Eu sei quem sou

Há uns dias morria o grande historiador marxista Eric Hobsbawm. Nom ousarei glosar a talha do grande mestre que esclareceu o escuro perfil desse cruel século nascido nos fragores de 1914 e rematado em 1989 ou 2011 segundo miremos cara Berlim ou Nova Iorque. Nom carece de ironia o facto de ter sido um científico marxista como Hobsbawm um destacado impulsor da pesquisa em matéria tam subtil como a formaçom da memória patriótica das naçons e a sua codificaçom nas histórias sagradas e panteons míticos que lhes servem de pedestal. Hobsbawm examinou, junto com Ranger1 e colaboradores, a produçom massiva de tradiçons nacionais que decorreu polo período 1870-1914, com especial atençom posta na Gram-Bretanha e as suas colónias. O relato das “ancestrais” tradiçons da monarquia británica e das que singularizam a Escócia e Gales som memoráveis. A nossa mirada sobre a pompa e circunstáncia de Buckingham nunca será a mesma despois de ter lido o livro de Hobsbawm.

Nom carece de ironia o facto de ter sido um científico marxista como Hobsbawm um destacado impulsor da pesquisa em matéria tam subtil como a formaçom da memória patriótica das naçons e a sua codificaçom nas histórias sagradas e panteons míticos que lhes servem de pedestal

Outros historiadores como Benedict Anderson2 ampliárom a análise à apologética nacionalista do crioulismo republicano que alumiou às jovens repúblicas americás de tam profundo impacto na consciência nacional europeia. O relato identitário alcançou finalmente às naçons surgidas da rápida dissoluçom dos impérios europeu e soviético. Os meta relatos identitários som um elemento de legitimaçom consubstancial a qualquer organizaçom social a começar polas naçons como bem sabemos.

A consabida preferência dos nacionais de cada país por erigir a naçom própria em exclusiva e a desqualificar as restantes como artificiais e mesmo potencialmente perigosas corre parelha com as armadilhas da pugna linguística

A consabida preferência dos nacionais de cada país por erigir a naçom própria em exclusiva e a desqualificar as restantes como artificiais e mesmo potencialmente perigosas corre parelha com as armadilhas da pugna linguística. Todo o que nom encaixar no kit todo-em-um “umha naçom, um estado, umha língua” é conceituado de artificioso e potencialmente ameaçante. A aliança do trono e o altar parece ter virado à mais secular de língua e naçom.

Reverdece em Espanha a polémica sempre latente das identidades nacionais condimentada agora em molho fiscal como corresponde aos tempos de penúria que transitamos. Esgrimem-se identidades e argumentos excludentes, algum um bocadinho inquietante como o que mistura alhos patrióticos com bugalhos armados. Nunca faltará quem evoque o látego e a cincha quando evocar identidades alheias. O alhéio sempre é de desconfiar, umha mensagem que procede talvez do nosso cérebro mais arcaico -o reptiliano dim- que nom consegue esquecer jamais a ameaça da diferença.

Todo o que nom encaixar no kit todo-em-um “umha naçom, um estado, umha língua” é conceituado de artificioso e potencialmente ameaçante

Espanha, tal como a aprendémos -como “comunidade de destino” para entendermo-nos- é um produto recente. Historiadores informados e equánimes como Álvarez Junco ou Inman Fox3 datam a partida de baptismo da guerra contra o francês que tivo em Goya retratista excepcional e na Constituiçom de Cádis o texto fundador. A cerimónia de confirmaçom da naçom espanhola procede da historiografia liberal do XIX, que alimenta ainda o nosso imaginário.

Os óleos filosóficos da consagraçom definitiva da pátria comum fôrom administrados polos intelectuais do noventa e oito. Um vigoroso processo de mobilizaçom popular desenvolvido despois por via intelectual forma o alicerce da Espanha. Mobilizaçom popular mais discurso intelectual; António Gramsci teria concordado com a diagnose sem por isso tentarmos minimizar as seculares raízes da convivência dos povos hispánicos -Portugal incluído- nesta singular proa da Europa Ibérica.

Os óleos filosóficos da consagraçom definitiva da pátria comum fôrom administrados polos intelectuais do noventa e oito. Um vigoroso processo de mobilizaçom popular desenvolvido despois por via intelectual forma o alicerce da Espanha

A bandeira espanhola actual procede de um Real Decreto de 1785 emitido para dotar de pavilhom à Marinha espanhola e nom foi até 1908, cem anos despois dos sucessos da Porta do Sol, quando outro Real Decreto generalizou o seu uso para honrar as festas cívicas com intençom confirmatória em todo semelhante à que inspirou a Lei de símbolos de Galiza do ano 1984. O primeiro monarca que assinou conscientemente como Rei de Espanha foi -quem o diria- José Bonaparte, cidadao francês nascido em Córsega e falecido em Florença.

