Coreografia do massacre: entre a imagem da resistência palestiniana e o espetáculo da pós-política como Euro-visão

Protesta contra a participación de Israel en Eurovisión, nunha imaxe de arquivo (2019) CC-BY-SA Steve Eason

Duas imagens se sobrepõem com força simbólica: de um lado, o documentário Sem Chão (No Other Land), construído a partir da urgência da sobrevivência e da resistência; do outro, o palco colorido e ensaiado do Festival Eurovisão da Canção, onde o Estado de Israel é tratado como mais um entre os supostos representantes da diversidade cultural europeia

Vivemos um tempo saturado de imagens e vazio de consequências. Não se trata de uma mera apatia moral ou de uma distração generalizada, mas da consolidação de um regime estético-político que transforma a barbárie em ruído de fundo e a indignação em gestualidade inócua. Nesse contexto, duas imagens se sobrepõem com força simbólica: de um lado, o documentário Sem Chão (No Other Land), construído a partir da urgência da sobrevivência e da resistência; do outro, o palco colorido e ensaiado do Festival Eurovisão da Canção, onde o Estado de Israel é tratado como mais um entre os supostos representantes da diversidade cultural europeia. Ambas as imagens participam da esfera do visível, mas com funções contrapostas: enquanto uma tenta impedir o apagamento de um povo, a outra oferece um álibi estético à continuidade da sua destruição.

Sem Chão não é um documentário convencional. Realizado por Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor, o filme narra, de dentro para fora, a violência sistemática exercida sobre os palestinianos de Masafer Yatta, na Cisjordânia. A câmara está colada aos corpos, aos muros demolidos, às valas escavadas, aos olhares que persistem em meio aos escombros. Nada é filtrado para comover o Ocidente: não se busca piedade, mas reconhecimento. E esse reconhecimento, como alerta Ariella Azoulay em The Civil Contract of Photography, deveria implicar um contrato cívico entre quem vê e quem é visto. Contudo, no caso palestiniano, esse contrato é continuamente violado. Os palestinianos surgem nas imagens como ameaça, não como cidadania em espera. A imagem não os protege; frequentemente, os expõe a engolir sapos e a novas formas de violência. Sem chão recusa essa lógica. A sua política é a do não apagamento. A câmara de Ballal, Adra e Szor não busca capturar a vítima ideal, mas insistir na presença de quem foi condenado à invisibilidade deliberada. Ao filmarem a destruição das casas e a repetição burocrática da humilhação, os realizadores palestinianos desafiam não apenas o Estado de Israel, mas a ordem global que define o que merece ser visto. Assim,  os ”avisos" antes de bombardeios (em Gaza) ou "ordens de demolição assinadas por juízes" (na Cisjordânia) são exemplos do que Weizman chama de "violência administrativa" – uma burocracia que tenta legitimar o crime. No documentário Sem Chão, vemos esse mecanismo em ação: colonos invadem terras palestinas com proteção judicial (a lei israelense retroativamente legaliza roubos); o exército "regulamenta" a expulsão de famílias em Susiya, vestindo-a de "cumprimento da ordem". Quando um soldado israelense diz à câmera “estamos apenas seguindo procedimentos”, ele ecoa o que Weizman denuncia – o mal se banaliza sob o verniz da legalidade. O lançamento de folhetos de guerra a exortar os habitantes de Gaza a deslocarem-se para  sul, a Wadi Gaza, um riacho parado sem água, não foi um feito contingente. Como demonstra a análise espacial da Forensic Architecture (do que  Weizman é fundador), a destruição em Gaza segue padrões de destruição sistêmica,  padrões geométricos consistentes com estratégias de limpeza territorial, não apenas com operações militares convencionais. Quer dizer, cada prova material contradiz alegações de "alvos militares precisos": 73% dos ataques a hospitais ocorreram após coordenação prévia com a ONU; 40% das áreas agrícolas foram inutilizáveis por bombardeio e contaminação. Os ataques a hospitais e as deslocações forçadas, a restrição da ajuda humanitária e a destruição da agricultura, cada um destes actos multiplica os efeitos dos outros mostrando uma campanha concebida em que, através de diferentes momentos e lugares em Gaza, a relação de cada ação é evidente.

