguém escapa hoje que "o galego" (até no caso do galego administrativo atual que usa a ortografia espanhola) é um quase-português, ou para o considerar sob legislação europeia, uma das muitas "línguas idênticas ou semelhantes à dum outro estado membro". Ou em palavras da cabine portuguesa do Parlamento europeu em 2006:<<basicamente era português>>. Nada que não aconteça com as variedades de neerlandês, francês ou italiano. Daí que a atual proposta da agenda política catalã e madrilena tenha gerado já alguns artigos de leitura muito recomendáveis como o do professor Miguel Bastos ou o da professora Isabel Rei.

O português é oficial na UE desde 1986, tendo sido usado regularmente por eurodeputados galegos, representantes e entidades galegas com normalidade desde que em 1996 o primeiro eurodeputado galego José Posada decidiu falar no seu "português" no parlamento.

Em 2006 mais de 300 pessoas enviámos ao parlamento uma petição para evitarmos que o galego fosse considerado uma língua diferente da portuguesa na UE. Nada que um balear ou um valenciano não teriam feito em relação ao catalão e as suas variedades. A petição, além de muito debate nos corredores do Parlamento, gerou uma reportagem esclarecedora que ainda pode ser vista na internet.

Entre os elementos positivos assinalados por quem mostra entusiasmo por uma "oficialidade internacional" duma “nova língua diferente da portuguesa” estão: o maior reconhecimento da nossa comunidade nacional, as supostas mudanças legislativas que aconteceriam na Espanha com respeito às suas línguas oficiais (apenas oficiais em parte do território) ou à possibilidade de organismos galegos se comunicarem com a UE no atual galego administrativo (que usa a ortografia espanhola e não a comum portuguesa).

No entanto, é uma medida que colocaria de maneira isolada na UE um pedaço da nossa língua, agora só, e exclusivamente, "galega", no mesmo lugar que a língua de bretões, bascos ou falantes de gaélico irlandês; o que talvez tivesse algum sentido nesse cenário internacional se voltássemos no tempo a 1980 ou esquecêssemos todo o trabalho feito, as sinergias em andamento e os planos de futuro para o nosso território no espaço lusófono e no seio da CPLP. Sinergias que tiveram um ponto de não retorno na Galiza com os consensos gerados arredor da Lei Paz Andrade em 2014.

Ou talvez tivesse algum sentido se ignorássemos o funcionamento do próprio cenário no qual se propõe tal oficialidade, trasladando problemas ou assuntos internos (a administração autonómica galega manter uma ortografia divergente do português comum) a um espaço internacional (União Europeia); ou ainda se não soubéssemos nada da própria doutrina da UE a respeito das línguas ou do mesmo conceito de cidadania europeia.

Quanto a isto último basta lembrar que a UE não converte em oficial uma língua num estado concreto, mas em toda a UE. Por um lado, não é a UE mas cada um dos estados quem indica internamente, a efeitos das suas próprias normas estatais, se uma das 24 línguas da UE é oficial ou não no seu território. Por outro lado, qualquer cidadão da UE pode comunicar-se diretamente com a UE em qualquer das 24 línguas, independentemente do seu lugar de residência.

Ao analisarmos as teóricas vantagens do reconhecimento oficial na UE de uma suposta nova “língua galega separada da portuguesa” podemos comprovar que todas estão relacionadas com questões internas do estado espanhol e nas quais a UE se tem mostrado, em todo o caso e sem importar o estado, com a imparcialidade que cabe a uma União de estados soberanos.

A primeira vantagem, puramente política, fica fora de qualquer perspectiva europeia para converter uma língua em oficial. A UE não reconhece línguas visando favorecer reconhecimentos de tipo político às nações dos diferentes estados europeus.

