Há uns anos, vendimando em São Martinho da Lage, o cabo da casa amenizou-nos o trabalho contando estórias de Figueira Valverde. No folclore local o diretor do Museu da Ponte Vedra, ex quadro do Partido Galeguista e alcalde franquista (1), aparecia como uma espécie de homem do saco, ladrão do patrimonio artístico das paróquias: “O Filgueira vinha-che ver o cruzeiro e à noite já vinha uma furgoneta para levá-lo não se sabe aonde. Havia que ter tino de agachar-lhe as cousas”. O joven Filgueira já estivera em 1932 envolto no saqueio do milário de Santiaguinho de Mós, que provocara uns disturbios semelhantes aos da expropriação do baldaquino de Urseira –relatados por Blanco Amor em Xente ao lonxe- ou a dos pelouros de Nozelo da Pena, em São Pedro do Viso, Sarreaus. Nesta última paróquia apareceram três tabuleiros com inscrições vinculadas à Civitas Limicorum, aginha baptiçadas como “os pelouros” polo povo, e resignificadas como protetores atmosféricos:
“Tal vez el encarecimiento con el que el Señor Bugalhal (o pároco) recomendaría a sus feligreses el mayor respeto a tan preciosos monumentos, fuese parte a que aquellos ignorantes labriegos diesen a creer a pie juntillas que las tales piedras tenían la maravillosa virtud de librarles de todo suerte de granizadas o pedriscos. Lo cierto es que tan hondas raíces echó en todos ellos semejante creencia que llevaban muy mal que los extraños se acercasen a ellas, ni siquiera a copiarlas” (2).
O tom colonial da narração não pode ocultar o certo: que a comunidade protegia um patrimonio que consideraba seu, e que tinha significado para ela, de uma expropriação letrada de qual com toda razão suspeitavam. Em efeito, em 10 de novembro de 1897 as pedras, continua a relatar o presbítero Marcelo Macías García:
“fueron donadas al Museo Arqueológico Provincial (…) por el Señor Obispo de la Diócesis Don Pascual Carrascosa Gabaldón a ruego de la Comisión de Monumentos que designó a él, a Arturo Vázquez y a Benito F. Alonso para que fuesen a recogerles y por más que el digno abad de Nocelo, Don Francisco Rodríguez Gómez, suponía que podíamos verificarlo sin el menor riesgo por haber combatido él en sus predicaciones tan añeja superstición, creímos conveniente por lo que pudiera ocurrir que algunos números de la Guardia Civil de Xinzo estuvieran en Nocelo a nuestra llegada. Gracias a ellos no salimos fuxindo cara a Xinzo, o quedamos esmagados debaixo das pedras como de otra suerte hubiera sucedido al decir de los nocelenses que, noticiosos del objeto de nuestro viaje, invadieron el atrio en son de protesta, mientras las mujeres voceaban desaforadamente desde las bocacalles del pueblo, y un mozalbete, tratando de burlar la vigilancia de los guardias se encaramaba a la torre para tocar a rebato (3)”.
A expedição de saqueio, que se encontra com uma resistência paroquial que se organiza ao jeito tradicional, é narrada como uma cerril oposição de gentes incultas à “doação” dos pelouros, invertindo a realidade com uma retórica típicamente colonial (4). Mas quando intentam consumar o roubo os armados topam-se com um boicote solidário: ninguém, nem sequer das paróquias vizinhas, quer ceder um carro para transportar os tabuleiros romanos à vila.
“Para salir del paso no había otro recurso que la fuerza. Los guardias trajeron del campo una pareja de bueyes; embargaron un carro: cargáronse en él las piedras, y obligando a un viejecito que lo guiara, salimos casi al oscurecer en dirección a Ginzo (5)”.
Em Herdeiros pola forza. Patrimonio cultural, poder e sociedade na Galicia do século XXI, Manuel Gago e Xurxo Ayán desconstroem a golpe de ironia esta arqueologia colonial e paternalista, que envolta num caduco positivismo funciona como um saber-poder de “expertos en confiscar materiais, fosilizar o pasado e converter espazos vivos en ruínas arqueolóxicas”, à vez que revalorizam uma tradição subterránea de arqueologia comunitária que chega aos nossos días. Alías, num contexto de conflito nacional o poder conjura constantemente os aspectos menos compatíveis da história com a sua narrativa nacional, o que origina conflitos como o do Museu de História da Cidade da Cultura, que ponhem de relevo o trabalho político da ciencia arqueológica (7). Veja-se o que sucedeu no jazimento de Iruña-Veseia, quando em 2005 aparecerom umas peças com inscrições supostamente em êuscaro datadas no século III. Em vez de proceder ao estudo das inscrições a Deputação Foral de Álava resolveu em 2008, numa decisão por tanto política, que eram falsas, expulsou os arqueólogos do jazimento que solicitaron análises científicas (recusadas por desnecessárias “porque as inscrições são falsas”) e em 2009 apresentou nos tribunais uma querela contra eles. Ao passar a direção do jazimento a um professor de arqueologia da UPV, contratado pola Deputação, o primeiro que se fijo foi retirar 6.000 m3 de terra com uma excavadora (8).