Jacques Rancière lembra que a política é a reconfiguração do sensível, ou seja, a disputa sobre o que pode ser dito, visto e escutado. O que Sem Chão faz é introduzir um excesso no campo do visível: mostra aquilo que o mundo insiste em esconder. Mas o seu poder não está apenas no que revela, mas no modo como o revela. Não se trata de uma vitimologia ilustrada, mas de um posicionamento. Não é a estetização da dor, mas a denuncia do projeto colonial sionista como capitalismo racializado. E por isso é perigoso. Os colonatos israelenses, erguidos com financiamento transnacional (de bancos europeus ao capital especulativo da BlackRock), funcionam como enclaves do capital global. São polos de acumulação cercados por muros e checkpoints, onde o apartheid opera como modo de produção — segregação espacial como engrenagem econômica, como já analisou David Harvey. A forma colonial sionista integra-se perfeitamente na lógica cultural europeia contemporânea: seletiva, emocional, despolitizada. A Europa que colonizou o mundo e silenciou as suas vítimas reconfigura hoje o seu imaginário colonial através da indústria cultural. A Euro-visão funciona como zona de conforto para essa memória imperial. Ao premiar Israel, reafirma-se o pacto euroatlântico: quem defende a ordem neoliberal e mantém a retórica da segurança recebe palmas - mesmo que pratique apartheid. Uma mise-en-scène decadente daquilo que poderíamos chamar de Euro-visão — isto é, a visão europeia do mundo, herdeira do olhar colonial, que continua a separar civilizados de bárbaros, vítimas legítimas de ameaças difusas. Trata-se de uma plataforma coreografada para a legitimação de Estados colonialistas sob a máscara da diversidade e do entretenimento.

O contraste com o ambiente da Eurovisão é total mas é a sua excrescência. Não se segue a Eurovisão desde que ela é a preto e branco. Se eu quiser ver espectáculos a cores, vejo-os ao vivo - pede-se à televisão o que a realidade não oferece, ou seja, o preto e branco. O festival, financiado por consórcios de comunicação e blindado por convenções diplomáticas, é apresentado como uma celebração cultural apolítica  A Eurovisão nunca foi apenas sobre música, mas sobre guerras e conflitos, sobre quem apoiar e quem não apoiar, sobre interesses geopolíticos ou económicos. A Eurovisão é hoje uma das formas mais acabadas dessa lógica: permite-se cantar contra a guerra, desde que não se diga quem a promove; permite-se defender minorias, desde que não se denuncie o colonialismo que as oprime. Uma forma condensada da lógica pós-política: um evento em que a política é permitida como performance, desde que não interfira nos interesses do capital, da guerra ou da diplomacia ocidental. Pode-se celebrar minorias sexuais, defender causas ecológicas ou insinuar resistência simbólica - mas nunca se pode nomear a ocupação, a colonização, o apartheid. Quer a "gestão humanitária" do genocídio: bombas com aviso prévio ("evacuem para o sul") transformam massacre em rotina burocrática, quer inversão perversa: Israel apresenta-se como vítima ("direito à autodefesa") enquanto  sistema tecnocrático de aniquilação regulada (como campos de concentração a céu aberto, como analisa Nestor Kohan) e cobertura da CNN sobre Gaza lembra The Truman Show - um reality show onde o sofrimento palestino é editado para não perturbar o café da manhã ocidental.

Como bem observa Žižek, a  "pós-política" neoliberal  opera em Gaza com precisão obscena, onde a política não desapareceu, mas foi estetizada, transformada em performance emocional, descolada de efeitos reais. É a coreografia da pós-política: uma estética da decisão sem consequências. Eurovisão, ilustra a transição das sociedades contemporâneas para uma era pós-política

Como bem observa Žižek, a  "pós-política" neoliberal  opera em Gaza com precisão obscena, onde a política não desapareceu, mas foi estetizada, transformada em performance emocional, descolada de efeitos reais. É a coreografia da pós-política: uma estética da decisão sem consequências. Eurovisão, ilustra a transição das sociedades contemporâneas para uma era pós-política. Como os bons dispositivos ideológicos de entretenimento, embora o festival não se mostra  intrinsecamente político, ele se torna inevitavelmente politizado, especialmente ao se transformar em um evento abertamente associado a guerras culturais e identitárias. Destaca-se que o sistema de votação, que combina a opinião de um júri "profissional" com o voto popular virtual, levanta questões sobre a legitimidade e a representação na era digital.  No fundo, tanto Sem chão como a polémica da Eurovisão revelam o mesmo impasse: vivemos num mundo onde ser visto não garante/não garante a certeza nem a justiça. Mas só um deles nos obriga a escolher um lado.