Já o segundo dos argumentos sobre mudanças legislativas que, em catadupa, provocaria no Reino da Espanha não atende à verdade no que diz respeito à língua da Galiza. A UE poderia criar uma “nova língua” oficial e emitir Recomendações para os estados, mas a Espanha poderia continuar a manter o seu direito a exigir, como já faz, através de diretivas próprias, a presença do castelhano no “seu território” nas mais de 500 normas legais que o defendem em exclusiva no estado.

De igual modo, se a Espanha tivesse vontade, poderia fazer exatamente o contrário sem qualquer intervenção da UE: promover todas as suas línguas oficiais e não apenas uma. Ainda, uma terceira opção, não contemplada pelos defensores da medida: entidades galegas poderiam exigir hoje em dia e através do português oficial exatamente os mesmos novos direitos que “ganhariam”. Novamente, as mudanças, se as houvesse, passariam porque Madrid mudasse a suas próprias regras internas (e não qualquer movimento em Bruxelas).

A terceira das vantagens refere-se ao uso do galego administrativo na comunicação com a UE. Por costume (ou por regulamentos menores aos europeus) as câmaras e órgãos de governo galegos enviam hoje à UE toda a documentação em castelhano, dado ser obrigatória a comunicação com a UE numa língua oficial europeia.

Isso deveria fazer-nos analisar a adequação ou conveniência deste “costume administrativo” com a posição oficial que sobre a língua portuguesa vigora atualmente na Galiza. Também fazer-nos refletir sobre as competências linguísticas dos empregados públicos galegos1.Por último ajudar-nos a discernir qual o caminho mais simples para promover o aumento de documentação administrativa na língua da Galiza (ou numa idêntica ou semelhante) nos relacionamentos com a UE.

Há ainda quem traga à ribalta neste assunto que a publicação posterior da documentação galega no diário da UE costuma ser publicada em castelhano antes de ser disponibilizada em outras línguas (como o português) por ter sido assim entregue, o que poderia mudar com simples vontade política.

Mas afinal, qual é a posição oficial do governo galego sobre a especial relação da língua portuguesa com a Galiza?

Para entrarmos nesse assunto deveríamos fazer menção antes de mais à Exposição de motivos da Lei Paz Andrade:

<< A língua própria da Galiza, pelo feito de ser intercompreensível com o português outorga uma valiosa vantagem competitiva à cidadania galega (...). Por isto devemos dotar-nos de métodos formativos e comunicativos que nos permitam desenvolver-nos com naturalidade numa língua que nos é muito próxima e nos concede uma grande projeção internacional>>

É conveniente referir com especial destaque que na mesma lei, no seu artigo 3 refere:

<<De maneira especial, fomentar-se-á o conhecimento desta língua [português] por parte dos empregados públicos>>.

Ainda, na atual lei de ação exterior podemos encontrar no seu título III:

<<fazendo especial ênfase na promoção da língua, (...)e no estreitamento do vínculo com Portugal e com a comunidade lusófona de nações>>. Segundo o seu artigo Artigo 27:<< [o governo galego] porá em andamento um programa específico de fomento de intercâmbios e estadias temporárias de pessoal empregado público galego e português, em especial naquelas áreas em que se considere mais urgente o estabelecimento de um maior ou mais intenso nível de cooperação, coordenação ou, mesmo, integração de serviços públicos>>. 

Também numa alínea posterior do mesmo artigo o governo <<formulará iniciativas na entidade Galiza-Norte de Portugal, Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial para que esta impulsione a cooperação galaico-portuguesa no âmbito da lusofonia através de programas específicos, promovendo intercâmbios culturais, universitários e educativos entre agentes destes âmbitos portugueses, de outros países lusófonos e galegos.

Já no seu Capitulo V:

<<estimular-se-á preferentemente a atracção de estudantes de países da lusofonia “ e no 28 anuncia: <<criar-se-á um Observatório da Lusofonia>> para <<assessorar o Governo, formular planos de acção e programar actividades de conhecimento, intercâmbio e programação.>>

Há mais, muito mais, dado que é uma lei em que a ligação ao português no âmbito internacional é colocada como um dos fundamentos das relações exteriores.