O relato histórico que alimentou até o dia de hoje a consciência nacional espanhola deve-lhe muito à monumental Historia General de España (1850–1867) em vinte nove tomos do liberal progressista palentino Modesto Lafuente. Como dado significativo podemos apontar que a mencionada história figurava na relaçom de bens legados em 1880 polo banqueiro compostelano Manuel Pérez Sáenz, progenitor de Olímpio Pérez. O activo negociante, dom Manuel, distava de ser um intelectual mas a Historia convertira-se já na altura em objecto imprescindível de distinçom social da burguesia compostelá emergente.

Galiza nom demorou na redacçom do seu próprio relato identitário. O primeiro tomo da Historia de Galicia de Manuel Murguia via a luz em 1865, coetánea com a de Vicetto. Manuel Murguia foi o nosso Modesto Lafuente como Rosalia o nosso primeiro mito nacional aceitado. Espanha contou com a geraçom do noventa e oito como nós com a geraçom Nós. Similar a mensagem de ambas: coesiva, projectiva, regeneracionista, confirmatória.

Espanha contou com a geraçom do noventa e oito como nós com a geraçom Nós. Similar a mensagem de ambas: coesiva, projectiva, regeneracionista, confirmatória

A memória nacional galega afinca em viçosas raízes democráticas: as de Murguia, Rosalia e a geraçom de Castelao, sem esquecer magníficos antecessores como Martim Sarmiento, galego por estirpe e vontade, ou o tenaz diplomata Dom Diego Gelmírez, inventor de Santiago. Nada que invejar à estirpe de Aitor do totem do Touro, evocada em lira épica por Pio Baroja, nem às glórias catalás cantadas por Maragall e Verdaguer. Três som as naçons culturais hispánicas em procura recorrente de um espaço político próprio. Três identidades unidas por umha convicçom comum: a de terem umha identidade originária, nom derivada de qualquer outra. “Yo sé quién soy —respondió don Quijote—, y sé que puedo ser, no solo los que he dicho, sino todos los Doce Pares de Francia, y aun todos los nueve de la Fama, pues a todas las hazañas que ellos todos juntos y cada uno por sí hicieron se aventajarán las mías”. Saber quem um é, nisso reside todo.

As respectivas diferenças de comportamento nas urnas, o nosso grau de consciência nacional em relaçom com Catalunha e o País Basco, provenhem provavelmente das trajectórias históricas diversas. Galiza, madrinha de nascimento da naçom portuguesa, careceu de um movimento insurreccional como o carlismo (as irmandades de homes bons ficárom no esquecimento) como também de um empresariado autóctono com consciência identitária como a que chegou a adquirir um segmento dos negociantes cataláns enriquecidos com o comércio colonial. Carecémos de um Ramon de la Sota e nom contámos com ninguém para nos redigir um Memorial de Greuges. A nossa foi umha sociedade fragmentada, de teimosos lavradores resistentes, cidadaos de 3.781 pátrias parroquiais singulares. Afinal, o país foi mais fértil em aspirantes em Corte e espertos na contemporizaçom e a transigência -umha espécie de éxito no país- do que em políticos adestrados na exibiçom de força e a negociaçom tenaz. A falta de oportunidades conduziu-nos a Madrid, a Buenos Aires, a Genebra; nunca a Galiza. Gramsci teria concordado de novo com a diagnose.

O país foi mais fértil em aspirantes em Corte e espertos na contemporizaçom e a transigência -umha espécie de éxito no país- do que em políticos adestrados na exibiçom de força e a negociaçom tenaz

Tópica e estendida é a opiniom de os galegos indivíduos um tanto peculiares. Os nossos traços distintivos alcançárom mesmo o status de slogan publicitário: Vivamos como galegos! Esta visom identitária, pre-política, antropológica, tem versons vulgares e mesmo algumha ruim. A galegada folclórica, tam grata à direita festeira, alimenta-se de umha olhada autodesprezativa, temperada em tradiçons ancestrais de onte-para-cá e perfumada em recendos de queimada. Detritos afinal das ingénuas estampas do pintoresquismo regionalista do romantismo tardio que chegárom a alcançar consagraçom solemne nos murais de Sorolla para a Hispanic Society of America.

Identidade e projecto nacional. A capacidade integradora da Espanha constitucional está sendo questionada desde Catalunha e o País Basco com propostas de soberania compartida. Em quanta soberania e que associaçom reside o assunto. O Governo espanhol pretende espanholizar os alunos das províncias díscolas, afirmou no Parlamento o ministro Wert.

A capacidade integradora da Espanha constitucional está sendo questionada desde Catalunha e o País Basco com propostas de soberania compartida. Em quanta soberania e que associaçom reside o assunto

O cura e o barbeiro queimárom, como sabemos, a biblioteca de dom Quixote para borrar-lhe a memória que alimentava os seus excêntricos propósitos. O assunto está agora em sabermos se seremos capazes de preservar o nosso relato e propósitos dos agentes normalizadores internos e externos que ameaçam com queimá-lo para podermos finalmente afirmar com a serenidade do fidalgo: eu sei quem sou e sei quem podo ser.

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