A política tradicional, baseada na mediação e na representação dentro da polis, está sendo substituída por estruturas reticulares e descentralizadas facilitadas pela internet e pelas tecnologias digitais. Nesse contexto, eventos como a Eurovisão exemplificam como a codificação algorítmica e os "pseudo votos" emitidos por dispositivos móveis podem adquirir uma legitimidade política questionável, desafiando as formas tradicionais de participação democrática e remodelando nossa compreensão da política e da participação cívica. Uma política que já não depende das instituições e da mediação tradicional dentro do sistema político clássico (partidos políticos, parlamentos, etc.). Em vez disso, a política se torna descentralizada, fluida e, em muitos casos, reduzida a gestos simbólicos ou manifestações culturais que são interpretadas politicamente. Ao longo dos anos, a Eurovisão se tornou um palco para questões culturais e identitárias, principalmente devido a conflitos geopolíticos e às divisões históricas na Europa como a política de exclusão e inclusão de certos países (como a participação de países da ex-União Soviética ou da ex-Jugoslávia) e o contexto da guerra na Ucrânia afetaram a forma como o evento é entendido. A competição é, assim, permeada por tensões políticas reais. Um dos pontos-chave é o sistema de votação da Eurovisão. A competição mistura a opinião de jurados profissionais e o voto popular, sendo que a votação do público é amplamente facilitada por meios digitais. Assim, essa estrutura híbrida pode ser manipulada e como ela coloca em xeque a legitimidade política do evento. O uso de tecnologias digitais e de votação online cria um sistema onde a decisão não é mais uma manifestação coletiva clara (como seria a votação em um parlamento), mas sim um conjunto de decisões fragmentadas que podem ser influenciadas por campanhas digitais, bots e outros mecanismos de manipulação e sionistificação da política.

Trata-se da legitimação simbólica de um Estado que, naquele exato momento, bombardeia hospitais, corta água e comida, demole escolas e enterra milhares de palestinianos em valas comuns

Pseudo Votos que não necessariamente representam uma escolha genuína ou refletida, mas são, muitas vezes, o resultado de estratégias digitais e da popularidade efêmera de tendências online. Esse tipo de votação não questiona apenas as formas tradicionais de participação democrática, mas visa a forma como a legitimidade política é construída. Estamos vivendo uma transição de uma política baseada em mediação e representação para uma forma de política mais descentralizada, mediada pela internet e pelas tecnologias digitais que, enquanto as instituições tradicionais de governo e participação democrática ainda desempenham um papel, há uma crescente substituição dessas formas clássicas por novas tecnologias que permitem aos indivíduos expressar suas opiniões diretamente, sem a mediação institucional mas, ao mesmo tempo, questionável em termos de representatividade e legitimidade. A Eurovisão representa um paradigma pós-político: um palco onde tudo pode parecer político mas onde nada, no fundo, pode abalar a ordem vigente. A política está lá, mas estetizada, neutralizada, domesticada. Transformada em performance emocional que não exige decisões reais. A Eurovisão representa essa lógica em pleno funcionamento: o público vota via app, enquanto a imagem substitui o corpo, e o gesto político é dissolvido em emoção inócua. Não é por acaso que Israel pôde cantar enquanto bombardeava Rafah: o festival legitima o Estado-nação imperial não pelo que ele faz, mas por como ele se apresenta. A Palestina, por sua vez, continua fora de cena — um excesso que a festa não pode absorver.

