Festina lente

Emblema dos Medici, no Palazzo Vecchio de Florencia © Museo da BNE

Muito e bem nom há quem, instrui o provérbio de ética campesina que defende o trabalho bem feito. A lesma pode ganhar em empenho e proveito ao frívolo saltom, e o ouriço à raposa de mil manhas como já sentenciara Arquíloco.

Muito e bem nom há quem, instrui o provérbio de ética campesina que defende o trabalho bem feito

Escuitava numha destas longas tardes invernais em que o ano foi pródigo a série de melopeias do Fratres de Arvo Pärt, tam semelhantes ao canto monacal mais nu e introspectivo. A música de Pärt volta com frequência à minha equipa de som. Desta vez deu-me em parar mentes numha peça intercalada na série Fratres intitulada com o oximoro latino: Festina Lente, apressura-te devagar, composta por Pärt em 1988.

O mesmo que a brevíssima fábula de Arquíloco da raposa e o ouriço, elevada por Isaiah Berlin a categoria analítica, o oximoro que dá título á peça de Pärt tem a sua história. O lema depressa devagar, é traduzido á linguagem musical mediante um artifício compositivo apenas perceptível montado em três planos sonoros — baixos, violas e violinos — executados simultaneamente a dupla velocidade relativa. O resultado é um flutuante holograma meditativo muito na linha introspectiva do músico estónio.

O celebrado oximoro clássico procede, segundo os eruditos, de César Augusto que, polos vistos, gostava de repetir o provérbio grego originário, «speude bradeōs», se acreditamos no seu biógrafo Suetónio, em Vita Divi Augusti (XXV, 4). Pura sabedoria clássica formulada com insuperável elegáncia latina.

Festina lente é, desde o renascimento, divisa de prestígio multiplicada em emblemas como o da tartaruga arvorada com mastro de navegar ou o ágil golfinho sobre a áncora da firmeza que deu nome, por sinal, a umha reputada casa editorial espanhola. Mesmo chegou a honrar selectas estirpes britânicas como a dos Onslow, lido como on slow: anda a modo. Humor inglês em molho erudito. O delfim e a áncora foi a insígnia adoptada polo reputado tipógrafo e humanista Aldo Manuzio (1449-1515) que conseguiu elevá-la a imagem canónica da lentidom laboriosa.

Festina Lente resume o cauto equilíbrio entre impulso antecipativo e acçom reactiva. Entre a personalidade impulsiva e a irresoluta, sempre propensa a postergar o inevitável

Festina foi também umha popular marca espanhola de relógios em alusom à fugacidade do tempo a bater no pulso do usuário. A marca procedia de Suíça mas quigérom os fados que fosse adquirida por um empresário andaluz de nome Miguel Rodríguez Domínguez e inclassificável trajectória empresarial. Militante precoce do partido comunista, maoista depois, afiliado a Bandera Roja, sentou finalmente cabeça como empresário e promotor da marca de relógios desportivos Lotus. Um comunista cronométrico, espécie infrequente.

Festina Lente resume o cauto equilíbrio entre impulso antecipativo e acçom reactiva. Entre a personalidade impulsiva e a irresoluta, sempre propensa a postergar o inevitável. O sentimento de adiar a obriga foi evocado com formosa precisom poética por R. M. Rilke no seu comovente Réquiem para um poeta, onde se dirige ao jovem suicida Wolf Graf von Kalckreuth tentando vencer o árduo transe de iniciar o diálogo com o impaciente suicida: No meu peito apresentaste-me como um começo em excesso difícil que um pretende postergar.

Se procedemos a retirar as sucessivas capas culturais que embaçam provérbios e lugares-comuns, é inevitável topar com o sólido fundo de rocha-mãe das pulsons primordiais que regem o nosso comportamento. O ser humano, afinal, impulsivo ou reflexivo? É a questom

Disserta Maffei sobre a inútil pretensom de dispormos de um cérebro rápido, pronto a agir, à maneira dos múltiplos dispositivos que povoam a nossa impaciente quotidianidade

Devemos ao neurobiologista italiano Lamberto Maffei, admirável combinaçom de sabedoria científica e paixom humanista, tam habitual em Itália, umha pormenorizada exposiçom das bases biológicas da antinomia celeridade-lentidom inserida no fundo do nosso cérebro (1). Inicia Maffei a sua exploraçom da antinomia com umha visita ao Palazzo Vechio de Florença para visitar as tartarugas a vela que Cosme I encarregara a Vasari para ilustrar o provérbio sapiencial que inspirava o seu arte de governar: reflectir antes de agir, festina lente.

Disserta Maffei sobre a inútil pretensom de dispormos de um cérebro rápido, pronto a agir, à maneira dos múltiplos dispositivos que povoam a nossa impaciente quotidianidade, sem cairmos na conta em que o nosso cérebro é umha máquina inevitavelmente lenta. Devemos aceitá-lo, o moinho do pensamento é lento, a resposta imediata, mesmo a de carácter inconsciente, agocha-se também nalgum canto oculto do cérebro mas naquela área que comanda o repertório ancestral de resposta imediata ao estímulo hostil.

A tartaruga que nos conduz, só desfralda as velas instintivas quando o centro de mando exige resposta instantánea

A tartaruga que nos conduz, só desfralda as velas instintivas quando o centro de mando exige resposta instantánea. A demorada ontogénese que nos configura como seres humanos singulares e reflexivos guarda oculto um limitado caixom de ferramentas de raiz filogenética que nos ata à Natureza em que afinal consistimos. No meio e meio do ser humano, o tempo.

 

Notas

1- Lamberto Maffei (2016): Alabanza de la lentitud, Alianza Editorial, Madrid

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