Em Palestina, com a ocupação sionista, a “arqueologia bíblica” (9), como lhe chama Keith W. Whitelam, atingiu um poder narrativo excecional, no quadro do processo de construção nacional de Israel. Nadia Abu el-Haj (10) desconstruiu minuciosamente esta arqueologia colonial que sistematicamente oculta/relança os aspectos da história que lhe interessam no seu relato, levando assim mesmo a resistência palestiniana a fazer uma arqueologia contra-hegemónica (11) que impida o apagamento na história das culturas não judías da região.
O acontecido em Susya, aldeia palestiniana do Sul de Cisjordánia ocupada tras a Guerra dos Seis Dias, é um exemplo brutal. Em 1983 começaram a construir-se os assentamentos sionistas, deslocando a população autóctone, que sofreu sucessivos despejos ao longo de toda a década. Fogem então a umas covas, que também são destruidas polo exército de Israel com o pretexto de umas excavações que visam criar um parque arqueológico sobre a era talmúdica; em 1986 apareceram os restos de uma sinagoga do século VI, e o governo projeta a atração turística “Susya: povo judeu antigo”. As famílias árabes voltam ser expulsas em 1990, quandos as desterram em camiões até Zif dunction. Muitas regressarão às suas moradas, sem nada mais que uma austera vida de pastores. Em 1991, 1997 e 2001 repitem-se os despejos, derrube de moradas, abatimento de árvores e matanças de gado. Refugiam-se em Yalta e apelam aos tribunais, conseguindo voltar provisoriamente. Não podem usar a água de trazida que atravessa a sua aldeia, nem pisar a estrada dos israelianos, nem mandar as crianças à escola sem proteção, nem obter outra energia elétrica que não seja a dos seus próprios painéis fotovoltaicos… No passado 5 de maio Noam Solberg, juiz do Tribunal Superior de Justiça de Israel, resolveu autorizar o derribo destas cabanas alegando razões arqueológicas.
NOTAS
1. “Eiquí o Filgueiriña parece que non é digno de ser galeguista. Como non trunfamos! Eu avísovos para que andedes con tento con este rapaz”, advertia Castelao a Otero Pedrayo numa carta de 25-x-1935. Castelao, Obras, Vigo, Galaxia, 2000, vol. 6, pp. 217-219.
2. Marcelo Macías García, Civitas Limicorum, Ourense, Imprenta A. Otero, 1904, p. 24.
3. Ibidem.
4. A contraposição entre a turba anónima e as autoridades com tratamento de respeito (“Señor Obispo de la Diócesis Don…”), o apelo à ignorância dos indígenas, que devem ser protegidos –mesmo com as armas- de si próprios, a incluso típica dos efeitos de vericidade da etnografia de expressões nativas (“esmagados, debaixo das pedras”), etc…
5. M. Macías García, op. cit.
6. Manuel Gago e Xurxo Ayán, Herdeiros pola forza. Patrimonio cultural, poder e sociedade na Galicia do século XXI, Milhadoiro, 2.0. Editora, 2012.
7. Não sóa arqueologia funcionou como um saber-poder na Galiza, eis a paleografia medieval da historiografia castelhanista ou a filología histórica das instituições autonómicas.
8. Gontzal Fontaneda (SOS Iruña-Veleia), “¿Euskadi en contra del euskara?”, Gara, 7-VII-2015.
9. Keith W. Whitelam, The invention of Ancient Israel: the silencing of palestinian history, Londres, Routledge, 1996.
10. Nadia Abu el-Haj, Facts on the groud: archeological practice and territorial self-farhioning in isreli society, Chicago, University of Chicago Press, 2002.
11. Edward W. Said, “Freud e o non europeo”, trad. de Manuel Outeiriño, A Trabe de Ouro, nº 100, outubro-novembro-dezembro 2014, pp. 439-455; sobre arqueologia pp. 451-453.