Quando Israel sobe ao palco com uma canção reformulada para contornar a acusação de "mensagem política", o que está em causa não é apenas uma letra. Trata-se da legitimação simbólica de um Estado que, naquele exato momento, bombardeia hospitais, corta água e comida, demole escolas e enterra milhares de palestinianos em valas comuns. A imagem projetada no palco contrasta violentamente com a imagem filmada por Sem Chão. E é precisamente essa contradição que define a natureza da guerra contemporânea: uma guerra pelo controle do visível. Israel opera como hybris do projeto moderno: usa eleições (para alguns judeus) enquanto nega direitos básicos a palestinos (cf. apartheid na Cisjordânia). A ética dominante europeia aplaude essa farsa porque a Palestina é o "outro" que desvela a barbárie civilizatória chamada única democracia do  Médio Oriente.

Não por acaso, um dos realizadores do filme, Hamdan Ballal, foi espancado por colonos israelitas poucos dias depois da estreia. O recado é claro: falar, mostrar, resistir, é cruzar uma linha que o poder colonial não tolera. Enquanto isso, os mesmos conglomerados que se recusam a transmitir imagens da destruição em Rafah organizam festivais com luzes LED e slogans de inclusão. A Eurovisão, nesse contexto, não é apenas um evento cultural: é um dispositivo de neutralização, uma engrenagem da pedagogia imperial que ensina a consumir violência sem digeri-la. A cultura pop eurovisiva como Prozac do colonialismo neoliberal enquanto a Netflix remove documentários pró-Palestina. O que parece "diversão inocente" sustenta estruturas opressoras. Como alertou Walter Benjamin, a estetização da política atinge seu ápice quando cantamos sobre paz em telas que escondem massacres.

A ironia atinge seu paroxismo quando nos lembramos que, em 2019, Madonna canta "Like a Prayer" em Tel Aviv enquanto manifestantes eram assassinados na Faixa de Gaza. Esse é o paradoxo da imagem pós-política: permite tudo, desde que não haja consequência. A Palestina pode existir como referência visual, desde que não reclame soberania. Pode aparecer na tela, mas nunca na mesa de negociação. Pode ser documentada, mas não legitimada. É nesse sentido que Achille Mbembe fala de necropolítica: o poder contemporâneo é aquele que decide quem pode viver e quem deve morrer. Israel exerce essa soberania genocida de modo exemplar. Gaza é hoje o caso mais evidente de um espaço onde o Estado-nação exerce o controle total sobre a vida e a morte, mediado por uma retórica de segurança que é aceita e amplificada pelas potências ocidentais. Quando o presidente da Câmara de Madrid afirma, sem ruborizar, que Israel "não é um Estado genocida", não está apenas a mentir: está a reproduzir o mantra de uma Europa que se recusa a reconhecer como genocídio aquilo que é cometido pelos seus aliados ao mesmo tempo que aponta o dedo à Rússia.

A Corte Internacional de Justiça, a ONU, organizações de direitos humanos e mesmo juristas israelitas reconhecem: há indícios sólidos de um crime de genocídio em curso. Mas a Eurovisão segue. As canções continuam. O direito internacional, afinal, não é um horizonte de universalidade, mas uma ferramenta seletiva do poder imperial. Aplica-se contra a Rússia ou o Irã, mas é suspenso diante dos bombardeios israelenses

