Deve chamar-se tristeza isto que não sei que seja é o primeiro verso -difícil de esquecer- de um poema de Pessoa. O verso traduz a estranheza de existir que sempre assediou o poeta mas também essa inquietaçom indefinida que impregna a saudade portuguesa, quem sabe se doença da alma ou memória de desventuras históricas.
A implacável autopuniçom é outro traço indelével da arte de ser português
Estranho país Portugal. De país de suicidas qualificou-o Unamuno recordando a fúnebre procissom de caídos por mao própria: Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Mouzinho de Albuquerque, o escultor António Soares de Reis que dá nome ao Museu de Belas Artes do Porto. E também o doutor Manuel Laranjeira, mestre de Unamuno em desesperanças portuguesas. O doutor tomara a fatal determinaçom de pôr fim aos seus dias nom sem antes deixar dito que no seu malfadado país todo o nobre se suicidava e só o canalha se empenhava em prevalecer. A implacável autopuniçom é outro traço indelével da arte de ser português.
Tomar a vida a sério é um andaço romántico que abafa o país vizinho mas a melancolia portuguesa nom é assunto fácil de decifrar. Coexiste com um orgulho nacional desmedido e umha vitalidade popular robusta e irredutível. A malta goza da vida e da festa como ninguém. “Meu país de mãos grossas, plebeu, sensual, resistente” cantou-o Luís Cilia em verso memorável. Talvez a melhor definiçom do português anónimo e real que um topa polas ruas. Desencanto existencial e humor grosso de feirante, saudade e figuraçom chocalheira coexistem intimamente unidos na pátria do sul.
A arroutada e a vozearia nom som vícios portugueses. Ninguém terá dificuldade em reconhecer polo contrário o passo das bandadas migratórias espanholas por Portugal
Saudoso, resistente e empreendedor mas, por cima de todo, reservado em atitudes e manifestaçons. A arroutada e a vozearia nom som vícios portugueses. Ninguém terá dificuldade em reconhecer polo contrário o passo das bandadas migratórias espanholas por Portugal -basta às vezes com dous exemplares: a vozearia as precede.
Portugal atravessa umha profundíssima crise económica que provoca profundas fissuras de legitimaçom no sistema político surgido da Revolução dos Cravos, a primeira nascida de umha cançom que tenhamos memória. Portugal descrê de Portugal e por vezes deixa-se tentar por impulsos de desesperança irremediável. Os grandes ensaístas portugueses do momento, os Eduardo Lourenço, os José Gil, tenhem escrito textos memoráveis de análise desapiedado e mesmo às vezes cruel das eivas que afligem a sua sociedade. Ninguém como um português para arrenegar do seu país. José Gil, um filósofo tam português que decidiu nascer em Moçambique e viver exilado na França, dissecou o seu país sem contemplaçons em “Portugal, Hoje: O Medo de Existir”, um ácido diagnóstico de antropologia cívica do Portugal contemporáneo. Medo de existir sentencia o filósofo, coragem e desmesura, acrescento eu.
Portugal atravessa umha profundíssima crise económica que provoca profundas fissuras de legitimaçom no sistema político surgido da Revolução dos Cravos
Em 1917 via a luz em Lisboa o primeiro e derradeiro número da revista Portugal Futurista. O exemplar incluía um poema de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa titulado "Ultimatum". Era umha ordem de despejo incondicional sobre a Europa em ameaça de ruína de inusitado vigor. Alçado sobre a história do seu país, o engenheiro metafísico Álvaro Campos proclamava:
Eu, da raça dos descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um mundo novo.
(...) proclamo isso bem alto, braços erguidos, fitando o Atlântico (...)".
Desengano e orgulho, descrença de si próprio e nacionalismo estridente. Portugal, em fim.
Também a Galiza foi qualificada de estranha tribo de aborígenes que nunca podes saber se sobem ou baixam quanto os topares numha escada. Inquirir sobre as intençons de alguém no patamar de umha escada é labor mais próprio, na minha opiniom, de detectives que de gente civilizada. As escadas som, como as ruas, espaços comuns onde um pode deambular mas também resolver um trasacordo que te obrigue a voltar sobre os próprios passos. O trasacordo: esse si um traço genuinamente galego, próprio de gente reflexiva. As nossas vaguidades ganhárom aliás o seu espaço no hino galego. Como quer que seja, nada temos contra opinions alheias acerca de nós. Gostamos replicar: eu bem me entendo. Pois é.