Poder-se-ia argumentar que estas leis são proclamações de boas intenções, pensadas para ação exterior ou sem incidência na vida real das pessoas, não fosse porque têm sido acompanhadas durante estes anos dum crescimento do papel da língua portuguesa nas escolas e na agenda cultural galega.

Este tratamento especial da língua de Camões nas escolas galegas não se encontra apenas no crescimento da própria oferta da disciplina de português, com um número em todo o ensino próximo a 6.000 alunos de português no último período escolar, mas também noutras matérias. Por sinal, e em destaque para o assunto que estamos a tratar, há elementos a salientar na cadeira de "língua galega", obrigatória para 225.000 discentes no periodo 2023/2024.

Nesse sentido é conveniente vermos o que dizem os materiais didáticos do governo para a disciplina “Língua galega” de 3º ESO (9º ano) disponíveis na web de educação do governo, em relação à língua portuguesa2: <<o galego tamén abre [as portas] para todos os territorios da lusofonía, xa que nos permite comunicarnos con máis de 200 millóns de habitantes dos diferentes continentes. O portugués é a quinta lingua máis falada arredor do planeta.>>

Ou na grelha dos elementos que devem ser analisados pelo docente para aferir a progressão dessa nível avalia-se se:

<<[O discente] incorpora á súa práctica cotiá os principais recursos da rede en portugués (buscadores, enciclopedias e portais de noticias)>>3

<<[o discente] coñece os territorios que forman parte da comunidade lusófona e sabe describir a súa importancia dentro das linguas do mundo no século XXI>>.

Ou em 1º de bacharelato (11º ano) para poder progredir observa-se se: [O discente] ”determina o papel da lusofonía nas linguas do mundo no século XXI e a súa importancia cultural e económica desde a perspectiva galega4

Deixo a critério de qualquer leitor português se a dificuldade ortográfica destes trechos que citei é tanta que impeça a compreensão5.

Galego ou português? Questão de equilíbrios

O equilíbrio por vezes difícil sobre o assunto linguístico na Galiza surge da tentativa de conciliar uma importante e marcada identidade local com a vontade unânime de aproveitar a vantagem do português comum na esfera internacional. Afinal os galegos todos, governo autonómico incluído, movimentamo-nos em certas ambiguidades que nos permitem avançar socialmente ao focarmo-nos no essencial deixando de lado o secundário.

Hoje o galego é matéria obrigatória nas escolas. O português pode vir a ter, muito em breve, um lugar prioritário no ensino (ao mesmo nível do inglês).

A prioridade internacional do governo é estarmos na Lusofonia e trabalharmos para o exterior graças à existência do mundo de língua portuguesa.

Cabe perguntar-se então, neste caso, se as agendas de Madrid ou Barcelona (nem sempre) coincidem com as prioridades e interesses galegos.

Também, se será boa ideia para governos e entidades galegas deixar de defendermos os interesses próprios ou desatender os cenários em que estamos chamados a contribuir por estes não coincidirem com uma visão reducionista da língua (ou até com os interesses e visão das línguas doutros povos da península).

Porque aquilo que falavam os galegos no Parlamento da UE até ontem6, basicamente, era português.

 

Notas

1 https://www.xunta.gal/dog/Publicados/2018/20180914/AnuncioO150-060918-0001_pt.html

2https://www.edu.xunta.gal/portal/sites/web/files/ac_modulo_3_unidade_9_gal.pdf (pg39)

3https://www.edu.xunta.gal/portal/sites/web/files/lcao_lgl_3.pdf

4https://www.edu.xunta.gal/portal/guiadalomce/bacharelato/materias/lca/lgl

5 Destaco ainda que as referências são da disciplina “língua galega” com conteúdos especificamente autonómicos, não da sua parceira “português 1a língua” ou “português 2a língua” com conteúdos iguais para todo o estado em todo semelhantes aos do inglês ou francês.

6 https://youtu.be/3QPPxuoyxvU?feature=shared

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