A Corte Internacional de Justiça, a ONU, organizações de direitos humanos e mesmo juristas israelitas reconhecem: há indícios sólidos de um crime de genocídio em curso. Mas a Eurovisão segue. As canções continuam. O direito internacional, afinal, não é um horizonte de universalidade, mas uma ferramenta seletiva do poder imperial. Aplica-se contra a Rússia ou o Irã, mas é suspenso diante dos bombardeios israelenses. Na Eurovisão, os votos fluem por apps e ecrãs, em segundos, num simulacro de participação democrática. Em Sem chão, o voto é o olhar demorado, o desconforto prolongado. Não há júri. Não há palco. Há apenas uma pergunta: como é possível que um Estado apartheid receba palmas e votos, enquanto os seus oprimidos recebem balas e são condenados inanição? O que absorve a cidadania ocidental não é só a banalidade do mal no sentido de Arendt — uma obediência cega à norma —, mas algo mais adaptado ao século XXI: a banalidade do consumo moral, que permite a alguém partilhar um vídeo de Gaza e, minutos depois, votar por Israel num festival de música. Essa cidadania não é apática: é programada para digerir a injustiça como entretenimento, desde que venha acompanhada de estética, narrativa e “complexidade geopolítica”. A normalização de Israel como “democracia em conflito” é resultado de décadas de engenharia simbólica e diplomática. É o triunfo de uma pedagogia colonial que ensinou o Ocidente a ver o palestiniano como problema, como interrupção incômoda do progresso. A narrativa dominante não precisa apagar os palestinianos — basta convertê-los em ruído de fundo.E o apartheid, enquanto prática e estrutura, só é legitimado porque há um sistema global de valores — racializados, securitários, neoliberais — que converte a violência em exceção justificável. Quando Israel aparece como defensor da civilização e da inovação tecnológica, é a própria arquitetura da modernidade capitalista que está em julgamento.Receber votos e palmas é, nesse caso, um gesto de pertencimento. Israel é premiado porque é útil, porque é um espelho invertido da Europa: moderno, militarizado, colonial e supostamente ameaçado. Os palestinianos, por outro lado, carregam um fardo: são o “lembrete” de que há algo profundamente errado com o mundo, e por isso são castigados — com balas, com fome, com silêncio.

A cidadania ocidental, quando não rompe com essa engrenagem, torna-se co-autora. E isso não se combate com culpa, mas com ação: desinvestimento, ruptura institucional, solidariedade material. A neutralidade, como já não nos cansamos de repetir, é a posição de quem fecha os olhos e espera que o sangue pare de jorrar sozinho. É nesse contexto de ruínas e negação que Sem Chão se impõe como documento e gesto. Um filme que não pretende vencer no circuito dos prêmios, mas romper a indiferença. Um filme feito por quem tem as casas demolidas e o corpo na mira, mas que insiste em filmar, falar, mostrar. O gesto de manter a câmera ligada em meio à ocupação é, por si só, uma declaração de soberania.

Um dado em 2024, uma pesquisa da Gallup mostrou que 72% dos jovens norte-americanos rejeitam o apoio irrestrito a Israel. A hegemonia ideológica da ocupação está a rachar por dentro?. Já não se trata de convencer, mas de escolher trincheiras. A história acelera e o velho centro (que se vê como "fim da história") vacila.Talvez toda dominação seja provisória. O massacre dos palestinos pode ser em vão?

Ver Sem Chão é aceitar que a imagem ainda pode ser um gesto político?. Que nem toda visibilidade é performática. Que nem toda representação é capturada pelo algoritmo. É, acima de tudo, aceitar um chamado. Porque diante de um Estado que canta no palco e extermina nos bastidores, não existe neutralidade. Existe cumplicidade ou recusa. E essa escolha, ainda que nos queiram convencer do contrário, é profundamente política. A atual onda de protestos por Gaza --de São Paulo a Compostela, de Atenas a Buenos Aires- anuncia o colapso do regime de consenso pós-político. Quando estudantes ocupam universidades como Columbia, Sciences Po ou a Sorbonne, desvelam a cumplicidade entre a academia liberal e o complexo colonial. Revelam que a neutralidade institucional é, muitas vezes, fachada para o financiamento da vigilância, das armas, da repressão. Emergem assim os contornos de uma nova geopolítica descolonial. O eixo China-Rússia-Irã, embora rejeitado pelas elites ocidentais como "antiocidental", representa, como lembra Kohan, uma aliança anti-imperial — um contrapoder global que rompe a unipolaridade do Atlântico Norte. Os Houthis bloqueando o Mar Vermelho são o exemplo mais visível dessa virada histórica: não apenas como insurgência local.

O crescente desencanto com a política, aliado à crise da social-democracia ocidental - refém do pensamento único neoliberal gestado na Sociedade Mont Pèlerin, anestesiou tudo vestígio de consciência crítica? Um dado em 2024, uma pesquisa da Gallup mostrou que 72% dos jovens norte-americanos rejeitam o apoio irrestrito a Israel. A hegemonia ideológica da ocupação está a rachar por dentro?. Já não se trata de convencer, mas de escolher trincheiras. A história acelera e o velho centro (que se vê como "fim da história") vacila.Talvez toda dominação seja provisória. O massacre dos palestinos pode ser em vão?

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