De “tierra pobre, habitada por almas rendidas, suspicaces y sin confianza en sí mismas” qualificou o nosso país dom José Ortega y Gasset na sua España Invertebrada (1921). Acho um pouco exagerada a diagnose dos nossos males do mestre de essências espanholas. Tem esse cheiro repulsivo a descripçom petulante de escuros aborígenes alheios com o intuito de impor-lhes tutela. Breve aforismo de antropologia recreativa para a galeria, em fim, a maneira de Negro de Banyoles para séquitos de meseta. Se server a opiniom de umha alma rendida anónima: O falar nom tem cancelas.
Os portugueses decidiam sair massivamente à rua -1,5 milhons afirma-se- a berrar: "Que se lixe a troika, o povo é quem mais ordena"
Portugal é esse estranho país capaz de fazer calar ao Primeiro-Ministro em sessom parlamentar entoando o Grândola sem por isso este se imutar e mesmo concluindo: de todas as formas em que uma sessão pode ser interrompida esta parece-me a de mais bom gosto. De ali a poucos dias os portugueses decidiam sair massivamente à rua -1,5 milhons afirma-se- a berrar: "Que se lixe a troika, o povo é quem mais ordena". Nom houve feridos nem exigência de explicaçons ao ministro do ramo como por aqui se leva. Civismo, acho eu, mais que rendiçom da alma.
Portugal tem ditado discretas liçons de convivência inclusiva que seria bom nom esquecer. Em 1975, quando a metrópole subitamente empobrecida e traumatizada pola Revolução se viu na obriga de acolher os restos do naufrágio do império secular em ruína soube abrir-lhe as portas sem que conste umha só protesta: meio milhom de retornados ultramarinos de toda raça e condiçom. A civilizada França de 1962 nom soube estar à altura da fraternité e preferiu cunhar um vocábulo para o desprezo: pied noir.
A desconfiança portuguesa por Espanha está bem motivada
A desconfiança portuguesa por Espanha está bem motivada. Foi Espanha a que aproveitou o fim da Guerra de Restauraçom (1640-1668) que restaurava a independência portuguesa para apropriar-se de Ceuta. Portugal nom esqueceu o episódio e decidiu reforçar o seu perímetro fronteiriço com cidadelas fortificadas para defender a independência recuperada. De ai procedem as soberbas fortificaçons que pontuam a fronteira. Do lado de cá é habitual atribuir o esforço ao gosto pola grandiloquência do país vizinho mas os filhos do campo bem sabem que diante dum vizinho revirado mais vale levantar paredes que brigar dia e noite polo marco.
Portugal é a naçom mais velha da Europa, a sua independência remonta aos meados do século XII e a sua expansom ultramarina é apenas posterior. O escudo da sua bandeira é o mesmo que arvorava no século XV. O empenho histórico de Portugal é o mesmo do navegante solitário que mereceu a sua consagraçom nos painéis de São Vicente de Fora pintados por Nuno Gonçalves nos finais do século XV. Um políptico maravilhoso capaz de misturar realismo e mistério, teologia e política da navegaçom. Portugal nom admite olhadas de esguelha e menos de cima a baixo. O povo português pode arrenegar do seu infortúnio -de facto é um autêntico desporto nacional- mas orgulha-se da sua história centenária e gosta de celebrar os seus heróis, verdadeiros ou inventados.
Portugal guarda ademais o duplo código secreto do nosso futuro: a tenaz resistência histórica ao assimilismo e o formato internacional da língua compartida
Ninguém confunda raiva ou desalento com apostasia da pátria e menos ainda com saudades da Espanha. Portugal guarda ademais o duplo código secreto do nosso futuro: a tenaz resistência histórica ao assimilismo e o formato internacional da língua compartida. Um código dúplice que nos pode salvar da doença que nos abafa e que podemos denominar provincianismo. Olhar Portugal com olhos galegos, quer dizer com olhada próxima, é a melhor maneira de interpretarmo-nos de braços erguidos, fitando o Atlântico: como povo em projecto, província de ninguém.